As Musas: fonte de inspiração para Platão - PUC-Rio
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<strong>As</strong> <strong>Musas</strong>: <strong>fonte</strong> <strong>de</strong> inspiração <strong>para</strong> Platão<br />
Expositor: Zylpha Barros Carvalho do Nascimento *<br />
A música em busca da razão<br />
Po<strong>de</strong>-se afirmar sem riscos <strong>de</strong> exageros, diz Moutsopoulos, em sua obra La<br />
Musique dans l’oeuvre <strong>de</strong> Platon, que o mito das cigarras resume toda a doutrina<br />
platônica sobre a música. Esta observação física e fisiológica do estudo da arte<br />
musical e <strong>de</strong> suas relações com a ciência da arte, estão notadamente presentes no<br />
pensamento platônico – e, sobretudo porque a música não é unicamente um dom<br />
reservado às <strong>Musas</strong>, mas muitos homens são particularmente inclinados a servir<br />
esta arte..<br />
Diante <strong>de</strong>sta constatação, nos remetemos à <strong>de</strong>finição etmológica do<br />
conceito <strong>de</strong> Musa <strong>para</strong> Platão, expresso em seu diálogo Crátilo 405 a, b, c:<br />
“...Finalmente, pelo que diz respeito à arte musical, <strong>de</strong>vemos supor o seguinte:<br />
Igualmente o que ocorre com as palavras akólouzos e ákoitis, significa com freqüência,<br />
juntamente ou “junto” (omou). Da mesma maneira enten<strong>de</strong>mos esta<br />
rotação simultânea (omou pólesis) por aquilo que se produz nos céus e que significa<br />
“revoluções” (poloi), como na harmonia do canto, chama-se consonância;<br />
todos estes movimentos, <strong>de</strong> fato, segundo afirmam os espíritos cultos, versados<br />
na música e na astronomia, são regulados por uma única harmonia. Este <strong>de</strong>us<br />
presi<strong>de</strong> a harmonia, <strong>de</strong>terminando simultaneamente todos estes movimentos,<br />
* Docente do Instituto <strong>de</strong> Artes da UNESP.<br />
Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Atas da ANPOF, n o 1, 2001.
158 Zylpha Barros Carvalho do Nascimento<br />
tanto entre os <strong>de</strong>uses quanto entre os humanos. Conseqüentemente, como o<br />
companheiro <strong>de</strong> jornada e a companheira <strong>de</strong> fato, têm sido chamados por nós<br />
akólousos e ákoitis, substituindo omo por a, do mesmo modo, temos chamado<br />
Apolo o autor do movimento simultâneo (omopolón)” ... e em seguida, em outro<br />
texto do Crátilo, Sócrates diz: “Pelo que as <strong>Musas</strong> e a música em geral se refere,<br />
parece que o nome Musa, tinha sido <strong>de</strong>rivado da palavra <strong>de</strong>sejar (môszai)”. Este<br />
nome dórico, que significa também buscar, aparentado com o termo épico memaós,<br />
encontra em Epicamo, em Teognis e também nos trágicos. A forma dórica<br />
Môsa, em lugar <strong>de</strong> Mousa – Musa ---, foi seguramente o que facilitou Platão em<br />
po<strong>de</strong>r estabelecer esta relação etmológica. No Crátilo, d’Apollon e Apolouôn, significam:<br />
o <strong>de</strong>us músico, o <strong>de</strong>us da medicina e das purificações. 1<br />
Platão sem dúvida, acredita que o poeta esteja embuido <strong>de</strong> algum modo,<br />
das belas verda<strong>de</strong>s inspiradas pela Musa, prova disso, está nas páginas do diálogo<br />
Fédro, quando o filósofo é consi<strong>de</strong>rado como um ser inspirado ... Vejamos as<br />
seguintes passagens : “esta não é senão a reminiscência daquilo que a alma viu<br />
enquanto caminhava em companhia da divinda<strong>de</strong> ....” “.....o homem que sabe<br />
servir-se <strong>de</strong> tais recordações, iniciado continuamente nos mistérios perfeitos é o<br />
único que chega a ser verda<strong>de</strong>iramente perfeito; porém, como se aparta das ocupações<br />
dos homens e se consagra ao divino, o vulgo o repreen<strong>de</strong> dizendo que<br />
está fora <strong>de</strong> si – todavia, não se dá conta <strong>de</strong> que ele está possuido por um <strong>de</strong>us”<br />
(248 e) . Deste modo, o poeta recebe passivamente as belas verda<strong>de</strong>s da parte da<br />
Musa, ao que o filósofo, como no mito da República, remete ativamente ao mundo<br />
das idéias e exercita a partir daí, a pura dialética.<br />
Em Athenéias 632 c, lemos a passagem que observa que a sabedoria antiga<br />
dos Gregos, parece estar em seu conjunto <strong>de</strong>dicado à música. Possivelmente,<br />
tenha sido este o motivo que fez com que os Gregos se consi<strong>de</strong>rassem os melhores<br />
músicos e os mais sábios; <strong>de</strong> um lado, da parte <strong>de</strong> Apolo, entre os <strong>de</strong>uses e<br />
do outro, <strong>de</strong> Orfeu, entre os semi<strong>de</strong>uses.<br />
Esse texto trata-se da noção <strong>de</strong> sophia em relação à música 2 , pois sophia<br />
antes <strong>de</strong> se tornar um termo filosófico, <strong>de</strong>signou a experiência <strong>de</strong> um métier 3 , a<br />
1 Platão, Crátilo, 405 a, b, c<br />
2 Boyance, P., Le culte <strong>de</strong>s Muses ches le philosophes Grecs, Paris, 1936, p. 15, n°2.<br />
Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Atas da ANPOF, n o 1, 2001.
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habilida<strong>de</strong>, o uso inteligente <strong>de</strong> um conhecimento, o segredo <strong>de</strong> uma arte 4 , a<br />
aplicação <strong>de</strong> uma técnica particular 5 . Em Platão, esse termo se opõe à toda aptidão<br />
natural e <strong>de</strong>signa um conhecimento mais profundo <strong>de</strong> um assunto 6 . Significa<br />
principalmente a arte <strong>de</strong> discursar <strong>para</strong> as multidões e <strong>de</strong> advogar em um tribunal.<br />
Foi no hino a Hermes da coletânia homérica, que a música recebeu pela primeira<br />
vez, o nome <strong>de</strong> sophia e foi nesse momento, que referiu-se também ao solo da<br />
cítara como sendo <strong>de</strong> uma τεχνη (techné) 7 .<br />
Um exemplo perfeito <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> sophos está presente na figura <strong>de</strong> Quiron<br />
o centauro, educador mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> heróis exemplares 8 . Quiron aparece como o<br />
lendário mestre <strong>de</strong> Aquiles, que lhe ensina o manejo das armas e o tocar da lira 9 .<br />
Quiron, músico-curador, mestre <strong>de</strong> Esculápio, Aquiles, Ulisses e outros heróis,<br />
po<strong>de</strong> personificar a ligação inseparável que a música tem com a arte <strong>de</strong> curar sob<br />
a forma <strong>de</strong> encantamento. E <strong>para</strong> ilustrar melhor, lembremo-nos que na Ilíada,<br />
Aquiles afasta sua tristeza por meio da música: “cantando e acompanhando-se<br />
pelo phorminx” 10 .<br />
Em Esparta, a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sábio era também atribuida ao músico, o que<br />
explica a admiração e o respeito das jovens pelo mestre Alcman, constante da<br />
segunda coletânea das Partenéias 11 .<br />
3 Platão, Protagoras g., 324 e ; Ilía<strong>de</strong>, XV, 412.<br />
4<br />
Platão, Protagoras., 321 d. Existe uma aproximação <strong>de</strong> ‘sophia’ com a ‘techné’, afirma<br />
Píndaro em Ol., Vll, 98.<br />
5 Théag., 123 c; Lach., 194 c.<br />
6 Platão., Ion, 542 a; Rép., ll, 365<br />
7 F.,Lasserre, Plutarque: De la Musique, Hymne à Hermes, 483; cf. 511; Este termo manterá<br />
por longo tempo como arte musical, <strong>de</strong>signado não somente nos versos <strong>de</strong> Homero on<strong>de</strong><br />
encontra-se como a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construir navios, implicando no conhecimento das leis mestres<br />
<strong>de</strong> uma técnica difícil. Nos versos do Hino a Hermes encontra-se a forte relação com a<br />
execução da cítara, acompanhada da “techné”; S. Lid<strong>de</strong>ll Scott, vi<strong>de</strong> “sophia”, “sophos”.<br />
8 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 15-16.<br />
9<br />
Detienne, M., Homère, Hésio<strong>de</strong> et Pithagore , poésie e philosophie dans le pytagorisme<br />
ancien, Bruxelles, 1962, cap. Lll, Achille, p. 39 e seg.. Page, D.L., Alcman: The Parteneion,<br />
Oxford, 1951, Lasserre, M., Ibi<strong>de</strong>m, Moutsopoulos, E., La Musique dans l’oeuvre<br />
<strong>de</strong> Pla on, t Paris, 1959.<br />
10 Phorminx: instrumento <strong>de</strong> cordas da Antiguida<strong>de</strong> Grega, Ilía<strong>de</strong>, lX, 186 e Seg., Plutarque,<br />
De la Musique, 40.<br />
11 Alcman, frag., 13.<br />
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Platão é testemunha <strong>de</strong>ssa sabedoria musical em sua dupla expressão e<br />
evolução. De um lado, on<strong>de</strong> ela alcança o conhecimento racional e filosófico, ele<br />
integra-a em seu sistema – e do outro, on<strong>de</strong> ela torna-se apenas virtuosismo ou<br />
empirismo, ele pelo contrário, critica e con<strong>de</strong>na. Nesse sentido, explica-se muito<br />
bem, o porquê <strong>de</strong> sua atitu<strong>de</strong> frente aos músicos <strong>de</strong> seu tempo e sobretudo, <strong>de</strong><br />
sua tarefa <strong>de</strong> elaborar uma nova paidéia musical.<br />
No Górgias a música manifesta-se como um savoir-faire. Sócrates discute<br />
sem nenhuma dintinção o conteúdo da retórica no contexto das outras artes e<br />
métiers, e, <strong>para</strong> conferir, vejamos o que ele diz : “O tecer, relaciona-se com a<br />
fabricação dos tecidos ... a música, com a criação das melodias ... da mesma maneira,<br />
a medicina tem por objeto, os discursos relativos às doenças” 12 .<br />
Esse momento é extremamente significativo, pois Platão está diante da arte<br />
musical e <strong>de</strong> seu estatuto particular. A música enfim, justifica sua condição<br />
social e artística <strong>de</strong>finindo-se como uma área do saber, uma τεχνη (techné), todavia,<br />
não necessariamente uma ciência 13 .<br />
Na época <strong>de</strong> Platão, a música atravessava uma crise, sobretudo porque o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento da técnica instrumental havia chegado a extremos, os músicosenovadores<br />
tinham uma dupla tendência: a policordia e a polifonia 14 . Plutarco em<br />
relação a esse problema, é muito explícito, quando diz em uma passagem <strong>de</strong> sua<br />
obra De Musica que : “... Melanipido, famoso músico poeta lírico da Antiguida<strong>de</strong>,<br />
foi um dos primeiros artistas a romper com a música tradicional – o que foi seguido<br />
por Filoxeno e Timótheo – e, enfatiza ainda, que Terpandro, famoso músico<br />
do mesmo péríodo, tocava a lira somente com sete notas e que foi exatamente<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le, que os intervalos musicais foram fraccionados, obtendo-se por<br />
conseqüência, os sons suplementares. A aulética mesmo sóbria, pôs-se a buscar<br />
modulações e inclusive Aristóxeno <strong>de</strong> Tarento conta que um <strong>de</strong> seus contemporâneos,<br />
Telésias <strong>de</strong> Tebas, apesar <strong>de</strong> ter sido educado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> jovem na prática da<br />
mais bela música – acabou chegando à ida<strong>de</strong> madura completamente dominado<br />
pela música do teatro ‘politonal’ ” 15 .<br />
12 Górgias, 449 d- 450 a .<br />
13 Cármi<strong>de</strong>, 170 a - d. Nessa passagem Sócrates distingue ciência <strong>de</strong> saber e suas relações<br />
com a música.<br />
14 Plutarque, De la Musique, 30, 25.<br />
15 Plutarque, De la Musique, 30, p. 172.<br />
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<strong>As</strong> <strong>Musas</strong>: <strong>fonte</strong> <strong>de</strong> inspiração <strong>para</strong> Platão 161<br />
Plutarco nessa obra <strong>de</strong>screve os altos e baixos da evolução da música antiga<br />
Grega, que diga-se <strong>de</strong> passagem, Platão muito bem soube retratar em seu<br />
diálogo <strong>As</strong> Leis.<br />
A sophia musical<br />
Nos textos da República e do Fédro 16 , Platão exprime suas preferências pelos<br />
pitagóricos, em oposição aos empiristas e à ciência harmônica. Trata-se da<br />
rivalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> duas escolas que no correr dos séculos elaboraram dois sistemas<br />
opostos. A obra Os Elementos Harmônicos <strong>de</strong> Aristoxeno é um dos melhores documentos<br />
que registra essas duas tendências rivais 17 .<br />
Os pitagóricos como gran<strong>de</strong>s matemáticos que eram, empregavam os métodos<br />
empíricos <strong>para</strong> medir os intervalos musicais 18 em função do comprimento<br />
das cordas – que por conseguinte, produziam os arkhés, (ponto <strong>de</strong> partida <strong>de</strong> um<br />
sistema), isto é, o monocórdio tradicional utilizado pela escola. Os músicos empíricos<br />
se baseavam na função da nota e tentavam medir os intervalos, <strong>de</strong>compondoos<br />
em elementos audíveis. A fim <strong>de</strong> medir um intervalo pelo número <strong>de</strong> elementos<br />
que ele contém, <strong>de</strong>terminaram o menor intervalo perceptível 19 .<br />
Aristóxeno falando sobre seus adversários harmonicistas, expressou-se da<br />
seguinte forma: “Contrariando os sentidos como sendo sujeitos a erros, eles fabricavam<br />
princípios racionais, afirmando que o agudo ou o grave se traduziam por<br />
meio <strong>de</strong> certas relações numéricas ... Essa teoria, não levava em conta o tema e<br />
variava completamente segundo os fenômenos sonoros” 20 .<br />
O método dos empíricos teve por base a sensação e a experiência. Eles se<br />
esforçaram por ultrapassar os limites do racional, visando em princípio, reproduzir<br />
a percepção e investigar segundo certas regras, as condições <strong>de</strong>termináveis, matemáticas<br />
– como por exemplo, o comprimento relativo das cordas.<br />
16 République, Vll, 531 a-b; Phèdre, 268 d-e.<br />
17 L. Laloy, Aristoxène <strong>de</strong> Tarente, discípulo <strong>de</strong> Aristóteles e a Música da Antiguida<strong>de</strong>,<br />
Paris, 1904.<br />
18 République, Vll, 531 a<br />
19 Arché, ponto <strong>de</strong> partida <strong>de</strong> um sistema.<br />
20 Aristoxène, Elementos Harmônicos, 123, 124<br />
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Platão substimava os músicos empiristas, porque eles adotavam como critério<br />
<strong>de</strong> seus estudos os intervalos e faziam isto, apenas pelo prazer do ouvido 21 e<br />
não pela exatidão das relações sonoras. Platão parece permanecer sempre <strong>de</strong><br />
acordo com Arquitas <strong>de</strong> Tarento (seu contemporâneo) 22 e partidário do método<br />
que busca a medida, em oposição à αισθησις (aisthesis). <strong>As</strong>sim, Platão reconhece<br />
o valor da acústica pitagórica quando diz na República: “ – É provável que, assim<br />
como os olhos foram formados <strong>para</strong> a astronomia, os ouvidos foram formados<br />
<strong>para</strong> o movimento harmônico e as próprias ciências são irmãs uma da outra, tal<br />
como afirmam os pitagóricos e nós, ó Glaucon, concordamos. Ou não será assim?<br />
É respon<strong>de</strong>u ele.” 23 .<br />
Apesar <strong>de</strong> reconhecer o valor das investigações pitagóricas, Platão prefere<br />
permanecer mais ligado ao estudo da ciência harmônica, pois, ele exige acima <strong>de</strong><br />
tudo, que o conhecimento seja exato e reprova <strong>de</strong> algum modo, as experiências<br />
harmonicistas da escola pitagórica, que ao seu ver, limitavam-se a procurar as<br />
relações numéricas, sem perceberem on<strong>de</strong> realmente residiam suas diferenças –<br />
e, isto po<strong>de</strong>mos conferir na República 531 a,b,c quando ele diz: “É que eles fazem<br />
o mesmo que os que se <strong>de</strong>dicam à astronomia. Com efeito, eles procuram os<br />
números nos acor<strong>de</strong>s que escutam, mas não se elevam até à questão <strong>de</strong> observar<br />
quais são os números harmônicos e quais não são – e, por que razão diferem” –<br />
e, Sócrates enfatiza ainda nas Leis: “ – Ora como a empresa é vasta, perguntarlhes-emos<br />
o seu parecer sobre estas matérias e outras ainda além <strong>de</strong>stas. Mas em<br />
todas as circunstâncias manteremos o nosso princípio. – Qual ? – Que não tentem<br />
jamais que os nossos educandos aprendam qualquer estudo imperfeito que não<br />
vá dar ao ponto on<strong>de</strong> tudo <strong>de</strong>ve dar, como dizíamos há pouco, a propósito da<br />
astronomia. Ou não sabes que fazem outro tanto com a harmonia? Efetivamente,<br />
ao medirem os acor<strong>de</strong>s harmônicos e sons uns com os outros, produzem um labor<br />
improfícuo, tal como os astrônomos. – Pelos <strong>de</strong>uses ! É ridículo, sem dúvida, falar<br />
<strong>de</strong> não sei quais intervalos mínimos e apurarem os ouvidos como se fossem <strong>para</strong><br />
captar a voz dos vizinhos; uns afirmam ouvir no meio dos sons um outro som – e,<br />
21 République, Vll, 531 a-b.<br />
22 République, Vll, 530 d-e.<br />
23 Ibi<strong>de</strong>m.<br />
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<strong>As</strong> <strong>Musas</strong>: <strong>fonte</strong> <strong>de</strong> inspiração <strong>para</strong> Platão 163<br />
que o menor intervalo é que <strong>de</strong>ve servir <strong>de</strong> medida; outros ainda sustentam que<br />
é igual aos que já soaram e ambos colocam os ouvidos à frente do espírito.” 24 .<br />
Esse trabalho Platão qualificou como sendo do δαιµονον, esta figura transcen<strong>de</strong>nte<br />
que no Timeu, busca conhecer além dos fenômenos, a exegese da estrutura<br />
do cosmos. Platão concorda com os pitagóricos no que concerne à idéia <strong>de</strong> parentesco<br />
que acreditam existir entre a “astronomia e a música” 25 mas, em seguida,<br />
distancia-se <strong>de</strong>les, voltando-se <strong>para</strong> a “dialética” 26 , que aos seus olhos, conduz ao<br />
Bem e ao Belo. Aristóteles 27 confirma o que Platão expõe na República, dizendo<br />
que o que distinguiu Platão dos pitagóricos, foi essencialmente, as idéias concebidas<br />
como “se<strong>para</strong>das”, a noção <strong>de</strong> fazer nascer o múltiplo da unida<strong>de</strong>, o que tem<br />
por conseqüência, remeter à unida<strong>de</strong>, quer dizer à mônada, a um princípio ontológico,<br />
que é <strong>para</strong> Platão um princípio <strong>de</strong> inteligibilida<strong>de</strong>.<br />
<strong>Musas</strong>: <strong>fonte</strong>s <strong>de</strong> inspiração <strong>para</strong> Platão<br />
A sofística é muito antiga e em geral era praticada <strong>de</strong> uma maneira indireta<br />
e dissimulada, usando a máscara da poesia, da música e do ritual iniciático. Platão<br />
reconheceu nos poetas e nos músicos os primeiros sofistas, que foram precursores<br />
em matéria <strong>de</strong> pedagogia “não intencionalmente, mas pela força das circunstâncias”<br />
28 . <strong>As</strong>sim Homero e Hesíodo são colocados nessa categoria e qualificados com<br />
os títulos <strong>de</strong> “teólogos” ou “crianças dos <strong>de</strong>uses” 29 .<br />
Platão reconhecia neles os especialistas do sagrado, os homens mais dispostos<br />
a falar do que lhes é mais familiar: o que se refere às divinda<strong>de</strong>s. E se ao próprio<br />
Platão não repugna fazer uso do mito, das fábulas, <strong>de</strong> citações poéticas e das cren-<br />
24 République, Vll, 531 c.<br />
25 Ibid., 531 a-b; no Phèdre a imagem que nos dá é semelhante. Ele trata o músico como<br />
um tangedor da lira e seus conhecimentos sobre as tensões das cordas não justificam o<br />
título <strong>de</strong> harmonicista.<br />
26 République, Vll, 504 c.<br />
27 Mét., 987 b 31.<br />
28 Prot., 316 d-e.<br />
29 Timée, 40 d-e.<br />
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164 Zylpha Barros Carvalho do Nascimento<br />
ças populares, é porque ele reconhece na inspiração profética e na poética, um valor<br />
real e um caráter <strong>de</strong> verossimilhança, apesar das críticas que lhe são impostas.<br />
A encarnação perfeita, no plano da realida<strong>de</strong> divina <strong>de</strong>sta <strong>fonte</strong> inspiradora é<br />
a Musa. Ela é a expressão total da noção global <strong>de</strong> Mousikê 30 , “não somente som e<br />
ritmo, porém também lógos vivo” 31 . <strong>As</strong> <strong>Musas</strong> aparecem pois como uma garantia<br />
divina que justifica esse recurso irracional que Platão conce<strong>de</strong> aos artistas.<br />
Contudo o uso dos mitos, das alegorias e dos símbolos tão transpostos<br />
quanto eles sejam, 32 não foi inventado por Platão, já que ele reconhece que “o<br />
melhor das coisas” nos vem pela “mania”, que não significa loucura no sentido<br />
literal da palavra, mas uma inspiração divina ou uma possessão. Platão reconhece<br />
quatro tipos <strong>de</strong> “mania”. Ele remete a Apolo a inspiração divinatória, a Dionísios a<br />
inspiração telestikós, às <strong>Musas</strong> a inspiração poética e a quarta à Afrodite e a Eros.<br />
Pelo que diz respeito à terceira espécie <strong>de</strong> possessão e <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírio ... “este<br />
sentimento toma conta da alma ainda tenra, on<strong>de</strong> nada ainda penetrou, acordando-a<br />
e colocando-a em movimento pelas O<strong>de</strong>s ou qualquer outra poesia – e, embelezando<br />
as inúmeras ações dos antigos, forma aqueles que vêm em seguida” 33 .<br />
No conjunto dos diálogos, o tema da inspiração remete-se antes aos poetas do<br />
que aos músicos. Mas as <strong>Musas</strong> sendo a <strong>fonte</strong> comum dos dois, po<strong>de</strong>r-se-ia referir<br />
às afirmações do filósofo tão bem aos primeiros quanto aos segundos, pois por<br />
sua própria confissão:. “Entre as palavras que são colocadas música e aquelas que<br />
são simplesmente faladas, não tem diferença” 34 .<br />
Na Apologia e no Ion os poetas são com<strong>para</strong>dos aos profetas e Coribantes<br />
35 ; a potência divina os inspira. O poeta e o músico são possuídos por um <strong>de</strong>us.<br />
Seu papel é <strong>de</strong> receber passivamente o que lhe foi ditado: “Quando o poeta está<br />
instalado sobre o tripé da Musa, ele não é mais senhor <strong>de</strong> seu espírito, mas, à<br />
30 J. Festugiere, R.E.G., 1938, p. 196 à propósito da Mousiké, o sentido técnico é a poesia<br />
acompanhada <strong>de</strong> cítara e movimentos ritmicos.<br />
31 Dies, Autour <strong>de</strong> Platon. A transposição platônica.<br />
32 Phèdre, 245 a, 265 b.<br />
33 République, lll, 398 b.<br />
34 Ibid., lll, 398 c-d.<br />
35 V. Goldschmidt, Les Dialogues, pp. 94-109<br />
Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Atas da ANPOF, n o 1, 2001.
<strong>As</strong> <strong>Musas</strong>: <strong>fonte</strong> <strong>de</strong> inspiração <strong>para</strong> Platão 165<br />
maneira <strong>de</strong> uma <strong>fonte</strong>, ele <strong>de</strong>ixa livremente fluir o que lhe for inspirado” 36 . O poeta<br />
é simplesmente o porta-voz do <strong>de</strong>us, como a Pítia em Delfos, ele não po<strong>de</strong><br />
explicar o que ele escreve, nem ensinar aos outros o que ele faz. Como os Coribantes,<br />
que não usam da razão quando dançam, os poetas quando compõem,<br />
tem uma ruptura do equilíbrio mental 37 . Nesse sentido, as concepções do entusiasmo<br />
e do êxtase <strong>de</strong>rivam do papel <strong>de</strong> intermediário que representa o poeta entre<br />
a divinda<strong>de</strong> e os homens 38 .<br />
Essa tese <strong>de</strong> Platão está em contradição com sua concepção da criação<br />
musical fundada sobre o conceito <strong>de</strong> sophia. De toda maneira, nosso filósofo con<strong>de</strong>na<br />
os poetas que não são senão técnicos, sem inspiração. Ele é também hostil<br />
em relação àqueles cuja inspiração é impura 39 . O poeta-músico que po<strong>de</strong> unir as<br />
duas condições: a inspiração pura e ser senhor <strong>de</strong> sua técnica, é unicamente aceito<br />
junto ao legislador. Platão, visivelmente se inspirava nos hinos exemplares do<br />
pitagorismo. 40 No pitagorismo, o hino não é senão um meio <strong>de</strong> fornecer valores<br />
exemplares numa perspectiva educadora 41 . Dessa maneira, Platão formula suas<br />
leis no que concerne à criação artística.<br />
A concepção da Musa, dispensadora <strong>de</strong> inspiração, da qual música e poesia<br />
fazem parte, remonta a uma época bastante antiga. Os pitagóricos aceitaram essa<br />
crença tão antiga <strong>de</strong> que o valor do poeta é <strong>de</strong>vido à sua possessão pelo divino 42 .<br />
No Crátilo, Platão vai mais longe, e dia que “Mousa” e “Mousiké”, <strong>de</strong>rivam <strong>de</strong> “mosthai”,<br />
que significa “estar apaixonado”, “<strong>de</strong>sejar” e é por isso, que a pesquisa e a<br />
filosofia receberam essas <strong>de</strong>nominações 43 . No Fédro, o próprio filósofo é consi<strong>de</strong>rado<br />
ser possuído por um <strong>de</strong>us e que seu pensamento é alado 44 . “eu posso pois dizer,<br />
me parece, que é em vista <strong>de</strong>ssas duas coisas, a coragem e a filosofia que um <strong>de</strong>us<br />
36 Lois, lV, 719 c.<br />
37 Ion, 533 e- 534 d; Apologie, 22 b-c; Lois, lll, 682 a.<br />
38<br />
Ibid., Ion e Apologie<br />
39<br />
Lois, Vll, 801 b-d; lV, 719 c-d.<br />
40<br />
Lois, Vll, 829 e seg; République, X, 607 a.<br />
41<br />
H. Koller, Die Mimesis <strong>de</strong>r Antike, Berne, 1954.<br />
42<br />
P. Boyance, Le culte <strong>de</strong>s Muses chez les philosophes Grecs, Paris, 1936, p. 15, n°2.<br />
43<br />
P. Boyance, La doctrine d’Euthyphron dans le Cratyle, R.E.G., 1941, pp. 141-175.<br />
Crat., 406 a ; também na République, 411 c-412 a.<br />
44 Phèdre, 249 c-d.<br />
Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Atas da ANPOF, n o 1, 2001.
166 Zylpha Barros Carvalho do Nascimento<br />
<strong>de</strong>u aos homens as duas artes: a Música e a Ginástica. Ele não as <strong>de</strong>u <strong>para</strong> alma e<br />
<strong>para</strong> o corpo senão por acessório, mas bem mais por essas duas qualida<strong>de</strong>s : Coragem<br />
e Filosofia, afim <strong>de</strong> que elas se harmonizem juntas, pelo justo grau <strong>de</strong> tensão<br />
ou <strong>de</strong> relaxamento que lhes oferece” 45 . De toda maneira, a força liberadora das<br />
<strong>Musas</strong> é comparável àquela das especulações filosóficas. Platão está convencido<br />
<strong>de</strong>sse fato; a influência pitagórica é provável, se bem que seja difícil <strong>de</strong>fini-la com<br />
precisão. Em todo caso, nosso filósofo permanece ligado à música da tradição 46 .<br />
No Ion, no Fédro e no segundo livro das Leis, o tratamento platônico da<br />
matéria musical é sistemático, enquanto que no Crátilo, ela é consi<strong>de</strong>rada como<br />
aparentemente mais fortuita. Contudo os termos <strong>de</strong> “Mousa” <strong>de</strong> “Mousikós” e <strong>de</strong><br />
“Mousiké” através do conjunto da obra <strong>de</strong> Platão, se <strong>de</strong>fine no seu uso a partir <strong>de</strong><br />
um núcleo central. O papel dos músicos na cida<strong>de</strong> dos Magnetos se limita à organização<br />
<strong>de</strong>sses influxos que eles recebem em estado <strong>de</strong> euforia fecunda. Visadas<br />
egoístas, fora das leis e dos legisladores em matéria musical 47 são reprováveis. O<br />
epíteto <strong>de</strong> “mousikós” é concedido ao homem lúcido e equilibrado, cuja vida interior<br />
é qualificada pela sabedoria, que é a Harmonia Maior 48 . Ao contrário, o profano<br />
no domínio das <strong>Musas</strong>, é colocado no mesmo plano do não-filósofo 49 .<br />
O mito das Cigarras con<strong>de</strong>nsa resumidamente tudo o que Platão quis dizer<br />
em relação à função das <strong>Musas</strong>.<br />
Nesse mito das cigarras que faz ressaltar e ace<strong>de</strong>r a um plano superior a<br />
questão então <strong>de</strong>batida -- àquela da eloqüência – o culto simultaneamente voltado<br />
à Calíope e à Urânia, simboliza a relação estreita e indissociável que se estabelece<br />
entre a ciência harmônica e a astronomia, como se encontrará expressa na República<br />
50 . Da mesma maneira, esse procedimento coloca em evidência as relações<br />
entre as matemáticas e as artes, já que também Calíope representa tão bem a<br />
Musa da eloqüência, do verbo, das artes – e Urânia a Musa da astronomia, da<br />
ciência matemática.<br />
45 République, lll, 4 11 e; cf. Timée, 88 c ; Rép., l, 349 e; Vlll, 548 b.<br />
46 Ibid., lll, 410 a<br />
47 Lois, Vll, 801 c.<br />
48 Lois, lll, 689 c-d; Epin., 991 b.<br />
49 Timée, 73 a; Soph., 253 b.<br />
50 Phèdre, 259, b-d.<br />
Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Atas da ANPOF, n o 1, 2001.