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<strong>Letras</strong><br />

d i g i t a i s<br />

Teses e Dissertações originais <strong>em</strong> formato digital<br />

É do Sonho dos Homens que<br />

uma Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> se Inventa: a poesia<br />

<strong>de</strong> Carlos Pena Filho<br />

Maria <strong>da</strong>s Vitórias Matoso Távora<br />

2004<br />

<strong>Programa</strong> <strong>de</strong><br />

Pós-Graduação<br />

<strong>em</strong> <strong>Letras</strong>


Ficha Técnica<br />

Coor<strong>de</strong>nação do Projeto <strong>Letras</strong> Digitais<br />

Angela Paiva Dionísio e Anco Márcio Tenório Vieira (orgs.)<br />

Consultoria Técnica<br />

Augusto Noronha e Karla Vi<strong>da</strong>l (Pipa Comunicação)<br />

Projeto Gráfico e Finalização<br />

Karla Vi<strong>da</strong>l e Augusto Noronha (Pipa Comunicação)<br />

Digitalização dos Originais<br />

Maria Cândi<strong>da</strong> Paiva Dionízio<br />

Revisão<br />

Angela Paiva Dionísio, Anco Márcio Tenório Vieira e Michelle Leonor <strong>da</strong> Silva<br />

Produção<br />

Pipa Comunicação<br />

Apoio Técnico<br />

Michelle Leonor <strong>da</strong> Silva e Rebeca Fernan<strong>de</strong>s Penha<br />

Apoio Institucional<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pernambuco<br />

<strong>Programa</strong> <strong>de</strong> Pós-Graduação <strong>em</strong> <strong>Letras</strong>


Apresentação<br />

Criar um acervo é registrar uma história. Criar um acervo digital é dinamizar a<br />

história. É com essa perspectiva que a Coor<strong>de</strong>nação do <strong>Programa</strong> <strong>de</strong> Pós-Graduação<br />

<strong>em</strong> <strong>Letras</strong>, representa<strong>da</strong> nas pessoas dos professores Angela Paiva Dionisio e Anco<br />

Márcio Tenório Vieira, criou, <strong>em</strong> nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2006, o projeto <strong>Letras</strong> Digitais: 30<br />

anos <strong>de</strong> teses e dissertações. Esse projeto surgiu <strong>de</strong>ntre as ações com<strong>em</strong>orativas<br />

dos 30 anos do PG <strong>Letras</strong>, programa que teve início com cursos <strong>de</strong> Especialização<br />

<strong>em</strong> 1975. No segundo s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 1976, surgiu o Mestrado <strong>em</strong> Linguística e Teoria<br />

<strong>da</strong> Literatura, que obteve cre<strong>de</strong>nciamento <strong>em</strong> 1980. Os cursos <strong>de</strong> Doutorado <strong>em</strong><br />

Linguística e Teoria <strong>da</strong> Literatura iniciaram, respectivamente, <strong>em</strong> 1990 e 1996. É<br />

relevante frisar que o <strong>Programa</strong> <strong>de</strong> Pós-Graduação <strong>em</strong> <strong>Letras</strong> <strong>da</strong> <strong>UFPE</strong>, <strong>de</strong> longa<br />

tradição <strong>em</strong> pesquisa, foi o primeiro a ser instalado no Nor<strong>de</strong>ste e Norte do País. Em<br />

<strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2008, contava com 455 dissertações e 110 teses <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong>s.<br />

Diante <strong>de</strong> tão grandioso acervo e do fato <strong>de</strong> apenas as pesquisas <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong>s a partir<br />

<strong>de</strong> 2005 possuir<strong>em</strong> uma versão digital para consulta, os professores Angela Paiva<br />

Dionisio e Anco Márcio Tenório Vieira, autores do referido projeto, <strong>de</strong>cidiram<br />

oferecer para a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> acadêmica uma versão digital <strong>da</strong>s teses e dissertações<br />

produzi<strong>da</strong>s ao longo <strong>de</strong>stes 30 anos <strong>de</strong> história. Criaram, então, o projeto <strong>Letras</strong><br />

Digitais: 30 anos <strong>de</strong> teses e dissertações com os seguintes objetivos:<br />

(i) produzir um CD-ROM com as informações fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong>s 469<br />

teses/dissertações <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong>s até <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2006 (autor, orientador, resumo,<br />

palavras-chave, <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa, área <strong>de</strong> concentração e nível <strong>de</strong> titulação);


(ii) criar um Acervo Digital <strong>de</strong> Teses e Dissertações do PG <strong>Letras</strong>, digitalizando<br />

todo o acervo originalmente constituído apenas <strong>da</strong> versão impressa;<br />

(iii) criar o hotsite <strong>Letras</strong> Digitais: Teses e Dissertações originais <strong>em</strong> formato<br />

digital, para publicização <strong>da</strong>s teses e dissertações mediante autorização dos<br />

autores;<br />

(iv) transportar para mídia eletrônica off-line as teses e dissertações digitaliza<strong>da</strong>s,<br />

para integrar o Acervo Digital <strong>de</strong> Teses e Dissertações do PG <strong>Letras</strong>, disponível<br />

para consulta na Sala <strong>de</strong> Leitura César Leal;<br />

(v) publicar <strong>em</strong> DVD coletâneas com as teses e dissertações digitalizados,<br />

organiza<strong>da</strong>s por área concentração, por nível <strong>de</strong> titulação, por orientação etc.<br />

O <strong>de</strong>senvolvimento do projeto prevê ações <strong>de</strong> diversas or<strong>de</strong>ns, tais como:<br />

(i) <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>rnação <strong>da</strong>s obras para procedimento alimentação automática <strong>de</strong><br />

escaner;<br />

(ii) tratamento técnico <strong>de</strong>scritivo <strong>em</strong> meta<strong>da</strong>dos;<br />

(iii) produção <strong>de</strong> Portable Document File (PDF);<br />

(iv) revisão do material digitalizado<br />

(v) procedimentos <strong>de</strong> reenca<strong>de</strong>rnação <strong>da</strong>s obras após digitalização;<br />

(vi) diagramação e finalização dos e-books;<br />

(vii) backup dos e-books <strong>em</strong> mídia externa (CD-ROM e DVD);<br />

(viii) <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> rotinas para regularização e/ou cessão <strong>de</strong> registro <strong>de</strong><br />

Direitos Autorais.<br />

Os organizadores


É do Sonho dos Homens que<br />

uma Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> se Inventa: a poesia<br />

<strong>de</strong> Carlos Pena Filho<br />

Maria <strong>da</strong>s Vitórias Matoso Távora<br />

2004<br />

Copyright © Maria <strong>da</strong>sVitórias Matoso Távora, 2004<br />

Reservados todos os direitos <strong>de</strong>sta edição. Reprodução proibi<strong>da</strong>, mesmo parcialmente,<br />

s<strong>em</strong> autorização expressa do autor.


1<br />

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO<br />

CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS<br />

É DO SONHO DOS HOMENS QUE UMA CIDADE SE INVENTA<br />

- A poesia <strong>de</strong> Carlos Pena Filho –<br />

Recife<br />

2004


2<br />

Maria <strong>da</strong>s Vitórias Matoso Távora<br />

É DO SONHO DOS HOMENS QUE UMA CIDADE SE INVENTA<br />

- A poesia <strong>de</strong> Carlos Pena Filho –<br />

Dissertação <strong>de</strong> Mestrado apresenta<strong>da</strong> ao<br />

<strong>Programa</strong> <strong>de</strong> Pós-Graduação <strong>em</strong> <strong>Letras</strong>, <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pernambuco, como<br />

parte dos requisitos para a obtenção do grau <strong>de</strong><br />

Mestre <strong>em</strong> Teoria <strong>da</strong> Literatura.<br />

Orientadora: Profª Drª Luzilá Gonçalves Ferreira<br />

Recife<br />

2004


3<br />

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO<br />

CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS<br />

É DO SONHO DOS HOMENS QUE UMA CIDADE SE INVENTA<br />

- A poesia <strong>de</strong> Carlos Pena Filho –<br />

Maria <strong>da</strong>s Vitórias Matoso Távora<br />

BANCA EXAMINADORA<br />

______________________________<br />

Profª Drª Luzilá Gonçalves Ferreira<br />

(Orientadora)<br />

___________________________________<br />

Profº Drº Alfredo Adolfo Cordiviola<br />

___________________________________<br />

Profº Drº Antônio Paulo Rezen<strong>de</strong><br />

Dissertação <strong>de</strong> Mestrado apresenta<strong>da</strong> ao<br />

<strong>Programa</strong> <strong>de</strong> Pós-Graduação <strong>em</strong> <strong>Letras</strong>, <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pernambuco, como<br />

parte dos requisitos para a obtenção do grau <strong>de</strong><br />

Mestre <strong>em</strong> Teoria <strong>da</strong> Literatura.<br />

2004


4<br />

AGRADECIMENTOS<br />

O ser humano é o resultado <strong>da</strong> História, <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as conversas e leituras ao longo<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as pessoas com qu<strong>em</strong> teve contato. Está-se s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> diálogo com o<br />

que acontece ao redor. Dessa forma, nossos pensamentos são a composição <strong>de</strong> trocas<br />

constantes, numa interação contínua, com pensamentos <strong>de</strong> terceiros. E essa dissertação é<br />

fruto <strong>da</strong> convivência, ao longo <strong>de</strong>sses dois anos, com os colegas – hoje, amigos – e que<br />

se tornaram co-autores <strong>de</strong>sse trabalho, pela troca <strong>de</strong> idéias e pelas sugestões<br />

bibliográficas e <strong>de</strong> caminhos a ser<strong>em</strong> trilhados.<br />

Palavras são insuficientes para agra<strong>de</strong>cer ao incentivo e apoio <strong>de</strong> todos que<br />

aju<strong>da</strong>ram a construir esse trabalho. Agra<strong>de</strong>ço aos professores: José Rodrigues <strong>de</strong> Paiva,<br />

Yaracil<strong>da</strong> Coimet, Anco Márcio Tenório Vieira, Alfredo Cordiviola, Lourival Holan<strong>da</strong>,<br />

Antônio Paulo Rezen<strong>de</strong>, Sônia Ramalho, Ermelin<strong>da</strong> Ferreira, Sébastien Joachin e Luzilá<br />

Gonçalves Ferreira (orientadora) pelo enriquecedor contato que proporcionaram e a<br />

importância <strong>de</strong> todos para o meu amadurecimento teórico e pessoal.<br />

Agra<strong>de</strong>ço à Tânia Carneiro Leão que tão atenciosamente disponibilizou o acervo<br />

<strong>de</strong> Carlos Pena Filho para pesquisas e aos artistas plásticos; a José Cláudio e Francisco<br />

Brennand, cujas conversas foram bastante eluci<strong>da</strong>tivas para a compreensão do poeta.<br />

A Eraldo e Diva, agra<strong>de</strong>ço <strong>de</strong> forma especial pela atenção, paciência e<br />

profissionalismo.<br />

E agra<strong>de</strong>ço à minha família que tanta paciência teve nos momentos <strong>de</strong> mais<br />

angústia e ansie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Agra<strong>de</strong>ço especialmente ao meu sobrinho Renato, cuja aju<strong>da</strong><br />

técnica foi indispensável à concretização <strong>de</strong>sse trabalho.


5<br />

RESUMO<br />

Criação humana, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> contrapõe-se à natureza. Fenômeno cultural, exerce<br />

influência direta na vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> seus habitantes, nativos ou <strong>de</strong> adoção. É através <strong>de</strong> sua<br />

arquitetura, do traçado <strong>de</strong> suas ruas que gerações passam às seguintes seu modo <strong>de</strong><br />

pensar e sua concepção <strong>de</strong> mundo. Espaço <strong>de</strong> troca por excelência, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> exerce<br />

tamanha atração sobre os indivíduos que extrapola qualquer tentativa <strong>de</strong> compreensão<br />

racional. Tal qual o útero materno, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> confere ao indivíduo segurança e proteção,<br />

conferindo a ca<strong>da</strong> um a própria i<strong>de</strong>ntificação e diferenciação <strong>da</strong> totali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Dessa forma,<br />

po<strong>de</strong>-se compreen<strong>de</strong>r a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> como um lugar fun<strong>da</strong>nte para o ser humano. A relação<br />

entre a pessoa e o espaço <strong>em</strong> que vive é tão intensa quanto primordial, com repercussões<br />

psíquicas profun<strong>da</strong>s. Segundo Octavio Paz, a crítica do estado <strong>de</strong> coisas reinantes é<br />

inicia<strong>da</strong> pelos escritores. A primeira meta<strong>de</strong> do século XX test<strong>em</strong>unhou um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro<br />

“bota-abaixo” dos antigos bairros recifenses, provocando um mal-estar generalizado. Os<br />

jornais <strong>da</strong> época registraram to<strong>da</strong> a polêmica <strong>da</strong>í gera<strong>da</strong>: poetas, romancistas, cronistas,<br />

sociólogos con<strong>de</strong>nando tanta insensatez. Carlos Pena Filho surge, como poeta, nesse<br />

período <strong>de</strong> turbulência e sente necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever sobre sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, sobre o Recife<br />

que ele vê, sente, percebe. Talvez como uma tentativa <strong>de</strong> se reconhecer entre aquelas<br />

edificações, ou melhor “<strong>de</strong>sedificações”, <strong>de</strong> preservar sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> no meio dos<br />

escombros. Através do po<strong>em</strong>a “Guia Prático <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Recife”, Pena Filho sintetiza<br />

essa busca.<br />

Palavras-chave: Carlos Pena Filho – biograf<strong>em</strong>a - ci<strong>da</strong><strong>de</strong>


6<br />

RESUMEN<br />

Creación humana, la ciu<strong>da</strong>d se contrapone a la naturaleza. Fenómeno cultural,<br />

ejerce influencia directa en la vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> sus habitantes, nativos o <strong>de</strong> adopción; es por<br />

medio <strong>de</strong> su arquitectura, <strong>de</strong>l trazado <strong>de</strong> sus calles que generaciones transmiten a las<br />

siguientes su modo <strong>de</strong> pensar y su concepción <strong>de</strong> mundo. Espacio <strong>de</strong> cambio por<br />

excelencia, la ciu<strong>da</strong>d ejerce tan gran<strong>de</strong> atracción sobre los individuos que extrapola<br />

cualquier tentativa <strong>de</strong> comprensión razonable. Como el útero materno, la ciu<strong>da</strong>d<br />

confiere al individuo seguri<strong>da</strong>d y protección, asignándole a ca<strong>da</strong> uno la propia<br />

i<strong>de</strong>ntificación y diferenciación <strong>de</strong> la totali<strong>da</strong>d. De esta manera, se pue<strong>de</strong> compren<strong>de</strong>r la<br />

ciu<strong>da</strong>d como un lugar fun<strong>da</strong>nte para el ser humano. La relación entre la persona y el<br />

espacio en que vive es tan intensa cuanto primordial, con repercusiones psíquicas<br />

profun<strong>da</strong>s. Según Octavio Paz, la crítica <strong>de</strong>l estado <strong>de</strong> cosas reinantes es inicia<strong>da</strong> por los<br />

escritores.Ylaprimeramitad<strong>de</strong>lsigloXX testimonióunver<strong>da</strong><strong>de</strong>ro“bota-abajo”<br />

(<strong>de</strong>molición) <strong>de</strong> los antiguos barrios recifenses, provocando un malestar generalizado.<br />

Los periódicos <strong>de</strong> la época registraron to<strong>da</strong> la polémica genera<strong>da</strong>: poetas, novelistas,<br />

cronistas, sociólogos con<strong>de</strong>nando tanta insensatez. Carlos Pena Filho surge, como poeta,<br />

en ese período <strong>de</strong> turbulencia y siente necesi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> escribir sobre su ciu<strong>da</strong>d, sobre el<br />

Recife que él ve, siente, percibe. Tal vez como una tentativa <strong>de</strong> reconocerse entre<br />

aquellas edificaciones, o mejor, “<strong>de</strong>sedificaciones”, <strong>de</strong> preservar su i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong>d entre los<br />

escombros. A través <strong>de</strong>l po<strong>em</strong>a “Guia Prático <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Recife”, Pena Filho<br />

sintetiza esa búsque<strong>da</strong>.<br />

Palabras-clave: Carlos Pena Filho – biograf<strong>em</strong>a - ciu<strong>da</strong>d


7<br />

SUMÁRIO<br />

Resumo ...............................................................................................................página 02<br />

Apresentação .......................................................................................................página 03<br />

Capítulo I - No Sumidouro do Azul ....................................................................página 06<br />

Mosaico ...................................................................................................página 07<br />

A saí<strong>da</strong> do labirinto ou o fio <strong>de</strong> Ariadne .................................................página 10<br />

Múltiplos diálogos ...................................................................................página 14<br />

Cor e música ............................................................................................página 21<br />

E o poeta se fez pintor .............................................................................página 28<br />

Mergulhando no azul ...............................................................................página 31<br />

Capítulo II – A Poesia <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> ........................................................................página 36<br />

Antes era a fratria ....................................................................................página 37<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s ou vapores? ................................................................................página 42<br />

O paradoxo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> ..............................................................................página 44<br />

O livro <strong>de</strong> registro ...................................................................................página 46<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> .................................................................................página 49<br />

O “bota-abaixo” e os poetas ....................................................................página 51<br />

A minha ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, a tua, a sua, a <strong>de</strong>le, a nossa............................................página 58<br />

Capítulo III – A Crônica <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> ....................................................................página 64<br />

Mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>s ..........................................................................................página 65<br />

A esfinge e a ilusão .................................................................................página 69<br />

Nasce um poeta .......................................................................................página 71<br />

Nor<strong>de</strong>ste <strong>de</strong>sterrado .................................................................................página 76<br />

O cronista <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> ................................................................................página 84<br />

Conclusão ............................................................................................................página 90<br />

Referências Bibliográficas ..................................................................................página 92<br />

Anexos ..............................................................................................................página 100<br />

Anexo I ..................................................................................................página 100<br />

Anexo II ................................................................................................página 101<br />

Anexo III ...............................................................................................página 102<br />

Anexo IV ...............................................................................................página 106<br />

Anexo V ................................................................................................página 111


8<br />

APRESENTAÇÃO<br />

Apresentar Carlos Pena Filho. Será que ele realmente precisa ser apresentado?<br />

Carlos poeta. Recife <strong>de</strong> Carlos. Um e outra coisa se confun<strong>de</strong>m, pois é <strong>da</strong> imaginação<br />

dos homens que uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> se inventa. E Carlos Pena Filho criou a sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, o seu<br />

Recife, que tomou formato único, com to<strong>da</strong>s as sutilezas e nuances percebi<strong>da</strong>s pelo<br />

poeta Carlos. O Carlos do azul, do Bar Savoy – que, infelizmente, também chegou ao<br />

fim <strong>de</strong> sua existência, Carlos inspirador <strong>de</strong> Quincas Berro d’Água, Carlos <strong>da</strong>s<br />

<strong>de</strong>clamações <strong>de</strong> poesia pelas ruas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>...<br />

Mas, como estu<strong>da</strong>r a obra <strong>de</strong> um poeta que, <strong>em</strong> soneto-testamento, pe<strong>de</strong> para que<br />

não se façam disparates prolongando <strong>em</strong> l<strong>em</strong>branças sua longa vi<strong>da</strong> fartamente vivi<strong>da</strong>?<br />

A resposta v<strong>em</strong> através <strong>de</strong> Roland Barthes e o conceito <strong>de</strong> biograf<strong>em</strong>a, criado por ele:<br />

“Se eu fosse um escritor morto, como gostaria que minha vi<strong>da</strong> se reduzisse, pelos<br />

cui<strong>da</strong>dos <strong>de</strong> um biógrafo amigo e <strong>de</strong>senvolto, a alguns pormenores, a alguns gostos, a<br />

algumas inflexões, digamos: ‘biograf<strong>em</strong>as’, cuja distinção e mobili<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong>riam<br />

viajar fora <strong>de</strong> qualquer <strong>de</strong>stino e vir tocar, à maneira dos átomos epicurianos, algum<br />

corpo futuro, prometido à mesma dispersão.” Inflexões várias cab<strong>em</strong> na obra <strong>de</strong> Carlos<br />

Pena Filho, relativamente pequena, exatos 73 po<strong>em</strong>as, mas <strong>de</strong> uma profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> t<strong>em</strong>ática surpreen<strong>de</strong>nte para escritor tão jov<strong>em</strong>.<br />

Morto aos 31 anos, <strong>de</strong>ixou um legado <strong>de</strong> apenas 4 livros, porém que permite<br />

uma gama <strong>de</strong> reflexões imensa. Seu primeiro po<strong>em</strong>a, “Marinha”, publicado no Diário <strong>de</strong><br />

Pernambuco, revela o quanto se po<strong>de</strong>ria esperar <strong>da</strong>quele poeta adolescente. “O T<strong>em</strong>po<br />

<strong>da</strong> Busca”, primeiro livro publicado, <strong>de</strong>monstra o <strong>em</strong>penho <strong>de</strong> Carlos Pena <strong>de</strong> se<br />

compreen<strong>de</strong>r e, concomitant<strong>em</strong>ente, compreen<strong>de</strong>r o ser humano. Essa busca parte <strong>de</strong><br />

uma visão macrocósmica, com o olhar virado para o além-mar e sua mitologia. Em<br />

“M<strong>em</strong>órias do Boi Serapião”, seu segundo livro, o poeta já foca o olhar para o<br />

continente, numa eterna tentativa <strong>de</strong> auto-i<strong>de</strong>ntificação. Em “A Vertig<strong>em</strong> Lúci<strong>da</strong>”, esse<br />

perfil i<strong>de</strong>ntitário começa a ser <strong>de</strong>lineado, apesar <strong>da</strong> sua luci<strong>de</strong>z ain<strong>da</strong> estar,


9<br />

paradoxalmente, um pouco <strong>em</strong>baça<strong>da</strong>. Finalmente - e infelizmente seu último livro, o<br />

“Livro Geral”, con<strong>de</strong>nsa os três anteriores com alguns po<strong>em</strong>as inéditos.<br />

Dessa breve, no entanto, profícua obra, alguns pontos foram escolhidos para esse<br />

estudo. Não que sejam obrigatoriamente os mais importantes, diria apenas que se<br />

<strong>de</strong>stacaram por ter<strong>em</strong> se mostrado mais provocativos, ou porque criaram uma relação<br />

afetiva maior. Outros po<strong>de</strong>riam ter sido escolhidos, como a abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> social <strong>em</strong> seus<br />

po<strong>em</strong>as, ou a i<strong>de</strong>ologia por eles revela<strong>da</strong>, ou ain<strong>da</strong> a sua biografia. Mas, segundo<br />

Gilberto Freyre, não há “ninguém nas mo<strong>de</strong>rnas letras brasileiras, mais<br />

transi<strong>de</strong>ológico do que ele. Mais indiferente a i<strong>de</strong>ologias segregadoras.” A abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong><br />

social, <strong>de</strong> certa maneira, foi feita. Em relação à biografia, já foi muito b<strong>em</strong> estu<strong>da</strong><strong>da</strong> por<br />

Edilberto Coutinho, no “Livro <strong>de</strong> Carlos: Carlos Pena Filho, poesia e vi<strong>da</strong>”.<br />

Resolvi<strong>da</strong> a linha a ser trabalha<strong>da</strong> – biograf<strong>em</strong>a, restava <strong>de</strong>finir os “pormenores”<br />

e as “inflexões” que mais me chamavam atenção. A primeira inflexão a se <strong>de</strong>stacar foi o<br />

dialogismo presente <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> parte dos po<strong>em</strong>as, quer seja na forma, no conteúdo, nas<br />

referências explícitas ou nas subliminares - segundo Bakthin, a palavra está cheia <strong>de</strong><br />

ecos dos enunciados dos outros. Em segui<strong>da</strong>, chamou atenção a forte presença <strong>da</strong>s cores<br />

– a cor local, na qual Boileau diz <strong>de</strong>ver o poeta se apoiar para que sua poesia flua; a cor<br />

do estilo do poeta: suas características; e a simbologia <strong>da</strong>s cores - pois nas poesias <strong>de</strong><br />

Carlos Pena Filho elas não se restring<strong>em</strong> à mera função estética já que possu<strong>em</strong> o po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong>, <strong>de</strong> acordo com Jung, exprimir pensamento, sentimento, intuição e sensação. O olho<br />

humano consegue visualizar setecentos matizes <strong>de</strong> cores diferentes e Pena Filho as<br />

recria <strong>em</strong> seus po<strong>em</strong>as.<br />

A próxima inflexão é a <strong>da</strong> imag<strong>em</strong>. Dizendo-se um pintor frustrado, Carlos Pena<br />

pintou com a palavra: ao invés <strong>de</strong> tela, um papel <strong>em</strong> branco. De ca<strong>da</strong> traço <strong>de</strong> sua<br />

caneta, surgia uma imag<strong>em</strong>, uma imagística, <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> por G. Freyre, sensual e<br />

comunicativa. Apesar <strong>da</strong> pouca i<strong>da</strong><strong>de</strong>, a preocupação com a transcendência, a tentativa<br />

<strong>de</strong>compreen<strong>de</strong>roserhumano,enxergarsuaalmaeoqueéamorteeoquev<strong>em</strong><strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong>la, está b<strong>em</strong> presente na sua obra, principalmente nos sonetos “Testamento do


10<br />

Hom<strong>em</strong> Sensato” e “Soneto <strong>da</strong> Sexta-Feira <strong>da</strong> Paixão”. A última inflexão refere-se à<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ela possui função marcante na poesia <strong>de</strong> Carlos Pena Filho, uma e outro se<br />

confundindo, tornando–se um só el<strong>em</strong>ento, tornando-se sinônimos. Enten<strong>de</strong>r o paradoxo<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, sua importância para a formação <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> humana, os reflexos na psique<br />

<strong>de</strong> seus habitantes <strong>da</strong>s agressões sofri<strong>da</strong>s pela ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, as diferentes formas <strong>de</strong> se<br />

perceberaci<strong>da</strong><strong>de</strong>ecomoCarlosPenaFilho<strong>de</strong>screveoRecife,formataasuaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

particular e única. São <strong>de</strong>sses átomos epicurianos que este trabalho vai buscar perceber<br />

a forma e sua trajetória.


11<br />

NO SUMIDOURO DO AZUL<br />

Sintonia, retrato do artista plástico pernambucano Gil Vicente


12<br />

Capítulo I<br />

NO SUMIDOURO DO AZUL<br />

Mosaico<br />

Escrevo esse nome, e estou certo<br />

que o inscrevo na eterni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Manuel Ban<strong>de</strong>ira<br />

“[...] ain<strong>da</strong> não pu<strong>de</strong> aceitar a idéia <strong>de</strong> que já não estás, porque ain<strong>da</strong> não pu<strong>de</strong><br />

conformar-me com a injustiça <strong>de</strong> tua morte, porque ain<strong>da</strong> não posso conceber a tua<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong> s<strong>em</strong> o seu poeta magro e angélico, ah! Carlinhos, tu eras contra a injustiça e a<br />

tristeza, contra a <strong>de</strong>solação e o hom<strong>em</strong> solitário.<br />

[...]<br />

Foste tão boa gente que muito t<strong>em</strong>po vai passar antes que surja outro poeta<br />

assim, para ser tão amado por seu povo.<br />

Eras frágil <strong>de</strong> carne e osso, tão leve na balança, um vento mais forte podia te<br />

arrastar como uma folha <strong>de</strong> árvore ou um pe<strong>da</strong>ço roto <strong>de</strong> po<strong>em</strong>a. Por isso talvez<br />

s<strong>em</strong>pre me <strong>de</strong>ste a idéia <strong>de</strong> um anjo por amor perdido nas ruas do Recife. Mas como<br />

eras <strong>de</strong>nso <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> por <strong>de</strong>ntro, como eras tão hom<strong>em</strong> e tão povo, tão pernambucano e<br />

universal! Como cabia <strong>em</strong> tão frágil estrutura tanta esperança do hom<strong>em</strong>, tanta revolta<br />

do hom<strong>em</strong>, tanta terra <strong>de</strong> canaviais e caatingas, tanto boi triste na campina tanta<br />

solidão <strong>de</strong> cangaceiro, todo o <strong>de</strong>solado sertão, to<strong>da</strong> a vivi<strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, e mais a doçura <strong>da</strong><br />

amiza<strong>de</strong>, <strong>da</strong> mais terna, <strong>da</strong> mais doce amiza<strong>de</strong>? Eras talvez um anjo, eras s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>


13<br />

um anjo extraviado, pois só assim se explica fosses hom<strong>em</strong> tão completo, poesia tão<br />

solidária.<br />

Teu clima era o amor, a amiza<strong>de</strong>, a ternura, o <strong>da</strong>r-se a ca<strong>da</strong> instante, a<br />

preocupação pelos outros, eras o cantor <strong>de</strong> todos os que necessitam e se erguiam para<br />

conseguir.<br />

[...]<br />

Foste amor e solidão <strong>da</strong> terra, ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e sertão, dor e esperança. Mas havia uma<br />

atmosfera tua, um clima, um ar na tua angélica humani<strong>da</strong><strong>de</strong>. Era uma atmosfera azul,<br />

quase infantil e mágica. Azul, Carlinhos, esse mistério que tu foste. Azul, Carlinhos, tua<br />

morte <strong>de</strong> sangue coagulado, azul na tua <strong>de</strong>finitiva permanência <strong>de</strong> poeta, tão terrível<br />

azul este momento. 1<br />

O que mais me atraiu na poesia <strong>de</strong> Carlos Pena Filho quando surgiu o ain<strong>da</strong><br />

menino e já tão artista, telúrico s<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser renovador no Recife <strong>da</strong> expressão<br />

po<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> língua portuguesa? Creio que o mesmo que o atraiu à minha prosa: a<br />

sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> à cor. A sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> às cores. A particular sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> ao ver<strong>de</strong> e ao<br />

azul.<br />

Como que fixou, <strong>de</strong> maneira <strong>de</strong>finitiva, no jov<strong>em</strong> poeta do Recife, o mais forte<br />

dos característicos <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> foi artista, artistíssimo na sua expressão poética. Como<br />

nenhum poeta <strong>de</strong> sua geração – po<strong>de</strong>ria acrescentar-se – transi<strong>de</strong>ológico. Como<br />

nenhum, no Brasil <strong>de</strong> seus dias, ecológico: recifencíssimo. Como nenhum, misto <strong>de</strong><br />

pintor e <strong>de</strong> escritor, no seu uso <strong>de</strong> palavras e <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse uso, <strong>de</strong> imagens colori<strong>da</strong>s.<br />

Ele próprio se consi<strong>de</strong>rava ‘um pintor frustrado’.<br />

1 AMADO, Jorge. Carlinhos. In: Livro Geral. Tânia Carneiro Leão (org. e seleção). Recife:Gráfica e<br />

Editora Liceu, 1999,pp. 9-10


14<br />

É característico <strong>de</strong> Carlos Pena Filho ter <strong>da</strong>do a alguns dos seus po<strong>em</strong>as títulos<br />

que confirmam nele o artista pictórico a servir-se por vezes <strong>de</strong> palavras como se<br />

serviria <strong>de</strong> tintas. A escrever, pintando com palavras, como notou Renato [Carneiro<br />

Campos] e vêm notando outros <strong>de</strong> seus críticos. De um <strong>de</strong> seus sonetos chegou a dizer<br />

que era ‘raspado <strong>da</strong>s telas <strong>de</strong> Aluísio Magalhães’. De outro que era ‘ retrato breve do<br />

adolescente tropical’, as palavras ‘retrato’, ‘adolescente’ e ‘tropical’ como que juntas,<br />

para <strong>de</strong>finir<strong>em</strong> as constantes <strong>de</strong> sua personali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> artista; o pintor através <strong>de</strong><br />

palavras, o s<strong>em</strong>pre adolescente, o ecologicamente tropical.<br />

[...]<br />

Diferenças <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>s, nunca nos distanciaram. N<strong>em</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias. Ninguém –<br />

acentue-se – nas mo<strong>de</strong>rnas letras brasileiras, mais transi<strong>de</strong>ológico do que ele. Mais<br />

indiferente a i<strong>de</strong>ologias segregadoras. O ver<strong>de</strong> não chegou a significar para ele o<br />

chamado Integralismo. N<strong>em</strong> o vermelho, o Comunismo. A poesia, a arte, a música, a<br />

paisag<strong>em</strong>, as por Camões chama<strong>da</strong>s ‘belas formas’ – inclusive as <strong>da</strong>s mulheres – lhe<br />

bastavam para as suas vivências líricas, artísticas, estéticas, s<strong>em</strong> que <strong>de</strong>ixasse <strong>de</strong><br />

bo<strong>em</strong>iamente estimar os encontros <strong>de</strong> bar com amigos <strong>em</strong> torno creio mais <strong>de</strong> chopes<br />

do que uísque.<br />

[...]<br />

Foi solidário vivente e convivente com a parte <strong>de</strong>sse universo mais carnalmente<br />

sua: O Brasil cuja língua enriqueceu plasticamente com seus versos. O Brasil cuja<br />

literatura abrilhantou com sua palavra lírica e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, lúci<strong>da</strong>. E <strong>de</strong>ntro do<br />

Brasil, o Nor<strong>de</strong>ste, Pernambuco, o Recife. 2<br />

2 FREYRE, Gilberto. Carlos Pena Filho. In: Livro Geral, Tânia Carneiro Leão (org. e sel.).<br />

Recife:Gráfica e Editora Liceu, 1999, pp. 12-17


15<br />

Esse poeta, que po<strong>de</strong> ser <strong>em</strong> tantos momentos raro e quintessenciado, soube, nos<br />

t<strong>em</strong>as <strong>da</strong> terra natal, apoiar-se firm<strong>em</strong>ente nos metros e no estilo do povo, escrevendo<br />

os <strong>de</strong>liciosos po<strong>em</strong>as <strong>de</strong> Nor<strong>de</strong>sterro, on<strong>de</strong> canta Olin<strong>da</strong>, Fazen<strong>da</strong> Nova, o ‘episódio<br />

sinistro’ <strong>de</strong> Virgulino, as m<strong>em</strong>órias do boi Serapião, e o ‘regresso’ ao sertão, rio<br />

acima, ‘construindo o entar<strong>de</strong>cer’, escrevendo o ‘guia prático’ <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Recife,<br />

todo o Recife, com o seu centro e os seu arrabal<strong>de</strong>s, po<strong>em</strong>a on<strong>de</strong> tenho, mais que na<br />

Aca<strong>de</strong>mia , garanti<strong>da</strong> a minha [<strong>de</strong> Manuel Ban<strong>de</strong>ira] imortali<strong>da</strong><strong>de</strong>.” 3<br />

A saí<strong>da</strong> do labirinto ou o fio <strong>de</strong> Ariadne<br />

Como é que o senhor, eu, os<br />

restantes próximos, somos, no<br />

visível?<br />

Guimarães Rosa<br />

Roland Barthes, no livro “A Câmara Clara”, fez um estudo sobre a fotografia.<br />

Percebeu, porém, que to<strong>da</strong>s as formas <strong>de</strong> fotografia – <strong>em</strong>píricas, retóricas ou estéticas –<br />

são exteriores ao objeto, s<strong>em</strong> relação com sua essência, com o advento que a provocou,<br />

a foto não se distinguindo do seu referente. Para se efetuar essa distinção, é preciso o<br />

necessário conhecimento e a reflexão, pois a foto transforma o sujeito <strong>em</strong> objeto: um<br />

retrato pintado, por mais s<strong>em</strong>elhante que seja, não é uma fotografia, <strong>da</strong>í o advento <strong>da</strong><br />

morte, o espectro: “A Foto é como um teatro primitivo, como um Quadro vivo, a<br />

figuração <strong>da</strong> face imóvel e pinta<strong>da</strong> sob a qual v<strong>em</strong>os os mortos.” 4 Contudo, esse sujeito<br />

uno, ao ser fotografado, torna-se múltiplo, pois não se constitui mais apenas <strong>da</strong>quele<br />

ente que se julga ser, mas <strong>de</strong>sse mais aquele que gostaria que o julgass<strong>em</strong> ser, mais o<br />

que o fotógrafo o julga ser e, por fim, mais aquele captado pelas lentes <strong>da</strong> câmara, visto<br />

3 BANDEIRA,Manuel. Carlos Pena Filho. In: Livro Geral, Tânia Carneiro Leão (org. e sel.).<br />

Recife:Gráfica e Editora Liceu, 1999, p. 11<br />

4 BARTHES,Roland. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro:Nova Fronteira,1984, p.54.


16<br />

que há diversas formas <strong>de</strong> se ler uma imag<strong>em</strong>. Como a fotografia, o espelho com seu<br />

jogo especular revela as diversas faces <strong>de</strong> uma imag<strong>em</strong> nele refleti<strong>da</strong>.<br />

Espelhos <strong>de</strong> diversos formatos e tamanhos (côncavos, convexos, ondulados,<br />

curvos, planos, etc), distribuídos <strong>de</strong> forma a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>, têm o po<strong>de</strong>r tanto <strong>de</strong> multiplicar<br />

infinitamente a imag<strong>em</strong> refleti<strong>da</strong> quanto <strong>de</strong> alterar-lhe a forma achatando, alongando,<br />

engor<strong>da</strong>ndo, afilando... É primordial, então, a educação do olhar. Educado, treinado, o<br />

olhar passa a possuir uma maior sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma maior acui<strong>da</strong><strong>de</strong> visual, tornando-se<br />

capaz <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> perceber o mundo a sua volta com maior perspicácia, capaz <strong>de</strong><br />

ver, inclusive, além e através <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> refleti<strong>da</strong> ou, ain<strong>da</strong>, escolher o foco que se<br />

<strong>de</strong>seja observar. Tal possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, vislumbra-se também no <strong>em</strong>prego do conceito <strong>de</strong><br />

biograf<strong>em</strong>a, <strong>de</strong> Barthes:<br />

Se eu fosse um escritor, já morto, como gostaria que minha<br />

vi<strong>da</strong> se reduzisse, pelos cui<strong>da</strong>dos <strong>de</strong> um biógrafo amigo e <strong>de</strong>senvolto, a<br />

alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos:<br />

‘biograf<strong>em</strong>as’, cuja distinção e mobili<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong>riam viajar fora <strong>de</strong><br />

qualquer <strong>de</strong>stino e vir tocar, à maneira dos átomos epicurianos, algum<br />

corpo futuro, prometido `a mesma dispersão. 5<br />

Foi mais que longa a vi<strong>da</strong> que eu vivi, / para ser <strong>em</strong> l<strong>em</strong>branças prolonga<strong>da</strong>. 6<br />

Como sair <strong>de</strong>ssa encruzilha<strong>da</strong>, ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira cila<strong>da</strong> enre<strong>da</strong><strong>da</strong> por Carlos Pena Filho, poeta<br />

que, na sua exagera<strong>da</strong> sensatez, <strong>de</strong>ixou <strong>em</strong> soneto-testamento seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> não ser<br />

molestado?<br />

O labirinto que se tornou esse entrecruzamento <strong>de</strong> caminhos, que aos poucos<br />

oferece saí<strong>da</strong>, constitui um impasse que impõe <strong>de</strong> forma imperiosa o seu enredo<br />

dificultando, assim, o <strong>de</strong>scortinar <strong>da</strong> saí<strong>da</strong>. Des<strong>em</strong>aranhar essa trama é sair <strong>da</strong> caverna.<br />

Porém, por si só, a visão n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre é suficiente para tirar o indivíduo <strong>da</strong> escuridão: o<br />

5 BARTHES.Sa<strong>de</strong>, Fourier,Loyola, São Paulo:Brasiliense,1990.p.12<br />

6 PENA F º,Carlos.Soneto Testamento do Hom<strong>em</strong> Sensato. Livro Geral, Tânia Carneiro Leão (org. e sel.).<br />

Recife:Gráfica e Editora Liceu, 1999, p. 105


17<br />

olho, órgão sensível, capaz <strong>de</strong> captar a luz exterior ao t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que filtra a interior,<br />

permite que as duas se mistur<strong>em</strong>, provocando uma sensação que é transmiti<strong>da</strong> até a<br />

alma. Daí, que o olho, estando impedido <strong>de</strong> ver, provoca a incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> a alma<br />

“adquirir o saber propriamente dito. [...] N<strong>em</strong> o olhar n<strong>em</strong> a alma são intrinsecamente<br />

<strong>de</strong>ficientes. Basta trazer-lhes a luz para que sua ‘performance’ seja perfeita. [...]<br />

Enquanto a alma, prisioneira do corpo, se <strong>de</strong>tiver no espetáculo do sensível, não<br />

possuirá o saber. Para atingi-lo, ela <strong>de</strong>verá <strong>de</strong>sviar seu olhar <strong>da</strong>s coisas engendra<strong>da</strong>s e<br />

perecíveis, e dirigi-los para os objetos <strong>de</strong> uma outra região, as Formas imutáveis e<br />

eternas.” 7 No entanto, é imprescindível chamar atenção para o fato <strong>de</strong> que “Platão não<br />

sugere que Formas e coisas sensíveis sejam espécies do gênero ‘objeto’. [...] O saber<br />

platônico não nos dá a posse segura dos objetos. É antes um ‘sprit <strong>de</strong> finesse’ que sabe<br />

manipular <strong>da</strong> melhor forma possível os logói – argumentos ou razões.” 8 Dessa forma,<br />

po<strong>de</strong>-se perceber o fenômeno <strong>da</strong> sinopse – capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> abarcar o múltiplo com um só<br />

olhar – que, segundo Platão, caracteriza o dialético.<br />

Descartes surge <strong>em</strong> contraponto a esta opinião, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo um espírito<br />

“perspicaz”, que “olha <strong>de</strong> perto, e do mais perto possível. E não se gaba <strong>de</strong> ter vista<br />

suficient<strong>em</strong>ente penetrante para dissipar a obscuri<strong>da</strong><strong>de</strong> a qual está con<strong>de</strong>nado o resto<br />

dos homens. [...] A única superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> do espírito ‘perspicaz’ está <strong>em</strong> <strong>de</strong>tectar com<br />

maior acui<strong>da</strong><strong>de</strong> essas coisas ‘conheci<strong>da</strong>s por si mesmas’.” 9 Para Descartes, o ato <strong>de</strong><br />

ver,porsisó,jágaranteavali<strong>da</strong><strong>de</strong>doqueévisto.Paraofilósofofrancês,aintuiçãoéa<br />

mais certa <strong>da</strong>s operações do espírito, não permitindo a persistência <strong>de</strong> nenhuma dúvi<strong>da</strong><br />

<strong>em</strong> relação ao que perceb<strong>em</strong>os ou compreen<strong>de</strong>mos.<br />

A visão, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong>, é <strong>de</strong>staque <strong>em</strong> estudos e reflexões <strong>de</strong> estudiosos.<br />

Alguns, como Lucrécio, a relacionam com o nascer – até hoje quando uma mulher t<strong>em</strong><br />

filho, diz<strong>em</strong> que ela a <strong>de</strong>u a luz – e, conseqüent<strong>em</strong>ente, a falta <strong>de</strong> luz é relaciona<strong>da</strong> com<br />

7 LEBRUN,Gerard.Sombra e Luz <strong>em</strong> Platão. In: O Olhar. Novaes (org). São Paulo:Cia <strong>da</strong>s <strong>Letras</strong>, 1988,<br />

p.25<br />

8 i<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p.25<br />

9 ib.,id.,p.22


18<br />

a morte, com as trevas. “O visível é epifania tão sagra<strong>da</strong> que não precisa dos <strong>de</strong>uses, e<br />

o céu, pacificado, esplen<strong>de</strong> <strong>de</strong> luz difusa.” 10<br />

Há, no entanto, coisas que os olhos não alcançam, estruturas mínimas. Portanto,<br />

<strong>de</strong>vido a essa pequenez e sutileza, é exigi<strong>da</strong> a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> imaginação. Tal<br />

capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>, por sua vez, proporciona à alma o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> enxergar <strong>de</strong> forma<br />

microscópica, <strong>de</strong> ver com “os olhos <strong>da</strong> alma”. Para Lucrécio, “o olhar poético se<br />

prolonga e se aguça na ‘teoria atômica que vai infinitamente além do olhar<br />

orgânico’.” 11<br />

Os epicuristas, <strong>em</strong> sua teoria, explicavam o olhar como um fenômeno múltiplo<br />

no qual as partículas atômicas, no seu caos, criam imagens confusas cabendo ao olho<br />

captá-las e organizá-las. É primordial apren<strong>de</strong>r a olhar: olhar <strong>de</strong> perto, olhar <strong>de</strong> míope<br />

do qual na<strong>da</strong>, nenhum <strong>de</strong>talhe escapa; e olhar <strong>de</strong> longe, global, analisando o todo, sua<br />

engrenag<strong>em</strong> e as conseqüências <strong>de</strong> seus movimentos. O ato <strong>de</strong> olhar é perseverança, é<br />

superar a pressa, é ter calma, é se <strong>de</strong>ter a <strong>de</strong>talhes e <strong>de</strong>scobrir os múltiplos aspectos do<br />

objeto para, ao fim do processo, recuperar o todo num nível maior <strong>de</strong> percepção; é<br />

<strong>de</strong>spojamento que liberta os olhos <strong>da</strong>s ilusões; é trabalho, pois é ação, exige atenção<br />

para que, assim, possa ocorrer a percepção; e, por fim, é também contradição visto que<br />

“só a visão diacrônica revela o processo tantas vezes conflituoso, que forma a<br />

aparência.” 12 O olhar visionário <strong>de</strong>sfoca a visão habitual. Portanto, cabe ao visionário<br />

encontrar o campo <strong>de</strong> equilíbrio entre a cultura (previsto) e o interdito (imprevisto),<br />

alcançando então a iluminação profana. Para conseguir ver o novo, o inusitado, é<br />

necessário se afastar um pouco <strong>da</strong> sua reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, fechar os olhos por alguns instantes,<br />

esvaziar a mente <strong>de</strong> todos os conceitos e preconceitos e, aos poucos, ir abrindo os olhos<br />

procurando enxergar através <strong>da</strong> luz, buscando ajustar-se à clari<strong>da</strong><strong>de</strong> para, assim, se<br />

encontrar como vi<strong>da</strong> e <strong>em</strong>oção.<br />

10 Lucrécio, apud Bosi. Fenomenologia do Olhar. In: O Olhar. Novaes (org.), p.68<br />

11 i<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m,p.69<br />

12 id.,ib.,p.85


19<br />

Uma obra <strong>de</strong> arte – po<strong>em</strong>a, romance, escultura, pintura, arquitetura, etc – é uma<br />

construção <strong>em</strong> parceria, resultando cinqüenta por cento do esforço do artista que a<br />

elaborou e cinqüenta por cento do leitor, pois é o olhar que a observa que compl<strong>em</strong>enta<br />

a obra. É o modo <strong>de</strong> olhar, <strong>de</strong> perceber a obra <strong>de</strong> Carlos Pena Filho que vai indicar a<br />

saí<strong>da</strong> do labirinto. Como no biograf<strong>em</strong>a, essa acui<strong>da</strong><strong>de</strong> visual, essa educação do olhar,<br />

direcionou “algumas inflexões” à maneira dos átomos epicurianos, formando imagens<br />

afetivas refleti<strong>da</strong>s no ato <strong>da</strong> leitura dos po<strong>em</strong>as <strong>de</strong> Pena Filho: imagens refleti<strong>da</strong>s no<br />

dialogismo, nas cores, na metalinguag<strong>em</strong>, na transcendência e na crônica <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Múltiplos diálogos<br />

O ser humano é o resultado <strong>da</strong> História, <strong>de</strong> suas leituras ao longo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, <strong>de</strong><br />

to<strong>da</strong>s as conversas e <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as pessoas com qu<strong>em</strong> teve contato. Está-se s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong><br />

diálogo com o que acontece ao redor <strong>de</strong> si, com a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma época, o período<br />

histórico e o meio <strong>em</strong> que se vive. A linguag<strong>em</strong> do poeta é fun<strong>da</strong>mental nesse projeto,<br />

pois é através <strong>de</strong>la que o indivíduo interpreta sua história, fazendo associações<br />

construtivas livres, provocando rupturas. Pela transgressão <strong>da</strong> palavra surge o novo que<br />

leva a pensar o diferente, a mu<strong>da</strong>nça. A linguag<strong>em</strong> torna-se, então instrumento <strong>de</strong><br />

libertação esclarecendo ou escon<strong>de</strong>ndo o latente e o manifesto, pois a palavra está<br />

impregna<strong>da</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia e experiência individual. A palavra <strong>em</strong> si, isola<strong>da</strong>, é apenas<br />

uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> lingüística, mas inseri<strong>da</strong> num contexto, torna-se uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicação<br />

discursiva. Isto é, o enunciado relaciona-se com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> – tanto do escritor quanto<br />

do leitor. Sendo produzido s<strong>em</strong>pre num contexto social, todo enunciado configura um<br />

diálogo, visto que é uma relação entre pessoas. Tal diálogo po<strong>de</strong> ocorrer diretamente<br />

entre os falantes, como po<strong>de</strong> ocorrer também numa interação com os enunciados.<br />

O sentido do enunciado é, por sua vez, o resultado <strong>de</strong> dois fatores: a intenção, o<br />

objetivo que o autor <strong>de</strong>seja atingir ao elaborar o texto e o momento <strong>em</strong> que este texto é


20<br />

criado, ou seja, a forma como o autor percebe os acontecimentos. O enunciado é fruto<br />

<strong>da</strong> i<strong>de</strong>ologia, é uma atitu<strong>de</strong> subjetiva, é um diálogo on<strong>de</strong> a palavra possui três aspectos:<br />

“como palavra neutra <strong>da</strong> língua, que não pertence a na<strong>da</strong>; como palavra alheia, cheia<br />

<strong>de</strong> ecos, dos enunciados <strong>de</strong> outros, que pertence a outras pessoas; e, finalmente, como<br />

minha palavra, porque, posto que eu a uso <strong>em</strong> uma situação <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> e com uma<br />

intenção discursiva <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>, a palavra está compenetra<strong>da</strong> <strong>de</strong> minha<br />

expressivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.” 13 Dessa forma, nossos pensamentos são a composição <strong>de</strong> diálogos<br />

constantes, numa interação contínua, com pensamentos <strong>de</strong> terceiros. Como as palavras,<br />

um enunciado isolado não existe, não possui sentido algum <strong>de</strong>vido a sua natureza social<br />

e dialógica, pois ele é, tão somente, o laço <strong>de</strong> união entre diálogos passados e os ain<strong>da</strong><br />

por vir.<br />

Todo texto possui no seu teor o explícito, o claro, a palavra articula<strong>da</strong>; e o<br />

presumido, o não-dito e, até, o interdito. E a poesia, com seu po<strong>de</strong>r con<strong>de</strong>nsador, é um<br />

meio rico <strong>em</strong> articulações sociais, on<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> palavra está satura<strong>da</strong> <strong>de</strong> intenções vela<strong>da</strong>s.<br />

Cabe ao leitor <strong>de</strong>cifrar o código para obter a revelação. É o contexto, a experiência <strong>de</strong><br />

vi<strong>da</strong> do leitor, que indica o caminho a percorrer para atingir a epifania, já que ca<strong>da</strong><br />

palavra está impregna<strong>da</strong> <strong>de</strong> juízo <strong>de</strong> valor – do autor, do leitor e do teor <strong>da</strong> escrita. A<br />

escrita do poeta é resultado <strong>de</strong> como o mundo reflete <strong>em</strong> sua alma e esse reflexo é tanto<br />

psicológico como i<strong>de</strong>ológico, cuja soma traduz-se no intercâmbio social.<br />

O hom<strong>em</strong> é uma metáfora <strong>de</strong> si mesmo, pois quer compreen<strong>de</strong>r a construção do<br />

mundo pela palavra. S<strong>em</strong> a linguag<strong>em</strong>, não existiria a cultura, n<strong>em</strong> a história, n<strong>em</strong> o ser<br />

humano, pois ela não só dá nome às coisas como também socializa. A imag<strong>em</strong> que<br />

v<strong>em</strong>os refleti<strong>da</strong> no espelho esfumaçado, instiga-nos a nos procurar por trás <strong>de</strong> nossa<br />

imag<strong>em</strong>, <strong>da</strong>s imagens <strong>da</strong>s metáforas, numa tentativa <strong>de</strong> ampliar o ilusório, posto que há<br />

muitas leituras possíveis <strong>de</strong> uma mesma face. E essas leituras serão feitas <strong>em</strong> função do<br />

saber e <strong>da</strong> cultura <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> olha, num dialogismo enciclopédico entre o leitor/ouvinte, o<br />

13 BAKTHIN, apud FREITAS,Maria Teresa <strong>de</strong> Assunção Vygotsky e Bakthin. Psicologia e Educação: um<br />

intertexto. 4 ed.São Paulo:Editora Ática,2002,p.137


21<br />

autor/falante e o enunciado. Contudo, enciclopédico não no sentido <strong>de</strong> fechado, mas <strong>de</strong><br />

variado, diversificado. Segundo Sébastien Joachim:<br />

O que se propõe uma poética, ou conjunto <strong>de</strong> regras<br />

constituintes, do Imaginário literário é a análise do além <strong>da</strong>s imagens,<br />

ou melhor, <strong>da</strong>s constelações ou re<strong>de</strong>s/agrupamentos <strong>de</strong> imagens [...],<br />

[pois] é pela atualização <strong>em</strong> imagens concretas, repeti<strong>da</strong>s, e piscando<br />

umas para as outras nesta repetição mesma, que o ‘schème’ ou T<strong>em</strong>a<br />

visual se torna atual e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, se auto<strong>de</strong>signa a nossa<br />

atenção. [...] É construir uma sintaxe ou modo eficaz <strong>de</strong> relacionar os<br />

<strong>de</strong>talhes (imagens individuais) e seu respectivo conteúdo, com o<br />

propósito <strong>de</strong> captar uma forma <strong>de</strong> resposta do ser-no-mundo à crucial<br />

questão <strong>de</strong> sua finitu<strong>de</strong>. [...] É como se a imaginação criadora tentasse<br />

na sua oficina, arrolar sortilégios, meios hipnóticos, encantos, magias<br />

para narcotizar o t<strong>em</strong>po e neutralizar o seu <strong>de</strong>sdobramento, sua<br />

progressão. 14<br />

Ao analisar a poesia <strong>de</strong> Carlos Pena Filho, percebe-se o diálogo permanente com<br />

as leituras efetua<strong>da</strong>s ao longo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Influenciado por Camões, Bau<strong>de</strong>laire, Rimbaud e<br />

Fernando Pessoa, sua poesia reflete, <strong>de</strong> algum modo, essa intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, quer seja na<br />

forma, quer no conteúdo, nas referências explícitas ou nas subliminares. No po<strong>em</strong>a<br />

intitulado “A Charles Bau<strong>de</strong>laire”, Pena Filho tece um diálogo com o poeta francês<br />

intertextualizando o po<strong>em</strong>a “Albatroz” e o contexto histórico <strong>da</strong> França <strong>da</strong> época <strong>em</strong><br />

que o soneto foi escrito:<br />

A Charles Bau<strong>de</strong>laire 15<br />

Carlos também<br />

Embora s<strong>em</strong><br />

14 JOACHIM,Sébastien. O papel <strong>da</strong> teoria no ensino <strong>da</strong> literatura.Revista Investigações – Lingüística e<br />

Teoria Literária. Vol. 13 e 14. Recife: <strong>UFPE</strong>, <strong>de</strong>z/2001<br />

15 PENA Fº,Carlos.Livro Geral, p.103. Daqui para a frente as referências aos po<strong>em</strong>as <strong>de</strong> Carlos Pena<br />

Filho serão indica<strong>da</strong>s pelas iniciais LG (Livro Geral) segui<strong>da</strong>s do número <strong>da</strong> página <strong>em</strong> que o po<strong>em</strong>a se<br />

encontra. Po<strong>em</strong>as <strong>de</strong> outros autores serão <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente referenciados.


22<br />

flores n<strong>em</strong> aves,<br />

vinho n<strong>em</strong> naves,<br />

eu te r<strong>em</strong>eto<br />

este soneto<br />

para saberes<br />

se acaso o leres,<br />

queexistealguém<br />

no mundo, c<strong>em</strong><br />

anos após,<br />

que não vaiou<br />

e n<strong>em</strong> magoou<br />

teu albatroz.<br />

Como Bau<strong>de</strong>laire, Carlos Pena elege o soneto como forma preferi<strong>da</strong> por ser<br />

con<strong>de</strong>nsado, fazendo com que a idéia brote com mais intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>: “Tudoficab<strong>em</strong>no<br />

soneto: a farsa, o lirismo, a paixão, a fantasia, a meditação filosófica. Há a beleza do<br />

metal e <strong>da</strong>s pedras preciosas b<strong>em</strong> trabalha<strong>da</strong>s.” 16 Daí, por ter forma con<strong>de</strong>nsa<strong>da</strong>,<br />

mostra-se i<strong>de</strong>al para o fazer poético, pois <strong>em</strong> poesia, <strong>de</strong>ve-se apenas sugerir, fazer<br />

alusões. Cabe ao leitor interpretá-las. O diálogo entre os dois po<strong>em</strong>as vai <strong>da</strong> forma<br />

(soneto tetrassilábico; rimas <strong>em</strong>parelha<strong>da</strong>s – aabb – ora toantes, ora soantes; e<br />

enjamb<strong>em</strong>ent – <strong>em</strong>bora s<strong>em</strong> / flores n<strong>em</strong> aves / [...] / eu te r<strong>em</strong>eto / este soneto / [...] /<br />

que existe alguém / no mundo [...]) para culminar numa <strong>de</strong>claração explícita <strong>de</strong><br />

admiração (existe alguém / no mundo c<strong>em</strong> / anos após, / que não vaiou / e n<strong>em</strong> magoou<br />

/ teu albatroz”), fazendo referência à reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> incompreensão vivi<strong>da</strong> por Bau<strong>de</strong>laire,<br />

explicitando, além <strong>da</strong> admiração a conseqüente influência absorvi<strong>da</strong> do poeta francês.<br />

16 Trecho <strong>de</strong> carta <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire ao crítico Armand Fraisse. In: As Flores do Mal Trad.Jamil Almansur<br />

Had<strong>da</strong>d.São Paulo:Difusão Européia do Livro,1958, pp. 70-71


23<br />

O dialogismo po<strong>de</strong> ocorrer <strong>de</strong> várias maneiras. Em “D. Sebastião, A Caminho <strong>da</strong><br />

África”, on<strong>de</strong> a voz representante <strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong> suplica a Deus pelo sucesso na<br />

<strong>em</strong>preita<strong>da</strong> <strong>em</strong> que, <strong>em</strong> nome <strong>da</strong> fé, fiéis se aventuram numa longa e arrisca<strong>da</strong> viag<strong>em</strong><br />

pelos mares para enfrentar os mouros infiéis - como recompensa <strong>de</strong> trabalhos e<br />

<strong>de</strong>dicação passados. O diálogo ocorre na forma com Fernando Pessoa – versos<br />

distribuídos <strong>em</strong> três quadras, e Bau<strong>de</strong>laire – acréscimo do dístico no final do po<strong>em</strong>a;<br />

com Camões, no estilo <strong>em</strong>pregado – verbos no imperativo (Olhai, Se<strong>de</strong>, não <strong>de</strong>ixeis),<br />

invocação a Deus (Senhor; Deus), intertextualização com a Bíblia (não <strong>de</strong>ixeis que volte<br />

s<strong>em</strong> vitória), grafia arcaica (nau, sole<strong>da</strong><strong>de</strong>) e na referência histórica ( D. Sebastião, rei<br />

<strong>de</strong> Portugal morto <strong>em</strong> batalha contra os mouros).<br />

D. Sebastião, A Caminho <strong>da</strong> África 17<br />

A Ariano Suassuna<br />

Olhai, Senhor, para estas naus e ve<strong>de</strong><br />

a quanto obrigaram reino e cristan<strong>da</strong><strong>de</strong>;<br />

atrás <strong>de</strong> nós já se ergue esta pare<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> vento e mar e t<strong>em</strong>po e sole<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e à frente nos esperam sol e se<strong>de</strong><br />

e mais que se<strong>de</strong> e sol, crua sau<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

que pelas noites s<strong>em</strong> limites há <strong>de</strong><br />

freqüentar nosso abismo impuro. Se<strong>de</strong><br />

pois tão po<strong>de</strong>roso e justo quanto <strong>de</strong>ve<br />

ser um Deus para um servo e um sol<strong>da</strong>do<br />

que a proeza tamanha enfim se atreve<br />

só porque julga ser do vosso agrado.<br />

Mas não <strong>de</strong>ixeis que volte s<strong>em</strong> vitória:<br />

<strong>em</strong>bora perca a vi<strong>da</strong>, encontre a glória.<br />

17 LG,p.49


24<br />

Gilberto Mendonça Teles 18 refere-se aos dois primeiros versos <strong>da</strong> primeira<br />

estrofe (Olhai, Senhor, para estas naus e ve<strong>de</strong> / a quanto obrigam reino e cristan<strong>da</strong><strong>de</strong>)<br />

como <strong>de</strong> “expressões típicas <strong>de</strong> Camões”. Estilisticamente, neste po<strong>em</strong>a foram<br />

<strong>em</strong>pregados múltiplos recursos, numa preocupação formal constante, como o quiasmo<br />

(e à frente nos esperam sol e se<strong>de</strong> / e mais que se<strong>de</strong> e sol, crua sau<strong>da</strong><strong>de</strong>); enjamb<strong>em</strong>ents<br />

(que pelas noites s<strong>em</strong> limites há <strong>de</strong> /freqüentar nosso abismo impuro. Se<strong>de</strong> / pois tão<br />

piedoso e justo quanto <strong>de</strong>ve /serum Deus para um servo e um sol<strong>da</strong>do); reforço<br />

homonímico ( se<strong>de</strong> – substantivo f<strong>em</strong>inino, e Se<strong>de</strong> – modo imperativo do verbo ser). No<br />

plano sintático, há o <strong>em</strong>prego do polissín<strong>de</strong>to, presente nos 4º, 5º e 6º versos (<strong>de</strong> vento e<br />

mar e t<strong>em</strong>po e sole<strong>da</strong><strong>de</strong> / e à frente nos esperam sol e se<strong>de</strong> / e mais que se<strong>de</strong> e sol, crua<br />

sau<strong>da</strong><strong>de</strong>). Essa preocupação formal <strong>de</strong>ve-se à influência simbolista do poeta francês<br />

Charles Bau<strong>de</strong>laire.<br />

O Mistério do T<strong>em</strong>po no Campo 19<br />

A Al<strong>de</strong>mar Conrado<br />

Muitas vezes a vi, <strong>em</strong> invernos iguais,<br />

<strong>de</strong> costas para a tar<strong>de</strong>, <strong>em</strong> frente ao muro <strong>em</strong> ruínas.<br />

Indiferente ao campo, aos vastos canaviais<br />

e à paisag<strong>em</strong> <strong>de</strong> bois e <strong>de</strong> meninas.<br />

Enquanto bois e vacas ruminavam<br />

o ver<strong>de</strong> <strong>da</strong> paisag<strong>em</strong> sob a chuva,<br />

os seus olhos, no muro, apascentavam<br />

as l<strong>em</strong>branças antigas, uma luva,<br />

um vestido estival que se per<strong>de</strong>u,<br />

o sorriso, <strong>em</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro, nos espelhos,<br />

Diogo, Duarte, Diniz nomes tão velhos<br />

que o t<strong>em</strong>po, s<strong>em</strong> r<strong>em</strong>orsos, dissolveu.<br />

18 in: Camões e a poesia brasileira, apud SARMENTO,Ângela. Ecos <strong>da</strong> poesia portuguesa na poesia <strong>de</strong><br />

Carlos Pena Filho. Revista do Centro <strong>de</strong> Estudos Brasileiros.Terceira Marg<strong>em</strong>. Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Porto,2002, n.3.<br />

19 LG,p.101


25<br />

Muitasvezesavi,masján<strong>em</strong>sei<br />

se a via ou imaginava, ou se ela havia<br />

e eu, s<strong>em</strong> saber, a imaginá-la <strong>de</strong>ilhe<br />

todo esse olhar <strong>de</strong> azul melancolia.<br />

Uma tar<strong>de</strong>, entre vento e chuva, disse:<br />

Ah, essa dor <strong>de</strong> ver que amor é guerra!<br />

E l<strong>em</strong>brou Catherine e Heatchcliff<br />

nas ári<strong>da</strong>s charnecas <strong>da</strong> Inglaterra.<br />

Uma nuv<strong>em</strong> <strong>de</strong> mágoa a envolveu<br />

eoseucorpoficounuevestido<br />

até que, aos poucos, <strong>de</strong>sapareceu<br />

no silêncio do campo entar<strong>de</strong>cido.<br />

Nesse terceiro ex<strong>em</strong>plo <strong>da</strong> presença do dialogismo nos po<strong>em</strong>as <strong>de</strong> Carlos Pena<br />

Filho, o título já dá indícios do que aguar<strong>da</strong> o leitor. O próprio título r<strong>em</strong>ete ao<br />

simbolismo através <strong>da</strong> nebulosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong> imprecisão, <strong>da</strong> inexatidão que a palavra<br />

“mistério” sugere. A cor cinza se faz presente ao longo do po<strong>em</strong>a através <strong>de</strong> sugestões<br />

(“<strong>em</strong> invernos iguais”, “muro <strong>em</strong> ruínas”, “bois e vacas ruminavam [...] sob a chuva”,<br />

“l<strong>em</strong>branças antigas”, “entre vento e chuva”) e mesmo quando há a presença <strong>de</strong> cores<br />

ela é dissolvi<strong>da</strong> pela chuva ou pela melancolia - ou ain<strong>da</strong>, é ári<strong>da</strong> e inculta, on<strong>de</strong> só<br />

brotam plantas rasteiras como nas ári<strong>da</strong>s charnecas <strong>da</strong> Inglaterra. Reforçandoopeso<br />

do t<strong>em</strong>po transcorrido, <strong>de</strong>ixando as l<strong>em</strong>branças ca<strong>da</strong> vez mais r<strong>em</strong>otas, o poeta<br />

intertextualizou a história fazendo referência a três personagens históricos portugueses,<br />

provavelmente Diogo Pires, o moço – escultor português nascido <strong>em</strong> Coimbra no séc.<br />

XVI; Dom Duarte (1391-1438), rei <strong>de</strong> Portugal e um dos maiores escritores medievais<br />

portugueses; e Dom Diniz, rei-trovador nascido <strong>em</strong> Lisboa <strong>em</strong> 1261 e falecido <strong>em</strong> 1325.<br />

Gran<strong>de</strong> incentivador <strong>da</strong> cultura, fundou a Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa, <strong>em</strong> 1291.<br />

Para reforçar a belicosi<strong>da</strong><strong>de</strong> do amor, impossibilitando-o, l<strong>em</strong>brou dos<br />

protagonistas do romance “O Morro dos Ventos Uivantes”, <strong>de</strong> Emile Brontë, Catherine


26<br />

e Heatchcliff. Estilisticamente, esse po<strong>em</strong>a é nota<strong>da</strong>mente <strong>de</strong> tendência simbolista: o<br />

rigor formal com versos <strong>de</strong>cassilábicos, presença <strong>de</strong> rimas (cruza<strong>da</strong>s - abab),<br />

enjamb<strong>em</strong>ents (Enquanto bois e vacas ruminavam / o ver<strong>de</strong> <strong>da</strong> paisag<strong>em</strong> sob a chuva, /<br />

os seus olhos, no muro, apascentavam / as l<strong>em</strong>branças antigas, uma luva, [...] Muitas<br />

vezes a vi, mas n<strong>em</strong> sei /seaviaou imaginava, ou se ela havia / e eu, s<strong>em</strong> saber, a<br />

imaginá-la <strong>de</strong>i- /lhetodo esse olhar <strong>de</strong> azul melancolia. [...] até que, aos poucos,<br />

<strong>de</strong>sapareceu / no silêncio do campo entar<strong>de</strong>cido) e a presença <strong>de</strong> paradoxo (e oseu<br />

corpo ficou nu e vestido). Dando ênfase à imprecisão do título, os verbos ora aparec<strong>em</strong><br />

no pretérito perfeito, ora no pretérito imperfeito <strong>de</strong>monstrando que a vi<strong>da</strong> tinha ficado<br />

restritaaopassado:jánãoémais.<br />

Cor e música<br />

Escrever as cores é literário,<br />

musical.<br />

José Cláudio, pintor<br />

“No princípio existe Blue. Depois v<strong>em</strong> White, e <strong>de</strong>pois v<strong>em</strong> Black, e antes do<br />

começo existe Brown.” 20 Assim, Paul Auster inicia seu conto “Fantasma”: o mundo<br />

originando-se <strong>da</strong>s cores – azul, branco, preto marrom... Mas, <strong>em</strong> relação às artes, a<br />

palavra cor t<strong>em</strong> conotações distintas: a cor do estilo refere-se a uma ou mais<br />

características que mais se <strong>de</strong>stacam, mais relevo têm, na obra <strong>de</strong> um artista. É o que<br />

configura sua originali<strong>da</strong><strong>de</strong>, seu vigor. Sua força v<strong>em</strong> do pitoresco, <strong>da</strong> vivaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s<br />

expressões (regionais, arcaicas, populares, truculentas, banais, com o <strong>em</strong>prego <strong>de</strong> gírias,<br />

etc), do <strong>em</strong>prego <strong>de</strong> estilos gramaticais variados e expressivos, do vigor <strong>da</strong>s figuras <strong>de</strong><br />

estilo – suas combinações contrastes surpreen<strong>de</strong>ntes, e do ritmo b<strong>em</strong> marcado.<br />

20 AUSTER, Paul. Fantasmas. In: A Trilogia <strong>de</strong> Nova York Trad.Rubens Figueiredo.São Paulo:Cia <strong>da</strong>s<br />

<strong>Letras</strong>,1999, p.151


27<br />

A cor local, por sua vez, é a reprodução <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes e características particulares<br />

<strong>de</strong> uma região ou <strong>de</strong> uma época. É alcança<strong>da</strong> através <strong>de</strong> informações geográficas e<br />

históricas, como a <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong> época, linguag<strong>em</strong>, termos técnicos, nomes próprios e <strong>de</strong><br />

locali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, dos costumes e <strong>da</strong> maneira <strong>de</strong> pensar. Com o passar do t<strong>em</strong>po, ca<strong>da</strong><br />

movimento literário utiliza esta técnica <strong>de</strong> maneiras diversas, <strong>de</strong> acordo com a tendência<br />

do momento, para atingir seus objetivos: os clássicos ativeram-se mais aos <strong>de</strong>talhes<br />

exteriores, preocupados <strong>em</strong> alcançar a mais perfeita verossimilhança. No século XVIII,<br />

as atenções foram direciona<strong>da</strong>s para os países exóticos e a antigui<strong>da</strong><strong>de</strong>, numa tentativa<br />

<strong>de</strong> evasão. O Romantismo <strong>de</strong>dicou-se ao local, ao regional para atingir a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

também a evasão, para tanto, fez uso <strong>em</strong> abundância <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes interiores e exteriores.<br />

Os parnasianos e os realistas, <strong>de</strong>vido à tendência positivista e cientificista, utilizaram<br />

tanto <strong>de</strong>talhes externos como internos para atingir a exatidão. Já os poetas do século<br />

XX, não se ativeram à cor local n<strong>em</strong> se preocuparam <strong>em</strong> fornecer <strong>de</strong>talhes que criass<strong>em</strong><br />

a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Surge, então, o anacronismo como modo <strong>de</strong> obter dissonâncias fantasistas ou<br />

para <strong>de</strong>stacar o caráter mo<strong>de</strong>rno dos mitos trabalhados. Para Boileau, a criação <strong>de</strong> um<br />

po<strong>em</strong>a exige um caminho a ser percorrido, <strong>de</strong>scrito na “Arte Poética”:<br />

Arte Poética 21<br />

Boileau<br />

Seja qual for o assunto tratado, engraçado ou sublime,<br />

Que s<strong>em</strong>pre o bom senso esteja <strong>em</strong> acordo com a rima:<br />

Um e outro parec<strong>em</strong> <strong>em</strong> vão se odiar.<br />

A rima é uma escrava e <strong>de</strong>ve obe<strong>de</strong>cer.<br />

.........................................................<br />

Antes <strong>de</strong> escrever apren<strong>de</strong>i a pensar.<br />

.........................................................<br />

O que se concebe b<strong>em</strong> se enuncia claramente,<br />

E as palavras para o dizer chegam facilmente.<br />

.........................................................<br />

21 Boileau, Art Poétique, I


28<br />

Trabalhe muito, qualquer que seja a or<strong>de</strong>m que vos apressa,<br />

E não se ponha a serviço <strong>de</strong> uma louca rapi<strong>de</strong>z<br />

........................................................<br />

Apressai-vos lentamente, e s<strong>em</strong> per<strong>de</strong>r a corag<strong>em</strong>,<br />

Vinte vezes recomeçai vosso trabalho;<br />

S<strong>em</strong> cessar <strong>da</strong>i-lhe polimento e novo polimento;<br />

Acrescentai às vezes, e freqüent<strong>em</strong>ente apagai.<br />

Bom senso, razão, reflexão, domínio do enunciado e muito trabalho, aconselha o<br />

poeta clássico francês. Conhecer plenamente o t<strong>em</strong>a para que, <strong>de</strong>ssa forma, as palavras<br />

fluam. Porém, é necessário resistir à tentação <strong>de</strong> apressar-se inadverti<strong>da</strong>mente. A esses<br />

conselhos, Carlos Pena Filho acrescenta a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> o poeta se <strong>de</strong>ixar levar pela<br />

correnteza <strong>da</strong>s l<strong>em</strong>branças <strong>da</strong> infância ou optar pela cor local, contudo o bom senso e a<br />

disposição para buscar a palavra i<strong>de</strong>al <strong>de</strong>v<strong>em</strong> estar s<strong>em</strong>pre presentes:<br />

Para fazer um Soneto 22<br />

A Tomaz Seixas<br />

Tome um pouco <strong>de</strong> azul, se a tar<strong>de</strong> é clara<br />

e espere pelo instante ocasional.<br />

Nesse curto intervalo Deus prepara<br />

e lhe oferta a palavra inicial.<br />

Aí, adote uma atitu<strong>de</strong> avara:<br />

se você preferir a cor local,<br />

não use mais que o sol <strong>de</strong> sua cara<br />

e um pe<strong>da</strong>ço <strong>de</strong> fundo <strong>de</strong> quintal.<br />

Se não, procure o cinza e essa vagueza<br />

<strong>da</strong>s l<strong>em</strong>branças <strong>da</strong> infância, e não se apresse,<br />

antes, <strong>de</strong>ixe levá-lo a correnteza.<br />

22 LG,p. 100


29<br />

Mas ao chegar ao ponto <strong>em</strong> que se tece<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> escuridão a vã certeza,<br />

ponha tudo <strong>de</strong> lado e então comece.<br />

Outra conotação <strong>da</strong> palavra cor, refere-se a ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s faixas <strong>de</strong> um espectro<br />

<strong>de</strong> luz resultante <strong>da</strong> <strong>de</strong>composição <strong>de</strong> um feixe óptico, ou mais simplesmente reflexo<br />

<strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s <strong>de</strong> luz. A simbologia <strong>da</strong>s cores é universal. Em todos os continentes e entre<br />

todos os povo, o simbolismo <strong>da</strong> cor permanece s<strong>em</strong>pre e sobretudo como fun<strong>da</strong>mento<br />

do pensamento humano, quer no campo psicológico, quer no religioso. As sete cores do<br />

arco-íris correspon<strong>de</strong>riam às sete notas musicais, aos sete dias <strong>da</strong> s<strong>em</strong>ana, etc, criando<br />

assim um microcosmo. Para Jung, as cores exprim<strong>em</strong> as principais funções psíquicas do<br />

ser humano: azul – pensamento, vermelho – sentimento, amarelo – intuição, ver<strong>de</strong> –<br />

sensação. Algumas cores irradiam mais luz que outras provocando um agrupamento <strong>em</strong><br />

dois blocos distintos: os tons frios (do roxo ao azul) e os tons quentes (do vermelho ao<br />

ver<strong>de</strong>). Essa diferença <strong>de</strong> irradiação cria uma sensação <strong>de</strong> movimento: os tons frios<br />

avançando e os tons quentes recuando, o que provoca a ilusão <strong>da</strong> terceira dimensão na<br />

pintura. No campo religioso, segundo “a tradição cristã, a cor é uma participação <strong>da</strong><br />

luz cria<strong>da</strong> e inicia<strong>da</strong>. [...] A cor simboliza uma força ascensional no jogo <strong>de</strong> sombra e<br />

luz.” 23 O azul é a mais profun<strong>da</strong>, imaterial, fria e pura <strong>da</strong>s cores. Sua pureza per<strong>de</strong><br />

apenas para o vazio total do branco neutro. Segundo o artista plástico Francisco<br />

Brennand, “o azul não é propriamente uma cor, é um espaço” 24 e, nesse espaço, o olhar<br />

mergulha profun<strong>da</strong>mente s<strong>em</strong> encontrar obstáculo, per<strong>de</strong>ndo-se no infinito. Sua<br />

imateriali<strong>da</strong><strong>de</strong> cria o vazio: exato, puro e frio. E nessa vaguidão os movimentos, os sons<br />

e as formas <strong>de</strong>saparec<strong>em</strong> <strong>de</strong>smaterializados no caminho do infinito, transformando o<br />

real no imaginário: “Entrar no azul é [...]: passar para o outro lado do espelho. [...]<br />

Impávido, indiferente, não estando <strong>em</strong> nenhum outro lugar a não ser <strong>em</strong> si mesmo, o<br />

23 DAVS, apud CHEVALIER e GEERBRANT. Dicionário <strong>de</strong> Símbolos, (mitos, costumes, gestos,<br />

formas, figuras,cores, números).Trad. Vera <strong>da</strong> Costa e Silva et alii.Rio <strong>de</strong> Janeiro:J. Olympio,2002,p.277<br />

24 Em conversa por telefone, <strong>em</strong> 26/03/2004. To<strong>da</strong>s as citações e referências a Brennand foram retira<strong>da</strong>s<br />

<strong>de</strong>ssa entrevista.


30<br />

azul não é <strong>de</strong>ste mundo, sugere uma idéia <strong>de</strong> eterni<strong>da</strong><strong>de</strong> tranqüila e altaneira, que é<br />

sobre-humana – ou inumana.” 25<br />

O ver<strong>de</strong> por sua vez, situa-se entre o azul e o amarelo, sendo <strong>de</strong>nominado <strong>de</strong> cor<br />

secundária por originar-se <strong>da</strong> combinação <strong>de</strong>ssas duas cores. O vermelho, por ser a<br />

única <strong>da</strong>s três cores primárias que não entra na sua composição, é sua cor<br />

compl<strong>em</strong>entar. O ver<strong>de</strong> é mediador entre o calor e o frio, o alto e o baixo, é uma cor<br />

tranqüilizadora, refrescante. Simboliza a vi<strong>da</strong>, a esperança. É a cor <strong>da</strong> água, <strong>da</strong> força, <strong>da</strong><br />

longevi<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong> reflexão. O azul e o ver<strong>de</strong> eram indicados, pelos astecas, por uma única<br />

palavra, indistintamente. Para este povo, o simbolismo <strong>da</strong>s pedras azuis ou azulver<strong>de</strong>s<br />

era duplo: <strong>de</strong> um lado, representava a seca e a fome; <strong>de</strong> outro, a fertili<strong>da</strong><strong>de</strong>, o<br />

renascimento.<br />

Influenciado pelos poetas franceses Charles Bau<strong>de</strong>laire e Arthur Rimbaud,<br />

Carlos Pena Filho faz relação entre o som e as cores. O recurso <strong>da</strong> música e do senso<br />

plástico é abun<strong>da</strong>nte na sua poesia. Denominado o “poeta do azul” – Renato Carneiro<br />

Campos contabilizou <strong>em</strong> 40 o número <strong>de</strong> vezes <strong>em</strong> que Pena Filho cita a cor azul e <strong>em</strong><br />

torno <strong>de</strong> 30 as que cita a cor ver<strong>de</strong> - Carlos Pena faz <strong>de</strong> seus po<strong>em</strong>as uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira<br />

aquarela: azul, amarelo, ver<strong>de</strong>, negro, verdágua, rubro, branco, azulescido, cinzento,<br />

azulver<strong>de</strong>, ouroazul, aguaver<strong>de</strong>, brancazul e, ain<strong>da</strong>, a cor do grito, o azul melancolia, a<br />

cor violenta, o ver<strong>de</strong> parado, o azul antigo, o azul ausente e a música <strong>da</strong>s cores. O olho<br />

humano consegue visualizar setecentos matizes <strong>de</strong> cores diferentes e na poesia <strong>de</strong> Pena<br />

Filho, eles se faz<strong>em</strong> presentes.<br />

Soneto <strong>da</strong>s Definições 26<br />

Não falarei <strong>de</strong> coisas, mas <strong>de</strong> inventos<br />

e <strong>de</strong> pacientes buscas no esquisito.<br />

Em breve, chegarei à cor do grito<br />

à música <strong>da</strong>s cores e dos ventos.<br />

25 CHEVALIER e GEERBRANT. Dicionário <strong>de</strong> Símbolos, p. 107<br />

26 LG,p. 110


31<br />

Multiplicar-me-ei <strong>em</strong> mil cinzentos<br />

(<strong>de</strong>sta maneira, lúcido, me evito)<br />

e estes pés cansados <strong>de</strong> granito<br />

saberei transformar <strong>em</strong> cataventos.<br />

Daí, o meu <strong>de</strong>sprezo a jogos claros<br />

e nunca comparados ou medidos<br />

como estes meus, ilógicos, mas raros.<br />

Daí também, a enorme divergência<br />

entre os dias e os jogos, divertidos<br />

e feitos <strong>de</strong> beleza e improcedência.<br />

Neste soneto on<strong>de</strong> o título sugere uma louvação ao <strong>de</strong>finido, ao exato e preciso,<br />

o leitor que incorrer por este caminho vai seguir uma trilha falsa. Apesar do título –<br />

“Soneto <strong>da</strong>s Definições”, e <strong>de</strong> ter optado por uma forma clássica <strong>em</strong> soneto<br />

<strong>de</strong>cassilábico, com a presença <strong>de</strong> rimas rígi<strong>da</strong>s (interpola<strong>da</strong>s – abba) e <strong>da</strong> cadência<br />

rítmica, Carlos Pena elabora um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro manifesto contra a poesia beletrista,<br />

coerente e b<strong>em</strong> comporta<strong>da</strong>, talvez como crítica à geração neo-parnasiana <strong>de</strong> 45.<br />

Paradoxalmente a sua estrutura e título, esse po<strong>em</strong>a é um clamor pelo novo, pelo raro e<br />

inusitado, <strong>de</strong>seja atingir a “harmonia musical” <strong>da</strong>s cores e dos ventos. O poeta, ao<br />

contrário dos românticos, não quer ser o centro <strong>da</strong>s atenções – o peso que lhe cabe na<br />

vi<strong>da</strong>, transformará <strong>em</strong> brisa, <strong>em</strong> leveza, como as asas <strong>de</strong> Pégasos. Ao previsível, opta<br />

pelo claro-escuro imprevisível.<br />

Soneto do Desmantelo Azul 27<br />

A Samuel Mac Dowell Filho<br />

Então, pintei <strong>de</strong> azul os meus sapatos<br />

por não po<strong>de</strong>r pintar <strong>de</strong> azul as ruas,<br />

<strong>de</strong>pois, vesti meus gestos insensatos<br />

27 LG,p. 77


32<br />

e colori, as minhas mãos e as tuas.<br />

Para extinguir <strong>em</strong> nós o azul ausente<br />

e aprisionar no azul as coisas gratas,<br />

enfim, nós <strong>de</strong>rramamos simplesmente<br />

azul sobre os vestidos e as gravatas.<br />

E afogados <strong>em</strong> nós, n<strong>em</strong> nos l<strong>em</strong>bramos<br />

que no excesso que havia <strong>em</strong> nosso espaço<br />

pu<strong>de</strong>sse haver <strong>de</strong> azul também cansaço.<br />

E perdidos <strong>de</strong> azul nos cont<strong>em</strong>plamos<br />

e vimos que entre nós nascia um sul<br />

vertiginosamente azul. Azul.<br />

O uso <strong>da</strong>s cores é uma licença poética e a insistência <strong>de</strong> Carlos Pena Filho <strong>em</strong><br />

cima do azul cria uma metáfora poética. Questionado sobre a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> transpor o<br />

“Soneto do Desmantelo Azul” para as telas e quais os efeitos que disso po<strong>de</strong>riam surgir,<br />

o pintor José Cláudio pon<strong>de</strong>rou que “se passasse para a tela, po<strong>de</strong>ria ficar prosaico.<br />

Pintura literária não existe passando para uma tela, o po<strong>em</strong>a é o mundo <strong>da</strong> palavra<br />

escrita. Ficaria menor na tela.” 28 Zé Cláudio diz que, ao pintar um quadro, não pensa<br />

na simbologia <strong>da</strong>s cores, que o artista “não pensa sobre isso. Depois <strong>de</strong> pintado [o<br />

quadro], algumas pessoas <strong>de</strong>scobr<strong>em</strong> algo, algum significado. No momento <strong>em</strong> que se<br />

está pintando, não se pensa nisso.” Da mesma forma, Brennand diz pegar ao acaso<br />

figuras mitológicas e as trabalha. O mesmo ocorrendo quando se inspira <strong>em</strong><br />

personagens históricos: “é uma escolha arbitrária, casual. Não é uma coisa <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>.”<br />

Ain<strong>da</strong> segundo o Senhor <strong>da</strong> Várzea, o artista não <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> uma teoria ao pintar, ao<br />

esculpir e, por extensão, ao escrever um po<strong>em</strong>a.<br />

28 Conversa por telefone, <strong>em</strong> 25/03/2004. To<strong>da</strong>s as referência e citações do pintor José Cláudio originamse<br />

<strong>de</strong>ssa conversa.


33<br />

O azul é uma cor fria, exata e vazia. É a cor do pensamento, <strong>da</strong> razão. Se Carlos<br />

Pena Filho pre<strong>de</strong>terminava ou não o que <strong>de</strong>veria surgir <strong>de</strong> seus po<strong>em</strong>as, permanecerá<br />

uma incógnita. No entanto, provocou metaforicamente o maior “<strong>de</strong>smantelo” no azul. A<br />

licença poética <strong>de</strong> usar e abusar <strong>de</strong>ssa cor, <strong>em</strong>pregando-a <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as estrofes – <strong>em</strong><br />

algumas, duas e até três vezes – transforma esse poeta no “rei dos paradoxos”. A<br />

insistência na repetição <strong>da</strong> fria cor azul, paradoxalmente provoca sensações mais que<br />

calientes quando as mãos se misturam <strong>em</strong> gestos insensatos que, aos poucos, vão se<br />

expandindo até ser impossível a sua contenção. Tal insensatez azul transbor<strong>da</strong> e seu<br />

excesso afoga os dois amantes que, perdidos no turbilhão <strong>de</strong> sensações, cont<strong>em</strong>plam o<br />

azul vertiginoso.<br />

E o poeta se fez pintor<br />

Auto<strong>de</strong>finindo-se como um pintor frustrado, Carlos Pena Filho pintou com a<br />

caneta e a palavra. Ao invés <strong>de</strong> pincela<strong>da</strong>s na tela, surgiam imagens a ca<strong>da</strong> investi<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

caneta no papel. Seus po<strong>em</strong>as são como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros quadros ou, antes, ass<strong>em</strong>elham-se<br />

àqueles projetores artesanais movidos a manivela, on<strong>de</strong> os movimentos são<br />

compassados, tranqüilos como nos t<strong>em</strong>pos <strong>em</strong> que os dias eram longos e se tinha t<strong>em</strong>po<br />

<strong>de</strong> apreciar a vi<strong>da</strong>. A<strong>de</strong>pto ao po<strong>em</strong>a-imag<strong>em</strong>, Pena Filho logo foi conquistado pelo<br />

Imagismo. Movimento literário surgido no início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 50 (aproxima<strong>da</strong>mente<br />

1952), caracterizava-se pelo “cultivo do soneto, do metro <strong>de</strong> <strong>de</strong>z sílabas, que é o metro<br />

erudito, por excelência, por uma linguag<strong>em</strong> eleva<strong>da</strong>, e pelo esquecimento do Brasil e<br />

dos t<strong>em</strong>as brasileiros, t<strong>em</strong>as estes muito cultivados pela anterior geração<br />

mo<strong>de</strong>rnista.” 29 Os principais poetas imagistas, além <strong>de</strong> Carlos Pena Filho, são Carlos<br />

Moreira e Fernando Pessoa Ferreira.<br />

29 MARTINS,Wilson.Artigo <strong>de</strong> jornal <strong>da</strong> coleção <strong>de</strong> Tânia Carneiro Leão, s<strong>em</strong> <strong>da</strong>ta e s<strong>em</strong> indicação do<br />

jornal.


34<br />

Muito culto, leitor voraz e possuidor <strong>de</strong> uma mente criativa. Alie-se a isso, o<br />

pleno domínio no manuseio <strong>da</strong>s cores e suas nuances, conseguindo materializar, através<br />

<strong>da</strong>s palavras, <strong>da</strong> mais tími<strong>da</strong> à mais rara <strong>da</strong>s cores, eis o poeta imagista: “Eu diria que<br />

mais do que uma simples imagística, uma imagística sensual e, pela sua sensuali<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

tão comunicativa que é – é porque Carlos Pena Filho vive no que escreveu pintando, e<br />

a pintura é mais expressiva que a letra puramente letra.” 30 Po<strong>em</strong>as imagistas são:<br />

Soneto Intencional, Retrato na Praia, Um Velho Soneto, Sonetinho Infantil e muitos<br />

outros. Mas, um <strong>em</strong> especial, creio, representa b<strong>em</strong> esse estilo:<br />

Retrato Campestre 31<br />

A Ayrson J. B. Lopes<br />

Havia na planície um passarinho,<br />

um pé <strong>de</strong> milho e uma mulher senta<strong>da</strong>.<br />

E era só. Nenhum <strong>de</strong>les tinha na<strong>da</strong><br />

com o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>itado no caminho.<br />

O vento veio e pôs <strong>em</strong> <strong>de</strong>salinho<br />

a cabeleira <strong>da</strong> mulher senta<strong>da</strong><br />

e <strong>de</strong>spertou o hom<strong>em</strong> lá na estra<strong>da</strong><br />

e fez canto nascer no passarinho.<br />

O hom<strong>em</strong> levantou-se e veio, olhando<br />

a cabeleira <strong>da</strong> mulher voando<br />

na calma <strong>da</strong> planície <strong>de</strong>sola<strong>da</strong>.<br />

Mas logo regressou ao seu caminho<br />

<strong>de</strong>ixando atrás um quieto passarinho,<br />

um pé <strong>de</strong> milho e uma mulher senta<strong>da</strong>.<br />

30 FREYRE, Gilberto, Livro Geral, p. 17<br />

31 LG,p. 85


35<br />

O título indica b<strong>em</strong> o teor do po<strong>em</strong>a: retrato = imag<strong>em</strong>, campestre = campo, ou<br />

seja, <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> no campo com sua calmaria, on<strong>de</strong> as horas passam <strong>de</strong>vagar, on<strong>de</strong><br />

quase não acontece na<strong>da</strong>, <strong>de</strong> forma que a simples presença <strong>de</strong> uma pessoa estranha ao<br />

local, já se torna um acontecimento. Com ar zombeteiro, um tanto sarcástico, Pena Filho<br />

<strong>de</strong>screve a cena fazendo com que o leitor a visualize: a monotonia <strong>da</strong> vastidão <strong>da</strong>s<br />

terras, pobre até <strong>em</strong> relevos; a solidão e indigência, caracteriza<strong>da</strong>s pelo numeral<br />

um/uma – um passarinho, um pé <strong>de</strong> milho, uma mulher; e ... só! O hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>itado no<br />

caminho não passa <strong>de</strong> um estranho, <strong>de</strong> um intruso naquele ambiente. O vento, cansado<br />

<strong>de</strong> tanta pasmaceira, v<strong>em</strong> para agitar, para <strong>da</strong>r vi<strong>da</strong>, provocando reações (nesse<br />

momento a manivela do projetor imaginário é aciona<strong>da</strong> e o quadro ganha movimento): o<br />

cabelo <strong>da</strong> mulher esvoaça, o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>sperta <strong>de</strong> sua prostração e é provocado o canto<br />

do passarinho, alegrando o ambiente. O hom<strong>em</strong>, mais encorajado, se ergue, olha para os<br />

cabelos ain<strong>da</strong> esvoaçantes <strong>da</strong> mulher, e... só! A manivela do projetor imaginário pára,<br />

como pára também a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>quela <strong>de</strong>sola<strong>da</strong> gente. O quarto retrato, ou quarto parágrafo,<br />

fica novamente estanque, l<strong>em</strong>brando o po<strong>em</strong>a “Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>zinha qualquer”, <strong>de</strong> Carlos<br />

Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> o ar irônico do poeta se faz presente na falta <strong>de</strong> nome<br />

para a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> – uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> qualquer; e o <strong>em</strong>prego do diminutivo – ci<strong>da</strong><strong>de</strong>zinha,<br />

pequena, boba, insignificante. Apesar <strong>de</strong> o povoado <strong>de</strong>scrito por Drummond ser maior e<br />

possuir maior número <strong>de</strong> casas, bananeiras, mulheres e laranjeiras, com seus amores e<br />

cantares, a solidão é a mesma: um hom<strong>em</strong>, um cachorro, um burro vivendo na mesma<br />

lenta pasmaceira. Eita, vi<strong>da</strong> mais besta!<br />

O teor do po<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Carlos Pena e a concretização visual <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> <strong>de</strong>scrita são<br />

subsídios suficientes para classificar esse soneto <strong>de</strong> imagista, mas acrescente-se a isso a<br />

forma: soneto <strong>de</strong>cassilábico, rimas perfeitas (interpola<strong>da</strong>s – abba) e figuras <strong>de</strong><br />

linguag<strong>em</strong> (enjamb<strong>em</strong>ents – “E era só. Nenhum <strong>de</strong>les tinha na<strong>da</strong> / com o hom<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>itado no caminho. / [...] / O hom<strong>em</strong> levantou-se e veio, olhando / a cabeleira <strong>da</strong><br />

mulher voando [...]”; enca<strong>de</strong>amento – repetição, na 1ª e 4ª estrofes, do verso “um pé <strong>de</strong>


36<br />

milho e uma mulher senta<strong>da</strong>”; e a ironia, presente ao longo <strong>de</strong> todo o soneto), e eis um<br />

po<strong>em</strong>a rigi<strong>da</strong>mente, eruditamente imagista. 32<br />

Mergulhando no azul...<br />

Imaterial <strong>em</strong> si mesmo, o azul<br />

<strong>de</strong>smaterializa tudo que <strong>de</strong>le se<br />

impregna.<br />

Chevalier e Geerbrant<br />

A cor azul é a mais profun<strong>da</strong> <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as cores. Sobreposta a um objeto, suaviza<br />

as formas, <strong>de</strong>sfazendo-as. Essa transparência provoca<strong>da</strong> pelo azul é vazia e abissal. No<br />

azul, o olhar vagueia até o infinito, s<strong>em</strong> encontrar obstáculo algum, afogando-se na<br />

vaguidão: “Imaterial <strong>em</strong> si mesmo, o azul <strong>de</strong>smaterializa tudo que <strong>de</strong>le se impregna”. 33<br />

O olhar também é infinito. Através do olhar, a alma é <strong>de</strong>scortina<strong>da</strong>. Especulando a alma,<br />

o olhar ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que a espia, que a son<strong>da</strong>, também a espelha “Especular, do<br />

latim speculatus, que quer dizer espiar, observar, e se liga à palavra speculum, que<br />

quer dizer espelho.’ 34 Carlos Pena Filho abre a janela <strong>de</strong>sse (seu?) mundo <strong>de</strong>sconhecido<br />

e tenta a<strong>da</strong>ptar seus olhos para se enxergar no espelho <strong>da</strong> alma:<br />

32 O po<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Drummond não se enquadra na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> imagista por não preencher as exigências<br />

formais: soneto, versos <strong>de</strong>cassilábicos, etc.<br />

33 Chevalier e Geerbrant, op. cit., p.107<br />

34 AUSTER,Paul.Op. cit., p.160


37<br />

Canção <strong>de</strong>ste Natal 35<br />

Procurou na terra<br />

procurou no ar<br />

procurou na guerra<br />

e não soube achar.<br />

Procurou no rio<br />

procurou no mar<br />

no telégrafo s<strong>em</strong> fio<br />

e outra vez no ar.<br />

Muito velho e sábio<br />

foi que se l<strong>em</strong>brou<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le mesmo<br />

nunca procurou.<br />

D<strong>em</strong>onstrando ser gran<strong>de</strong> conhecedor do fazer poético e ter pleno domínio <strong>de</strong><br />

suas técnicas, Pena Filho varia na técnica elaborando este po<strong>em</strong>a com recursos <strong>de</strong><br />

enumeração. Essa técnica não concebe conceitos n<strong>em</strong> <strong>de</strong>finições, mas oferece maior<br />

liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> criação ao poeta, possibilitando alterar seqüências do texto s<strong>em</strong> prejuízo do<br />

sentido. Estruturado <strong>em</strong> 12 versos <strong>em</strong> redondilha menor e rimas cruza<strong>da</strong>s (abab), o<br />

po<strong>em</strong>a divi<strong>de</strong>-se <strong>em</strong> três partes. Essas três partes po<strong>de</strong>m ser interpreta<strong>da</strong>s como as três<br />

fases <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>: infância, juventu<strong>de</strong> e velhice; on<strong>de</strong> as duas primeiras são as fases <strong>da</strong><br />

inconseqüência, do movimento e <strong>da</strong> agitação, fazendo com que essa procura ocorra no<br />

exteriordoser.Porfim,aterceira,avelhice,éafase<strong>da</strong>sabedoriae<strong>da</strong>reflexão.Nela,<br />

há uma maior introspecção, há chances concretas <strong>de</strong> encontrar as respostas às<br />

in<strong>da</strong>gações <strong>da</strong> alma.<br />

Ao longo do texto, o verbo “procurar” é <strong>em</strong>pregado no pretérito perfeito, t<strong>em</strong>po<br />

que configura ação. A sua repetição à exaustão – ao longo do po<strong>em</strong>a aparece 6 vezes –<br />

acompanhado <strong>da</strong> expressão <strong>de</strong> lugar, vai ampliando a extensão do território submetido à<br />

busca (<strong>da</strong> terra para o ar, do rio para o mar), <strong>de</strong>monstrando assim a importância <strong>de</strong>ssa<br />

35 LG, p.153


38<br />

procura. É curioso observar que o po<strong>em</strong>a inicia e termina com o verbo “procurar”, o que<br />

sugere que a busca do auto-conhecimento, <strong>em</strong>preendi<strong>da</strong> pelas pessoas, ocorre por to<strong>da</strong> a<br />

extensão <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>.<br />

Cont<strong>em</strong>porâneo <strong>de</strong> Carlos Pena – conviveram na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito, nas ro<strong>da</strong>s<br />

<strong>de</strong> conversa e nas caminha<strong>da</strong>s pelas ruas do Recife a <strong>de</strong>clamar poesia, o pintor José<br />

Cláudio diz que o poeta não se preocupava com t<strong>em</strong>as como o futuro e a morte. Mas, a<br />

transcendência surge como t<strong>em</strong>a <strong>de</strong> vários po<strong>em</strong>as. Em dois <strong>de</strong>les, é explícita a<br />

abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> <strong>da</strong> morte. Em “Testamento do Hom<strong>em</strong> Sensato”, a narrativa ocorre <strong>em</strong> 1ª<br />

pessoa, indicando que esse hom<strong>em</strong> sensato seria, talvez, o próprio poeta, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que revela a naturali<strong>da</strong><strong>de</strong> na qual via a morte. Já <strong>em</strong> “Soneto <strong>da</strong> Sexta-Feira<br />

<strong>da</strong> Paixão”, há uma reflexão sobre a morte, sobre a fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e do corpo e a<br />

pereni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> alma.<br />

Testamento do Hom<strong>em</strong> Sensato 36<br />

Quando eu morrer, não faças disparates<br />

n<strong>em</strong> fiques a pensar: “Ele era assim...”<br />

mas senta-te num banco <strong>de</strong> jardim,<br />

calmamente, comendo chocolates.<br />

Aceita o que te <strong>de</strong>ixo, o quase na<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>stas palavras que te digo aqui:<br />

foi mais que longa a vi<strong>da</strong> que eu vivi,<br />

para ser <strong>em</strong> l<strong>em</strong>branças prolonga<strong>da</strong>.<br />

Porém, se, um dia, só, na tar<strong>de</strong> <strong>em</strong> que<strong>da</strong>,<br />

surgir uma l<strong>em</strong>brança <strong>de</strong>sgarra<strong>da</strong>,<br />

ave que nasce e <strong>em</strong> vôo se arr<strong>em</strong>e<strong>da</strong>,<br />

<strong>de</strong>ixa-a pousar <strong>em</strong> teu silêncio, leve<br />

36 LG,p.105


39<br />

como se apenas fosse imagina<strong>da</strong>,<br />

como uma luz mais que distante, breve.<br />

Para fazer jus à formali<strong>da</strong><strong>de</strong> do t<strong>em</strong>a – testamento: ato jurídico através do qual<br />

uma pessoa <strong>de</strong>clara suas últimas vonta<strong>de</strong>s e dispõe <strong>de</strong> seus bens para <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua<br />

morte - este po<strong>em</strong>a é caucado na erudição <strong>de</strong> um soneto <strong>de</strong>cassilábico, com rimas<br />

interpola<strong>da</strong>s (abba) e enjamb<strong>em</strong>ents (Quando eu morrer, não faças disparates / n<strong>em</strong><br />

fiques a pensar: “Ele era assim... / [...] / Aceita o que te <strong>de</strong>ixo, o quase na<strong>da</strong> / <strong>de</strong>stas<br />

palavras que te digo aqui: / [...] / <strong>de</strong>ixa-a pousar <strong>em</strong> teu silêncio, leve / como se apenas<br />

fosse imagina<strong>da</strong>, [...]). O soneto-testamento começa <strong>de</strong> forma direta, com o narrador<br />

<strong>em</strong>pregando expressão <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po (quando) eosujeitona1ªpessoadosingular(eu). Em<br />

segui<strong>da</strong>, inicia seu “testamento”, aconselhando seu her<strong>de</strong>iro/ouvinte: a morte é uma<br />

coisa natural, conseqüência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, não carece <strong>de</strong> muitas explicações n<strong>em</strong> <strong>de</strong> muito<br />

pesar. O choque <strong>da</strong> per<strong>da</strong> <strong>de</strong>ve durar, apenas, o t<strong>em</strong>po necessário para se comer um<br />

chocolate, pois a vi<strong>da</strong> é para ser vivi<strong>da</strong> com intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> sim, mas apenas enquanto se<br />

está vivo. A l<strong>em</strong>brança <strong>de</strong>ve ser suave como o vôo <strong>de</strong> uma ave e breve como uma<br />

centelha <strong>de</strong> luz.<br />

Soneto <strong>da</strong> Sexta-Feira <strong>da</strong> Paixão 37<br />

Morto. Como também já morre o dia<br />

mas continua a ser noutros lugares?<br />

Ou morto diariamente nos altares<br />

por ser diversa a morte que morria?<br />

O corpo morto: azul melancolia<br />

do mesmo azul perdido pelos ares,<br />

vivo azul sobre os campos, sobre os mares,<br />

sobre a clara manhã ou a hora tardia.<br />

Um corpo morto. Um corpo morto <strong>de</strong> hom<strong>em</strong><br />

37 LG, p.154


40<br />

igual a esses cadáveres <strong>de</strong> guerra<br />

que as batalhas atra<strong>em</strong> e consom<strong>em</strong>?<br />

Ou um que junta o mundo à sua sorte,<br />

cont<strong>em</strong>pla a sombra <strong>em</strong> torno e <strong>de</strong>sce à Terra<br />

<strong>em</strong>orre<strong>em</strong>solidãoevenceamorte?<br />

Soneto metafísico, in<strong>da</strong>ga sobre a morte – do corpo e <strong>da</strong> alma: morre-se aos<br />

poucos todos os dias e ressurge <strong>em</strong> outro lugar, como o dia? Ou, morto, o corpo retorna<br />

à natureza, gradualmente, libertando-se, evoluindo do azul melancolia, perdido, diluído<br />

pelos ares, ao vivo azul <strong>da</strong> clara manhã? Ou o corpo é apenas mais um entre os milhões<br />

<strong>de</strong> cadáveres? Ou morrer e superar a solidão é vencer a morte?


41<br />

APOESIADACIDADE<br />

Pátio do Corpo Santo, Recife


42<br />

Capítulo II<br />

A POESIA DA CIDADE<br />

Antes era a fratria<br />

Era uma vez uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, capital <strong>da</strong> “nação mais rica que a história t<strong>em</strong><br />

notícia”. Seu nome é Ufu. 38 Ufu é uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> que não pára <strong>de</strong> crescer e, na sua<br />

vastidão <strong>de</strong>smedi<strong>da</strong>, vai absorvendo as ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s mais próximas. Diz<strong>em</strong> até que, nessa sua<br />

insaciabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, corre o risco <strong>de</strong> provocar o extermínio <strong>da</strong>s outras ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do país, as<br />

quais têm como sina se tornar<strong>em</strong> uma minúscula parte <strong>da</strong> gigantesca metrópole. Esse<br />

crescimento contínuo, além <strong>de</strong> todos os probl<strong>em</strong>as vivenciados por uma megalópole,<br />

provoca outro: a falta <strong>de</strong> m<strong>em</strong>ória. “É ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que, <strong>da</strong>do o crescimento <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, os<br />

serviços do museu estão quase integralmente voltados para a tarefa impossível <strong>de</strong><br />

registrar seu presente velocíssimo: aparelhos eletrônicos trabalham s<strong>em</strong> cessar<br />

fotografando documentos novos, computando <strong>da</strong>dos e buscando uma or<strong>de</strong>m capaz <strong>de</strong><br />

guar<strong>da</strong>r vestígios materiais <strong>da</strong> História, que voa alucina<strong>da</strong>mente para o olvido.” 39<br />

Bastante válido o <strong>em</strong>penho do museu <strong>de</strong> Ufu na tentativa <strong>de</strong> registrar a História <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois os habitantes têm visões diversas sobre ela, “já que a vastidão <strong>de</strong> Ufu e seu<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado estabeleceu uma espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontinui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> história<br />

entre os vários setores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>” 40 .Fim.<br />

Era uma vez um país – Uqbar. 41 Segundo o tomo XLVI <strong>da</strong> Anglo-American<br />

Cyclopaedia, localiza-se numa região do Iraque ou <strong>da</strong> Ásia Menor. Contudo, <strong>de</strong>scobriu-<br />

38 Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> imaginária cria<strong>da</strong> por Ferreira Gullar, in:Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s Inventa<strong>da</strong>s. Rio <strong>de</strong> Janeiro:José Olympio,<br />

1997, p. 07<br />

39 i<strong>de</strong>m,ibi<strong>de</strong>m,p.07<br />

40 id.,ib.,p.10<br />

41 País imaginário <strong>de</strong> J. L. Borges.Tlön, Uqbar e Urbis Tertius. In: BORGES, Jorge Luis; OCAMPO,<br />

Silvina e CASARES,Adolfo Bioy.Antología <strong>de</strong> la Literatura Fantástica.7 ed.Buenos Aires:Editorial<br />

Sulamericana,1991


43<br />

se mais tar<strong>de</strong> que Uqbar não passava <strong>de</strong> uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> inventa<strong>da</strong> por uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

secreta e “en el vago programa inicial, figuraban ‘los estúdios herméticos’, la<br />

filantropia y la cábala.” 42 Porém se o tal programa se refere à socie<strong>da</strong><strong>de</strong> secreta ou à<br />

Uqbar, não se sabe, pois os manuscritos não são muito claros a esse respeito. Fim.<br />

Era uma vez não mais uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> n<strong>em</strong> um país, mas um império. Se real ou<br />

inventado... a resposta mais a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> é: real e inventado, visto que seus personagens<br />

são reais e o império existiu, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que é fruto <strong>da</strong> imaginação <strong>de</strong> um<br />

escritor. Como isso é possível? Respon<strong>de</strong> Marco Pólo 43 : “Eu também imaginei um<br />

mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do qual extraio to<strong>da</strong>s as outras, [...] o viajante não vê uma, mas<br />

muitas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s”. 44 Fim<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s inventa<strong>da</strong>s, invisíveis, países, planetas, impérios criados. Três homens,<br />

três histórias – ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s imagina<strong>da</strong>s. Num simulacro <strong>de</strong> prefácio <strong>de</strong> suas Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

Inventa<strong>da</strong>s, Ferreira Gullar diz que não sabe o que motivou a criação <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, talvez<br />

leituras r<strong>em</strong>otas sobre as primeiras comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s humanas. Inventar ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, atribuirlhes<br />

idioma próprio, criar um passado histórico, mítico, s<strong>em</strong>pre com a preocupação<br />

historicista <strong>de</strong> basear-se <strong>em</strong> documentos, numa tentativa <strong>de</strong> proporcionar veraci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

científica às suas pesquisas e afirmações. Citar obras científicas fictícias – Mastering a<br />

Metropolis, Nova York, 1980, por Gullar; The Anglo-American Cyclopaedia, J. L.<br />

Borges -, <strong>de</strong> pessoas reais: A. Huxley e G. Orwel, por Gullar; Bertrand Russel,<br />

Schopenhauer e Hume, por Borges; Kublai Kan e Marco Pólo, por Ítalo Calvino – no<br />

propósito <strong>de</strong> provocar a ilusão <strong>de</strong> situações verídicas.<br />

Que po<strong>de</strong>r é esse que a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> exerce sobre as pessoas? O que leva as pessoas a<br />

escrever sobre ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s – reais ou ficcionais?<br />

42 BORGES. op. cit.,p.126<br />

43 CALVINO, Ítalo, in: As Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s Invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo:Cia <strong>da</strong>s <strong>Letras</strong>,2002<br />

44 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 67


44<br />

Criação humana, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> contrapõe-se à natureza, originando-se <strong>da</strong>s fratrias ou<br />

cúrias, como eram <strong>de</strong>signa<strong>da</strong>s as subdivisões <strong>da</strong>s tribos, <strong>em</strong> grego e <strong>em</strong> latim,<br />

respectivamente. Ca<strong>da</strong> fratria, ou cúria, era in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e não era possível permitir que<br />

um estrangeiro participasse do culto aos <strong>de</strong>uses <strong>de</strong> uma fratria que não era a sua. Porém,<br />

duas ou mais fratrias podiam unir-se para celebrar rituais comuns. Assim, surgiram as<br />

tribos. E <strong>da</strong> junção <strong>da</strong>s tribos, s<strong>em</strong>pre respeitando a religião uma <strong>da</strong>s outras, nasceram<br />

as ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, formando uma fe<strong>de</strong>ração, contudo, preservando s<strong>em</strong>pre sua individuali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e in<strong>de</strong>pendência. É necessário, no entanto, <strong>de</strong>stacar a diferença entre ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e urbe. Nos<br />

primórdios, essas duas palavras não eram sinônimas. Segundo Foustel <strong>de</strong> Coulanges,<br />

a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> era a associação religiosa e política <strong>da</strong>s<br />

famílias e <strong>da</strong>s tribos; a urbe, o lugar <strong>de</strong> domicílio e sobretudo<br />

o santuário <strong>de</strong>ssa socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. [...] A urbe, entre os antigos, não<br />

se formava no <strong>de</strong>correr do t<strong>em</strong>po pelo lento crescimento do<br />

número dos homens e <strong>da</strong>s construções. Fun<strong>da</strong>va-se a urbe <strong>de</strong><br />

uma só vez, inteiramente, <strong>em</strong> um só dia.<br />

Mas era preciso que a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> estivesse constituí<strong>da</strong><br />

antes, e essa era a obra mais difícil e ordinariamente a mais<br />

longa. Quando as famílias, as fratrias e as tribos<br />

concor<strong>da</strong>ss<strong>em</strong> <strong>em</strong> se unir e ter o culto <strong>em</strong> comum, fun<strong>da</strong>va-se<br />

logo a urbe para sediar o santuário <strong>de</strong>sse culto comum.<br />

Assim, a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> urbe foi s<strong>em</strong>pre um ato religioso. 45<br />

[...]<br />

Encerra<strong>da</strong> <strong>em</strong> limites sagrados, e esten<strong>de</strong>ndo-se <strong>em</strong><br />

volta do altar, a urbe foi domicílio religioso que abrigava os<br />

<strong>de</strong>uses e os homens <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. [...] Tendo sido fun<strong>da</strong>do<br />

segundo os ritos, havia recebido <strong>em</strong> seu recinto os <strong>de</strong>uses<br />

protetores, que estavam como que arraigados ao seu solo, e<br />

que nunca mais <strong>de</strong>veriam abandoná-lo. 46 [...] Algo <strong>de</strong> sagrado<br />

e <strong>de</strong> divino se ligava naturalmente a essas urbes que os <strong>de</strong>uses<br />

45 COULANGES,F.A Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> Antiga. Trad. Jean Melville.São Paulo: Martin Claret, 2002, p.145<br />

46 i<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m,p.153


45<br />

haviam levantado e continuavam a honrar com sua presença.<br />

[...]To<strong>da</strong>s as urbes eram construí<strong>da</strong>s para ser eternas. 47<br />

A ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, para os antigos, era a extensão do lar. Do mesmo modo que no lar<br />

havia um santuário, um lugar próprio para o culto aos <strong>de</strong>uses <strong>da</strong> família, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

também possuía o seu, “com seus pritaneus 48 e seus heróis, com seu recinto sagrado e<br />

seu território <strong>de</strong>marcado pela religião.” 49 Solo sagrado on<strong>de</strong> eram sepultados os<br />

antepassados, terra dos pais, terra pátria. A pequena pátria correspondia à família, com<br />

seus <strong>de</strong>uses próprios, seu altar, seus mortos, seu lar. Possuía caráter fechado, não<br />

admitindo estranhos nos cultos aos seus <strong>de</strong>uses domésticos, sob o risco <strong>de</strong> ser<strong>em</strong><br />

abandonados por estes. A gran<strong>de</strong> pátria, por sua vez, correspondia à ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e seu chão<br />

era sagrado, pois os <strong>de</strong>uses o habitavam. O sentimento <strong>de</strong> patriotismo era vigoroso já<br />

que a religião regia todos os momentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, proporcionando segurança através <strong>da</strong> fé<br />

<strong>em</strong> seus <strong>de</strong>uses, do respeito aos valores transmitidos pelos pais e à obediência e<br />

cumprimento dos ritos sagrados. O menor <strong>de</strong>slize ou o esquecimento <strong>de</strong> um mero<br />

<strong>de</strong>talhe, por mais banal que fosse, significava o provável abandono do lar ou <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

pelos <strong>de</strong>uses protetores. E, per<strong>de</strong>ndo-se a proteção dos <strong>de</strong>uses, perdia-se tudo. Segundo<br />

Sófocles, “é a pátria que nos conserva.” 50 Devia-se, então, amá-la acima <strong>de</strong> qualquer<br />

coisa. Devia-se morrer por ela, pois per<strong>de</strong>r a pátria era per<strong>de</strong>r-se. Roma preservou essas<br />

tradições por séculos. A Grécia, porém, encantando-se por t<strong>em</strong>plos faustosos e por<br />

mitos, mais rapi<strong>da</strong>mente as abandonou.<br />

Platão t<strong>em</strong> uma postura mais pragmática <strong>em</strong> relação ao surgimento <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Para ele, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> é fruto simplesmente <strong>da</strong> <strong>de</strong>pendência que o ser humano t<strong>em</strong> um do<br />

outro, <strong>de</strong>vido à sua incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser auto-suficiente: “ – O que dá nascimento a uma<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong> é, creio eu, a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> que se encontra ca<strong>da</strong> indivíduo <strong>de</strong> se bastar a<br />

si mesmo e a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> que sente <strong>de</strong> uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> coisas: ou achas que há<br />

47 id.,ib.,p. 154<br />

48 Edifício on<strong>de</strong> se localiza o altar <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>;local on<strong>de</strong>, para os gregos, encontrava-se o lar comum <strong>da</strong>s<br />

fratrias.<br />

49 id.,ib,p.219<br />

50 Citado por COULANGES,p.219


46<br />

outra coisa na orig<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong>?” 51 Através <strong>de</strong>sse diálogo entre Sócrates e seus<br />

discípulos, Platão <strong>de</strong>monstra todo seu ceticismo <strong>em</strong> relação ao aparecimento mítico ou<br />

sagrado <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Nelson Omegna parece ser qu<strong>em</strong> melhor percebeu o fenômeno do<br />

surgimento <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>:<br />

“superficialmente se po<strong>de</strong>ria pensar ser a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> ou vila<br />

puro artefato <strong>de</strong> criação do hom<strong>em</strong>. Que um <strong>de</strong>creto d’El Rei ou<br />

uma <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> um grupo mo<strong>de</strong>lasse <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> planos pré<strong>de</strong>terminados.<br />

Esses atos criam nominalmente a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Não<br />

respon<strong>de</strong>m, porém, pela sua evolução ou formas que ela vai<br />

assumir. Ela resiste aos <strong>de</strong>cretos, como um produto que surge <strong>da</strong><br />

interação <strong>da</strong>s forças naturais , [pois] é a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> colônia um<br />

fenômeno natural <strong>de</strong> fatos constantes, <strong>de</strong> processos iguais <strong>de</strong><br />

dominância, sucessão, zoneamentos, segregação e <strong>de</strong> relações e<br />

interações que ocorr<strong>em</strong> in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong>s <strong>de</strong>terminações<br />

conscientes do hom<strong>em</strong>.” 52<br />

De uma forma ou <strong>de</strong> outra (mítica ou cética), a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao longo <strong>da</strong> história é<br />

evoca<strong>da</strong> tanto pelo seu valor mítico como também pelo seu lado infame; ora aparecendo<br />

como símbolo <strong>da</strong> civilização, portadora <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, luz, energia; ora como símbolo do<br />

vício e <strong>da</strong> corrupção. Com o passar do t<strong>em</strong>po, os costumes foram sendo modificados.<br />

As ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s também sofreram transformações. Pouco ou quase na<strong>da</strong> restou <strong>da</strong>quela<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong> antiga. Talvez apenas a sua simbologia, a sua importância na psique <strong>da</strong>s pessoas.<br />

De mora<strong>da</strong> dos <strong>de</strong>uses, tornou-se imaginária, onírica, fonte <strong>de</strong> poesia, objeto <strong>de</strong><br />

metáforas...<br />

51 PLATÃO. A República:Diálogos – 1. Trad. Sampaio Marinho.3 ed. Mira-Sintra:Publicações Europa-<br />

América Lt<strong>da</strong>,s/d, p. 76<br />

52 apud MATOS, Potiguar. O Recife e as Revoluções Libertárias. In:UmT<strong>em</strong>podoRecife.Mota,Mauro<br />

(org.).Recife:Ed. Arquivo Público Estadual,1978,p. 391


47<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s ou vapores?<br />

“Exist<strong>em</strong> as ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s? [Não seriam elas apenas] vapores que as pessoas jorram<br />

pela boca?” 53 Ao escrever uma espécie <strong>de</strong> diário dos anos <strong>de</strong> chumbo na América<br />

Latina (1960/70) Eduardo Galeano percorreu os labirintos <strong>de</strong> sua m<strong>em</strong>ória procurando<br />

as imagens, a melodia, os cheiros do passado. Buscava o t<strong>em</strong>po do antes: antes <strong>da</strong><br />

mal<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong>s incertezas. Mas, a m<strong>em</strong>ória só guar<strong>da</strong> o que vale a pena recor<strong>da</strong>r. No<br />

entanto, uma vez registra<strong>da</strong>, a imag<strong>em</strong> torna-se perene. Sabedor disso, o “sist<strong>em</strong>a” t<strong>em</strong><br />

como “plano <strong>de</strong> extermínio arrasar a erva. Para colonizar as consciências, suprimi-las;<br />

para suprimi-las, esvaziá-las <strong>de</strong> passado. [...] Está proibido l<strong>em</strong>brar.” 54 Esvaziar <strong>de</strong><br />

passado, <strong>de</strong> referências. Mas, “po<strong>de</strong>-se viver ca<strong>da</strong> dia como se fosse o primeiro? 55<br />

Qu<strong>em</strong> não sabe <strong>de</strong> on<strong>de</strong> v<strong>em</strong> como po<strong>de</strong> averiguar aon<strong>de</strong> vai?” 56 , in<strong>da</strong>ga Galeano.<br />

Mas, o que é m<strong>em</strong>ória, afinal? Qual a sua importância na vi<strong>da</strong> do indivíduo?<br />

Capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> que os seres vivos possu<strong>em</strong> <strong>de</strong> conservar traços <strong>de</strong> experiências<br />

passa<strong>da</strong>s, é a m<strong>em</strong>ória que garante a ca<strong>da</strong> indivíduo a sua própria história pessoal.<br />

Constitui-se <strong>de</strong> cinco fases: fixação, conservação, evocação, reconhecimento e<br />

localização no t<strong>em</strong>po e no espaço. Ora liga<strong>da</strong> à inteligência, ora involuntária, é na<br />

m<strong>em</strong>ória que se organiza a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> recor<strong>da</strong>ções, as quais serv<strong>em</strong> à existência e à<br />

afirmação pessoal do indivíduo. A m<strong>em</strong>ória pura, ou m<strong>em</strong>ória involuntária, resulta <strong>da</strong><br />

mescla do inventário <strong>de</strong> l<strong>em</strong>branças do passado individual com a do passado coletivo e<br />

a fusão <strong>de</strong>sses passados provoca recor<strong>da</strong>ções, ao acaso, <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminados momentos,<br />

po<strong>de</strong>ndo, tais recor<strong>da</strong>ções, ser<strong>em</strong> reproduzi<strong>da</strong>s por to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>. Por sua vez, a m<strong>em</strong>ória<br />

voluntária está sujeita à vonta<strong>de</strong> do indivíduo, exige atenção, “é isto que acontece com<br />

nosso passado. Em vão buscamos evocá-lo <strong>de</strong>libera<strong>da</strong>mente – todos os esforços <strong>de</strong><br />

53 GALEANO,Eduardo.Dias e noites <strong>de</strong> amor e guerra Trad. Eric Nepomuceno.Porto Alegre:L e<br />

PM,1991,p.144<br />

54 i<strong>de</strong>m,ibi<strong>de</strong>m,p.208-209<br />

55 id.,ib.,p.68<br />

56 id.,ib.,p.203


48<br />

nossa inteligência são inúteis.” 57 Apagar a m<strong>em</strong>ória é, portanto, esfacelar o hom<strong>em</strong>.<br />

Impedir a l<strong>em</strong>brança é transformá-lo <strong>em</strong> zumbi: “para que nos resign<strong>em</strong>os a viver uma<br />

vi<strong>da</strong> que não é a nossa, nos obrigam a aceitar uma m<strong>em</strong>ória alheia. Reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

mascara<strong>da</strong>, estória conta<strong>da</strong> pelos vencedores.” 58<br />

Para que a história oficial seja conta<strong>da</strong> e aceita como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira, é necessário<br />

criar confusão, levar a confrontos, repetir o discurso à exaustão, apagar quaisquer<br />

vestígios in<strong>de</strong>sejáveis, enfim levar ao <strong>de</strong>scrédito tanto a m<strong>em</strong>ória individual quanto a<br />

coletiva. Para tanto, cercea-se a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão, manipulam-se as informações e,<br />

no âmbito coletivo, <strong>de</strong>strói-se o passado. E o século XX foi pródigo <strong>em</strong> produzir<br />

transformações <strong>em</strong> ritmo alucinante, no modo <strong>de</strong> ser, <strong>de</strong> pensar e <strong>de</strong> viver <strong>da</strong>s pessoas.<br />

Duma forma frenética, surgiam a ca<strong>da</strong> dia novas idéias, novas linhas <strong>de</strong> pensamento,<br />

novas <strong>de</strong>scobertas nas áreas científica e tecnológica e na medicina. As ruas encheram-se<br />

<strong>de</strong> carros, a veloci<strong>da</strong><strong>de</strong> imperando. Conceitos enraizados há gerações eram<br />

<strong>de</strong>smistificados, ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s ti<strong>da</strong>s como inquestionáveis, eram <strong>de</strong>sacredita<strong>da</strong>s.<br />

Se por um lado essas mu<strong>da</strong>nças trouxeram benefícios para as pessoas, como o<br />

aumento <strong>da</strong> perspectiva <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>; por outro lado, criou grave crise i<strong>de</strong>ntitária, pois tudo o<br />

que servia <strong>de</strong> apoio ao indivíduo, foi posto abaixo. O t<strong>em</strong>po era o futuro. A<br />

mo<strong>de</strong>rnização se impunha como única via. E o mundo tinha que se a<strong>da</strong>ptar às<br />

mu<strong>da</strong>nças... Construíam-se estra<strong>da</strong>s, alargavam-se as ruas, otimizavam-se as ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Na era <strong>da</strong> veloci<strong>da</strong><strong>de</strong>, louva-se o <strong>de</strong>us <strong>da</strong> pratici<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong>s linhas retas, do an<strong>da</strong>r<br />

apressado, pois se está s<strong>em</strong>pre atrasado. E o <strong>de</strong>us do t<strong>em</strong>po que urge não perdoa a<br />

heresia <strong>de</strong> se olhar para os lados, admirar as linhas elabora<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s facha<strong>da</strong>s, trocar<br />

olhares, parar para uma conversa amena entre duas pessoas num banco <strong>de</strong> praça,<br />

admirar o pôr-do-sol, arruar... Tais situações estão ficando ca<strong>da</strong> vez mais não-reais,<br />

virtuais.<br />

57 PROUST,in: A Caminho <strong>de</strong> Swan, apud Benjamin, Walter.Charles Bau<strong>de</strong>laire um lírico no auge do<br />

capitalismo. Trad. José Martins Barbosa, H<strong>em</strong>erson Almei<strong>da</strong> Baptista. 1 ed. São<br />

Paulo:Brasiliense,1989,p.106<br />

58 GALEANO,op. cit., p.203


49<br />

O paradoxo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

A mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> criou as máquinas e essa veloci<strong>da</strong><strong>de</strong>. As ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s tornaram-se<br />

ca<strong>da</strong> vez maiores; os <strong>de</strong>slocamentos, ca<strong>da</strong> vez mais longos. Daí, a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

transporte também ca<strong>da</strong> vez mais veloz. Porém, a veloci<strong>da</strong><strong>de</strong> vertiginosa “provoca um<br />

achatamento <strong>da</strong> paisag<strong>em</strong>. Quanto mais rápido o movimento, menos profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> as<br />

coisas têm, mais chapa<strong>da</strong>s ficam, como se estivess<strong>em</strong> contra um muro, contra uma<br />

tela.” 59 Na<strong>da</strong> mais representativo <strong>de</strong>ssa superficiali<strong>da</strong><strong>de</strong> que as linhas retas, s<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>talhes <strong>da</strong>s construções mais recentes: linhas rasas para ci<strong>da</strong>dãos rasos! Marshall<br />

Berman, <strong>em</strong> “Tudo que é sólido <strong>de</strong>smancha no ar”, <strong>de</strong>fine mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> como<br />

um tipo <strong>de</strong> experiência vital – experiência <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po e<br />

espaço, <strong>de</strong> si e dos outros, <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s e perigos <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> – que é compartilha<strong>da</strong> por homens ou mulheres <strong>em</strong><br />

todo o mundo, hoje. [...] A experiência ambiental <strong>da</strong><br />

mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> anula to<strong>da</strong>s as fronteiras, geográficas e<br />

raciais, <strong>de</strong> classe e nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> religião e <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ologia: nesse sentido, po<strong>de</strong>-se dizer que a mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

une a espécie humana. Contudo, é uni<strong>da</strong><strong>de</strong> paradoxal, uma<br />

uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>suni<strong>da</strong><strong>de</strong>: ela nos <strong>de</strong>speja a todos num<br />

turbilhão <strong>de</strong> permanente <strong>de</strong>sintegração e mu<strong>da</strong>nça, <strong>de</strong> luta<br />

e contradição, <strong>de</strong> ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> e angústia.” 60<br />

Parte <strong>de</strong>ssa angústia advém <strong>da</strong> ruptura com o passado, do esvanecimento <strong>da</strong><br />

m<strong>em</strong>ória, <strong>da</strong> incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> do indivíduo mo<strong>de</strong>rno se situar num mundo globalizado,<br />

heg<strong>em</strong>ônico. E não há maneira mais fácil <strong>de</strong> dominar o outro que o anulando como ser<br />

pensante, como ci<strong>da</strong>dão. Entretanto, esse método é ambíguo: ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que<br />

o “sist<strong>em</strong>a” busca impor uma padronização do pensamento através <strong>da</strong> fragmentação do<br />

passado, esse mesmo sist<strong>em</strong>a necessita <strong>de</strong> um antídoto para que a sua m<strong>em</strong>ória também<br />

59 PEIXOTO,Nelson Brissac, O Olhar do Estrangeiro. In: O Olhar, Novaes (org.), p.361<br />

60 BERMAN,apud Spósito, Eliseu Savério.A vi<strong>da</strong> nas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s.3 ed.São Paulo:Contexto,2001, p.67


50<br />

não se esvaneça. Se, <strong>de</strong> um lado, há o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>vastador do passado <strong>em</strong> prol <strong>da</strong><br />

mo<strong>de</strong>rnização; <strong>de</strong> outro, há a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se evitar o próprio fim. Essa teoria<br />

contraditória é mais facilmente percebi<strong>da</strong> ao observarmos as ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s a partir do século<br />

XIX e, principalmente, no <strong>de</strong>correr do século XX. Criação humana, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> contrapõese<br />

à natureza. Fenômeno cultural, exerce influência direta na vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> seus habitantes,<br />

nativos ou <strong>de</strong> adoção. É através <strong>de</strong> sua arquitetura, do traçado <strong>de</strong> suas ruas, que<br />

gerações passa<strong>da</strong>s registraram e passaram às seguintes seu modo <strong>de</strong> pensar, sua<br />

concepção <strong>de</strong> mundo.<br />

Enquanto arte, a arquitetura é<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente representativa. [...] Ao longo do<br />

t<strong>em</strong>po e <strong>da</strong> história, a arquitetura teve, s<strong>em</strong>pre,<br />

ambições maiores, indo <strong>da</strong> fantasia humana <strong>de</strong><br />

perpetuar-se, <strong>de</strong> eternizar-se [...] até chega,r na era<br />

cont<strong>em</strong>porânea, à utopia <strong>de</strong> querer mu<strong>da</strong>r o hom<strong>em</strong> a<br />

partir <strong>da</strong> arquitetura.<br />

[...]<br />

A ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e sua arquitetura como sendo uma e<br />

a mesma coisa. Ou seja, uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, enquanto<br />

construção física, se explicita, se torna visível e<br />

compreensível através <strong>de</strong> sua Arquitetura. É através<br />

<strong>de</strong>la que a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> diz ‘qu<strong>em</strong> po<strong>de</strong> se encontrar com<br />

qu<strong>em</strong>’. É através <strong>da</strong> Arquitetura que a ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

explicita, no espaço, as diferenças <strong>de</strong> classe e <strong>de</strong><br />

relações existentes entre os diversos grupos sociais. 61<br />

61 SANTOS,Lúcia Leitão. Os movimentos <strong>de</strong>sejantes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>:uma investigação sobre processos<br />

inconscientes na arquitetura <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.Recife:FCCR,1998e,pp.21-22


51<br />

O livro <strong>de</strong> registro<br />

Arqueólogos baseiam-se nos indícios encontrados nas ruínas arquitetônicas para<br />

compreen<strong>de</strong>r como eram e como viviam civilizações extintas, pois o formato <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

revela a concepção <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> seus moradores. A cultura muçulmana, naturalmente<br />

reclusa no seu núcleo familiar, não <strong>de</strong>sejando compartilhar seus costumes com<br />

estranhos, encontrou no urbanismo a solução i<strong>de</strong>al: numa concepção s<strong>em</strong> ruas, criou-se<br />

a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> labiríntica, s<strong>em</strong> pontos <strong>de</strong> referência que pu<strong>de</strong>sse orientar os estranhos à<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Por sua vez, os índios bororós, na América do Sul distribuíam suas ocas<br />

<strong>em</strong> duas linhas s<strong>em</strong>icirculares – on<strong>de</strong> as duas linhagens que compunham a tribo viviam<br />

– com a oca comunitária ao centro. De alguma forma, a disposição <strong>da</strong> taba<br />

proporcionava harmonia entre seus habitantes e garantia a perpetuação do grupo. Mas,<br />

ao iniciar o contato com os brancos, a disposição <strong>da</strong>s ocas foi modifica<strong>da</strong>, provocando,<br />

<strong>em</strong> pouco t<strong>em</strong>po, o esfacelamento <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

A partir do momento <strong>em</strong> que o costume atávico foi alterado, rompeu-se com a<br />

tradição, provocando a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>. Enquanto isso, ao impedir a presença <strong>de</strong><br />

estranhos <strong>em</strong> sua comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, os muçulmanos preservaram sua cultura. Ao se permitir<br />

alteração na disposição <strong>da</strong>s ocas dos bororós, o livro <strong>de</strong> registro <strong>da</strong> história <strong>de</strong> seu povo<br />

foi apagado. A cultura, sobrepondo-se á natureza apagou a escrita <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória<br />

esfacelando, conseqüent<strong>em</strong>ente, sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> coletiva:<br />

O livro <strong>de</strong> registro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> conserva-se, por<br />

conseguinte, como livro do tombo, que guar<strong>da</strong> o<br />

registro <strong>de</strong>ssa ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. O funcionário, o escriba que a<br />

inscreve nesse livro, preserva-a do esquecimento – o<br />

que possibilita o seu resgate enquanto texto. 62 Ler a<br />

62 GOMES, Renato Carneiro.To<strong>da</strong>s as ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: literatura e experiência urbana. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro:Rocco,1994,p.37


52<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong> consiste não <strong>em</strong> reproduzir o visível, mas<br />

torná-la visível. 63<br />

Talvez, a escrita <strong>de</strong>sse livro <strong>de</strong> registro não passe <strong>de</strong> uma tentativa <strong>de</strong> pôr a<br />

salvo as vozes que <strong>da</strong>rão test<strong>em</strong>unho <strong>de</strong> que aqui estiv<strong>em</strong>os, que não passe <strong>de</strong> um modo<br />

<strong>de</strong> guar<strong>da</strong>r, para os que virão, o que fomos. Dessa forma, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> t<strong>em</strong> se mostrado o<br />

canal i<strong>de</strong>al para essa troca <strong>de</strong> informação e transmissão cultural, ao longo <strong>da</strong> história <strong>da</strong><br />

civilização. O <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong>sse livro provoca o aniquilamento <strong>de</strong> uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

cujas conseqüências no ser humano são profun<strong>da</strong>s e <strong>de</strong>terminantes, principalmente <strong>em</strong><br />

relação à percepção do outro. Segundo Freud, “se os processos psíquicos <strong>de</strong> uma<br />

geração não prossegu<strong>em</strong> na seguinte, ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las se veria obriga<strong>da</strong> a começar<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio a aprendizag<strong>em</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, o qual excluiria to<strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

progresso neste terreno.” 64<br />

Mas,oqueéaci<strong>da</strong><strong>de</strong>?Porqueelafascinatanto?<br />

A ci<strong>da</strong><strong>de</strong> é o espaço <strong>de</strong> troca por excelência. Na sua orig<strong>em</strong>, essa troca era <strong>de</strong><br />

cunho mercantil, on<strong>de</strong> alguns plantavam, abastecendo a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> com o exce<strong>de</strong>nte <strong>da</strong><br />

produção agrícola. Tal relação permitiu que parte <strong>da</strong> população ficasse libera<strong>da</strong> para se<br />

<strong>de</strong>dicar a outras ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, como a indústria e o comércio. Essa diversificação levou ao<br />

surgimento <strong>da</strong>s diferenças <strong>de</strong> classe. Daí para o surgimento <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r soberano, <strong>da</strong><br />

noção <strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong> dominação <strong>de</strong> uns poucos el<strong>em</strong>entos sobre a coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, foi<br />

rápido, tornando-se fatores jamais superados. Como um ímã, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> exerce atração<br />

sobre os indivíduos que extrapola qualquer tentativa <strong>de</strong> compreensão racional. Na<br />

mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, essa troca não ocorre apenas no âmbito <strong>da</strong> economia, porém – e<br />

primordialmente – no encontro <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong><strong>de</strong>, do oposto; na interação <strong>da</strong> diferença, na<br />

circulação <strong>de</strong> notícias e <strong>de</strong> novos pensamentos e no intercâmbio cultural.<br />

63 i<strong>de</strong>m,ibi<strong>de</strong>m,p.34<br />

64 FREUD, apud Santos, Lúcia L.,p.32


53<br />

Em geral, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> t<strong>em</strong> relação com o princípio f<strong>em</strong>inino. O livro do Apocalipse<br />

refere-se a ela como a fonte do <strong>de</strong>sregramento, como uma mulher que se prostitui. De<br />

acordo com a psicanálise, é um dos símbolos <strong>da</strong> mãe, simbolizando a proteção e o<br />

limite. 65 Segundo o pensamento medieval, o hom<strong>em</strong> é um peregrino entre duas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Avi<strong>da</strong>seriaumapassag<strong>em</strong><strong>da</strong>ci<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong>baixo(humana)paraa<strong>de</strong>cima(divina).Mas,<br />

a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> é, fun<strong>da</strong>mentalmente, um espaço coletivo, <strong>da</strong>s experiências inalienáveis.<br />

Sendo assim, está impregna<strong>da</strong> <strong>da</strong>s contradições humanas, pois só existe por causa do<br />

hom<strong>em</strong> que lhe dá forma e significação, mesmo que <strong>de</strong> uma forma abstrata, refletindo a<br />

personali<strong>da</strong><strong>de</strong> do povo que a habita, que a formatou com traços in<strong>de</strong>léveis e que a<br />

diferencia – por vezes, radicalmente – <strong>da</strong>s outras.<br />

Porém, as ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s são construí<strong>da</strong>s através <strong>da</strong>s relações entre as medi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> seu<br />

espaço e os acontecimentos do passado – ao absorver<strong>em</strong> as <strong>em</strong>anações libera<strong>da</strong>s do<br />

passado, dilatam-se. No entanto, não contam seu passado, ele está contido nos muros,<br />

no calçamento, nos telhados velhos, nas pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong>scasca<strong>da</strong>s do casario antigo, na<br />

árvore que resistiu ao t<strong>em</strong>po e ao alargamento <strong>da</strong>s ruas para <strong>da</strong>r passag<strong>em</strong> aos carros. O<br />

segredo para se perceber a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> é a forma como o olhar percorre as ruas, os<br />

monumentos, seu traçado geral. Ca<strong>da</strong> ponto <strong>de</strong>sse itinerário t<strong>em</strong> o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> invocar a<br />

m<strong>em</strong>óriaeaci<strong>da</strong><strong>de</strong>nelaconti<strong>da</strong>,jáqueca<strong>da</strong>umpossuiasuaci<strong>da</strong><strong>de</strong>refleti<strong>da</strong>no<br />

espelho <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória. E espelhos, “há-os ‘bons’ e ‘maus’, os que favorec<strong>em</strong> e os que<br />

<strong>de</strong>tra<strong>em</strong>”, afirmou Guimarães Rosa 66 . Fenômeno umbral, o espelho marca o limite<br />

entre o imaginário e o simbólico. Como o espelho, a m<strong>em</strong>ória é traiçoeira: a escuridão,<br />

a poeira, a opaci<strong>da</strong><strong>de</strong> são “ruídos” no canal que impe<strong>de</strong>m a perfeita percepção <strong>da</strong><br />

imag<strong>em</strong>. Contudo, isto não se configura numa mentira, mas apenas como uma outra<br />

maneira <strong>de</strong> perceber o mundo. Confiamos no espelho como nos óculos ou binóculos,<br />

próteses com o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> expandir nosso raio <strong>de</strong> visão.<br />

65 No Peru, os incas chamavam a terra <strong>de</strong> pachamama – mãe terra – e, antes <strong>de</strong> construír<strong>em</strong> seus t<strong>em</strong>plos,<br />

rendiam-lhe culto para que os maus espíritos foss<strong>em</strong> afastados e seus moradores e freqüentadores ficass<strong>em</strong><br />

sob a proteção divina. Hoje <strong>em</strong> dia, ain<strong>da</strong> se observa a realização <strong>de</strong>sse cerimonial pela população mais<br />

tradicionalista do interior.<br />

66 ROSA,João Guimarães.Primeiras estórias.Rio <strong>de</strong> Janeiro:Nova Fronteira,1988, p.65


54<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

A ci<strong>da</strong><strong>de</strong> tal qual imaginamos, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> ilusão, do medo <strong>da</strong> aspiração, do<br />

sonho, do pesa<strong>de</strong>lo é tão real e, talvez, até mais que aquela <strong>de</strong> concreto, barulhenta: a<br />

urbe. A imag<strong>em</strong> é um subterfúgio que utilizamos para reter o objeto <strong>de</strong>sejado próximo a<br />

nós. Jonathan Raban, adverte que “para o b<strong>em</strong> ou para o mal, [a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>] convi<strong>da</strong> a<br />

refazê-la”. 67<br />

Tal qual o útero materno, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> confere ao indivíduo segurança e proteção,<br />

permitindo a própria i<strong>de</strong>ntificação e sua diferenciação <strong>da</strong> totali<strong>da</strong><strong>de</strong>. É nesses espaços<br />

físicos e simbólicos que o caráter <strong>de</strong> uma pessoa é construído. Parafraseando<br />

Bachelard 68 , po<strong>de</strong>-se afirmar que quando nos l<strong>em</strong>bramos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, apren<strong>de</strong>mos a<br />

morar <strong>em</strong> nós mesmos, <strong>de</strong>scobrimos nosso espaço no mundo. Dessa forma, po<strong>de</strong>-se<br />

compreen<strong>de</strong>r a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> como um lugar fun<strong>da</strong>nte para o ser humano, como se “habitar<br />

fosse ser” 69 . A relação entre a pessoa e o espaço <strong>em</strong> que vive é tão intensa quanto<br />

primordial, com repercussões psíquicas profun<strong>da</strong>s. Daí, ao privar um indivíduo do seu<br />

espaço, <strong>de</strong> suas referências, <strong>de</strong>strói-se mais que seu passado: <strong>de</strong>strói-se o próprio ser.<br />

“A cultura não terminava, para nós, na produção e consumo <strong>de</strong> livros, quadros,<br />

sinfonias, filmes e obras <strong>de</strong> teatro. N<strong>em</strong> começava ali. Entendíamos por cultura a<br />

criação <strong>de</strong> qualquer espaço <strong>de</strong> encontro entre os homens, e eram cultura, para nós,<br />

todos os símbolos <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória coletivas: test<strong>em</strong>unhas do que somos, as<br />

profecias <strong>da</strong> imaginação, as <strong>de</strong>núncias que nos impe<strong>de</strong>m <strong>de</strong> ser.” 70 E impe<strong>de</strong>-se <strong>de</strong> ser<br />

apagando a m<strong>em</strong>ória, suprimindo as consciências, esvaziando o passado.<br />

67 apud HARVEY, David.Condição Pós-Mo<strong>de</strong>rna:Uma Pesquisa sobre as Origens <strong>da</strong> Mu<strong>da</strong>nça<br />

Cultural.Trad. A<strong>da</strong>il Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves.São Paulo:Edições Loyola,1992,p.17<br />

68 BACHELARD, apud SANTOS, Lúcia,op. cit.,p.55<br />

69 SANTOS, Lúcia,op. cit.,p.55<br />

70 GALEANO,op. cit.,p.171


55<br />

Tomando impulso com a Revolução Industrial, que propiciou o culto ao<br />

pragmatismo, as idéias mo<strong>de</strong>rnizadoras propagaram-se pela Europa e, <strong>em</strong> pouco t<strong>em</strong>po,<br />

chegaram ao Brasil. Os últimos anos do século XIX test<strong>em</strong>unharam os primeiros sinais<br />

<strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nça. Sob as palavras <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m “urbanizar, civilizar e mo<strong>de</strong>rnizar” 71 . Nas duas<br />

primeiras déca<strong>da</strong>s do século XX, ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s como São Paulo, Rio <strong>de</strong> Janeiro e Recife<br />

viram ir abaixo sobrados coloniais e monumentos caros à população. Tudo <strong>em</strong> nome <strong>da</strong><br />

mo<strong>de</strong>rnização. Abran<strong>da</strong>ndo <strong>em</strong> alguns períodos, o “bota-abaixo” voltava com força<br />

revigora<strong>da</strong> <strong>em</strong> outras. O bairro do Recife viu seu casario <strong>de</strong> seis an<strong>da</strong>res <strong>da</strong>r vez à<br />

expansão do Porto. 72 As déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1940/50 presenciaram ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira revolução<br />

arquitetônica no Recife. A ci<strong>da</strong><strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnizava-se <strong>de</strong> forma vertiginosa. A Igreja do<br />

Corpo Santo e os Arcos sucumbiram à abertura <strong>de</strong> novas aveni<strong>da</strong>s, aos mol<strong>de</strong>s<br />

parisienses. Chegara, então a vez <strong>da</strong> construção <strong>da</strong>s aveni<strong>da</strong>s Guararapes e Dantas<br />

Barreto, do alargamento <strong>da</strong> rua <strong>da</strong> Aurora e <strong>da</strong> Aveni<strong>da</strong> Con<strong>de</strong> <strong>da</strong> Boa vista, <strong>da</strong><br />

urbanização <strong>de</strong> Boa Viag<strong>em</strong>, <strong>da</strong> construção dos arranha-céus – erguidos sob o sacrifício<br />

<strong>de</strong> edificações históricas, como a Igreja Nossa Senhora do Paraíso e do Hospital João<br />

<strong>de</strong> Deus.<br />

Porém, essa fúria mo<strong>de</strong>rnizadora, por mais b<strong>em</strong> intenciona<strong>da</strong> que fosse, trouxe<br />

graves conseqüências para seus habitantes. Além <strong>de</strong> não ter conseguido atingir seus<br />

objetivos <strong>de</strong> estruturação do Recife, provocou uma crise <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois com a<br />

<strong>de</strong>molição <strong>de</strong> prédios e monumentos históricos, as pessoas <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> se reconhecer<br />

71<br />

REZENDE, Antônio Paulo.O Recife: histórias <strong>de</strong> uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ma<strong>da</strong>lena Almei<strong>da</strong> (org.).<br />

Recife:FCCR,2002, p.95<br />

72<br />

Kátia LUBAMBO, no livro Bairro do Recife: entre o Corpo Santo e o Marco Zero.<br />

Recife:CEPE,FCCR,1991, analisa os reflexos sócio-culturais <strong>de</strong>ssa mo<strong>de</strong>rnização <strong>de</strong>vastadora, nos<br />

recifenses: “No início <strong>de</strong>ste século, o bairro portuário <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Recife sofreu uma drástica<br />

intervenção que modificou sensivelmente sua fisionomia e sua estrutura social. O impacto e a magnitu<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> tal intervenção, executa<strong>da</strong> praticamente num espaço <strong>de</strong> três anos, não po<strong>de</strong>rão ser analisados,<br />

entretanto, com referência a nossa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> cont<strong>em</strong>porânea. Operações <strong>de</strong> pôr abaixo bairros inteiros<br />

para aten<strong>de</strong>r aos interesses do gran<strong>de</strong> capital imobiliário e as necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> capitalista ocorr<strong>em</strong><br />

com tal freqüência, hoje <strong>em</strong> dia, implicando conseqüências do mesmo modo <strong>de</strong>sastrosas. Tal preocupação<br />

quer ressaltar, contudo, a particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> do contexto no qual se <strong>de</strong>u a primeira gran<strong>de</strong> operação <strong>de</strong><br />

reforma urbana na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> seguindo os mol<strong>de</strong>s <strong>da</strong> primeira do País, a reforma do Rio <strong>de</strong> Janeiro. [...] Não<br />

existe mais a parcela <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> que nasceu do Porto. Como era e como se per<strong>de</strong>u? Sabe-se, apenas, que<br />

foi <strong>de</strong>molido, quase que completamente, o antigo bairro portuário, <strong>de</strong>struindo parte substantiva <strong>de</strong><br />

registros históricos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, para <strong>da</strong>r lugar a aveni<strong>da</strong>s e ruas largas que, atualmente, dão acesso ao<br />

Porto. [...] O bairro do Recife passou a exibir uma paisag<strong>em</strong> <strong>de</strong>calca<strong>da</strong> do estilo mo<strong>de</strong>rno europeu, com o<br />

aspecto imponente e opulento <strong>da</strong>s metrópoles burguesas do Velho Mundo.” pp.145,15 e 143.


56<br />

<strong>em</strong> sua própria ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, percebendo-se a partir <strong>de</strong> então, s<strong>em</strong> orig<strong>em</strong>, s<strong>em</strong> história,<br />

transformando-se num “não-ser” – <strong>de</strong> súbito aquele lar, espaço <strong>de</strong> vivência e <strong>de</strong> t<strong>em</strong>pos<br />

guar<strong>da</strong>dos na m<strong>em</strong>ória, erigido ao longo do t<strong>em</strong>po, sucumbiu transformando-se no<br />

“não-lugar” on<strong>de</strong> não há i<strong>de</strong>ntificação “espacial, relacional ou histórica. O não-lugar é<br />

fruto <strong>da</strong> superabundância <strong>de</strong> acontecimentos, <strong>de</strong> espaço e <strong>da</strong> individualização,<br />

el<strong>em</strong>entos gestados pela veloci<strong>da</strong><strong>de</strong> do ritmo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>.” 73<br />

O “bota-abaixo” e os poetas<br />

Quando uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> se corrompe, a<br />

primeira coisa que gangrena é a linguag<strong>em</strong>. A crítica<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>em</strong> conseqüência, começa com a<br />

gramática e com o restabelecimento dos significados.<br />

[...] A crítica do estado <strong>de</strong> coisas reinante não foi<br />

inicia<strong>da</strong> n<strong>em</strong> pelos moralistas n<strong>em</strong> pelos<br />

revolucionários radicais, mas sim pelos escritores. 74<br />

Octavio Paz referia-se ao México, ao escrever esse texto, no entanto, ele se<br />

encaixa perfeitamente no período <strong>da</strong>s reformas urbanísticas do Recife (principalmente a<br />

primeira meta<strong>de</strong> do século XX). O mal-estar provocado por tal <strong>de</strong>smando, ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro<br />

van<strong>da</strong>lismo arquitetônico, ficou registrado na imprensa local. Ao folhear os jornais <strong>da</strong><br />

época 75 , encontra-se, quase diariamente, textos abor<strong>da</strong>ndo essas reformas: cronistas,<br />

escritores, poetas e, vez por outra inclusive, urbanistas, escrev<strong>em</strong> criticando a falta <strong>de</strong><br />

73 SEVERO, Fernan<strong>da</strong>. O Mercado Público Central <strong>de</strong> Porto Alegre e os Múltiplos T<strong>em</strong>pos <strong>de</strong> uma<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.in:T<strong>em</strong>po/História, Gauer, Ruth M. Chittó (coord.).Silva,Mozart Linhares (org.).Porto<br />

Alegre:EDPUCRS.1998,p.94<br />

74 PAZ,Octavio. O Labirinto <strong>da</strong> solidão e postscriptum. Trad. Eliane Zagury.3 ed.Rio <strong>de</strong> Janeiro:Paz e<br />

Terra,1984,p.226<br />

75 Apesquisafixou-senoDiário<strong>de</strong>Pernambuco<strong>de</strong>1953/54


57<br />

critério para tais mu<strong>da</strong>nças, ou sobre a beleza do Recife ou, ain<strong>da</strong>, lamentando o<br />

<strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> pontos recifenses característicos:<br />

Quantos Anos Depois<br />

Lutgar<strong>de</strong>s Neves<br />

Procurava o Recife<br />

Chamei-o. Chamei-o. Gritei por ele.<br />

Rua do Cabugá. Rua do Cabugá.<br />

Que fizeram <strong>da</strong>s <strong>de</strong>z casas <strong>da</strong> menor rua do mundo? 76<br />

Recife Morto<br />

Joaquim Cardoso<br />

Recife,<br />

Ao clamor <strong>de</strong>sta hora noturna e mágica,<br />

Vejo-te morto, mutilado, gran<strong>de</strong>,<br />

Pregado à cruz <strong>da</strong>s novas aveni<strong>da</strong>s. 77<br />

A poesia <strong>de</strong> Lutgar<strong>de</strong>s Neves faz l<strong>em</strong>brar o quadro “O Grito”, <strong>de</strong>Munch. 78<br />

Tanto uma quanto o outro reflet<strong>em</strong> a angústia do hom<strong>em</strong> mo<strong>de</strong>rno. O poeta procura o<br />

seu Recife, chama-o <strong>em</strong> vão. Já não o encontra, pois a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> sua infância, <strong>da</strong> sua<br />

juventu<strong>de</strong> – companheira e cúmplice <strong>de</strong> seus muitos passos – já não existe mais.<br />

Desespera-se e grita por ela. Fin<strong>da</strong> por in<strong>da</strong>gar o que fizeram com o Recife e suas ruas.<br />

O Recife <strong>de</strong> Joaquim Cardoso, por sua vez, já está mutilado, sua História sangrando<br />

pelas novas artérias abertas. Suas histórias expostas, esva<strong>em</strong>-se. Desvanece a<br />

m<strong>em</strong>ória... Recife sucumbindo sob o peso do progresso. De um lado, a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

76 in:NASCIMENTO,Luiz.O Recife pela voz dos poetas. Coleção Recife 1. Recife:PMR/SEC/Cons.<br />

Municipal <strong>de</strong> Cultura,1977,p.26<br />

77 ib.,p.125<br />

78 ver anexo II, p.102


58<br />

a<strong>da</strong>ptar a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> aos novos t<strong>em</strong>pos que se impunham; <strong>de</strong> outro, a ausência total <strong>de</strong><br />

parâmetros para a realização <strong>de</strong> tão complexa <strong>em</strong>preita<strong>da</strong>.<br />

Por seu lado, não é raro encontrar matérias <strong>de</strong> políticos ou <strong>de</strong> técnicos<br />

encarregados <strong>da</strong>s obras, a <strong>de</strong>fendê-las: “cresce a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Recife sob orientação <strong>de</strong><br />

uma administração <strong>em</strong>preen<strong>de</strong>dora” (DP, 08/11/1953, p. 07); “Praticamente concluí<strong>da</strong><br />

a nova iluminação <strong>de</strong> Boa Viag<strong>em</strong>” (DP, 12/08/1954, P.05); “Amanhã, a inauguração<br />

do alargamento <strong>da</strong> Av. Con<strong>de</strong> <strong>da</strong> Boa Vista” (DP, 22/08/1954, p.03), são algumas<br />

manchetes sobre a mo<strong>de</strong>rnização do Recife. Seu tom é <strong>de</strong>libera<strong>da</strong>mente otimista, ao<br />

contrário do tom dos que eram totalmente contra as obras ou dos que as achavam<br />

necessárias, entretanto, s<strong>em</strong> tamanho extr<strong>em</strong>ismo.<br />

No entanto, irônico é perceber um certo mal-estar por parte dos que<br />

patrocinavam as reformas, pois pareciam ter a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se explicar, perante a<br />

população e a si mesmo, por tais atos, ou <strong>de</strong> salvar, mesmo precariamente, a m<strong>em</strong>ória<br />

coletiva. Na matéria do dia 08/11/1953, sobre a administração <strong>em</strong>preen<strong>de</strong>dora, são<br />

divulga<strong>da</strong>s as obras realiza<strong>da</strong>s ou <strong>em</strong> an<strong>da</strong>mento, no governo Rego Maciel, segundo a<br />

qual, “justificando” o título <strong>de</strong> terceira capital do país, o Recife v<strong>em</strong> passando,<br />

“evoluindo e se esten<strong>de</strong>ndo”, <strong>de</strong>vido à administração municipal “que não t<strong>em</strong> poupado<br />

esforços para acompanhar o ritmo <strong>de</strong> progresso <strong>da</strong> metrópole pernambucana. [Tudo<br />

isso <strong>de</strong>vido] ao senso <strong>de</strong> orientação e à capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>em</strong>preendimento <strong>de</strong> Rego<br />

Maciel”.<br />

Quase como <strong>em</strong> resposta, na edição <strong>de</strong> 16/05/1954, do mesmo Diário, lê-se:<br />

“Urbanizar não é apenas <strong>em</strong>belezar a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. A ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ve conferir aos ci<strong>da</strong>dãos<br />

oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s para que se possam realizar pessoal e coletivamente”. Asmatérias<br />

contra essa mo<strong>de</strong>rnização são mais abun<strong>da</strong>ntes. Indignação e inconformismo eram<br />

sentimentos constantes. A matéria assina<strong>da</strong> por Marco Aurélio <strong>de</strong> Alcântara, no DP <strong>de</strong><br />

04/12/1953, sob o título <strong>de</strong> Desaparec<strong>em</strong> as chácaras do Capibaribe, exprime b<strong>em</strong> o<br />

luto que pesava sobre a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, o luto <strong>da</strong> orig<strong>em</strong>: “Não houve apenas uma <strong>de</strong>struição<br />

progressiva <strong>da</strong>s chácaras e <strong>da</strong>s casas velhas às margens do Capibaribe, significando


59<br />

um sacrifício a sentido ou sentidos <strong>de</strong> urbanismo – urbanismo um pouco macaqueador<br />

<strong>de</strong> mol<strong>de</strong>s norte-americanos e, <strong>em</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, ridículo – mas e intensamente, uma atitu<strong>de</strong><br />

como que <strong>de</strong>preciativa e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo pela arquitetura antiga. Não só por arquitetura,<br />

mas por tudo que cheirasse apenas <strong>de</strong> leve ao passado. [...] As casas <strong>da</strong> beira do<br />

Capibaribe, hoje são quase inexistentes”.<br />

Monumentos que serviam <strong>de</strong> referência a todo um povo eram levados ao chão,<br />

mas <strong>em</strong> contraparti<strong>da</strong>, os monumentos mo<strong>de</strong>rnos – numa espécie <strong>de</strong> resgate do passado<br />

ou, qu<strong>em</strong> sabe, para r<strong>em</strong>issão dos pecados – recebiam nomes <strong>de</strong> personagens ou fatos<br />

<strong>de</strong> importância histórica: Aveni<strong>da</strong> Guararapes, Aveni<strong>da</strong> Dantas Barreto, Aveni<strong>da</strong><br />

Con<strong>de</strong> <strong>da</strong> Boa Vista, Hospital <strong>da</strong> Restauração; ou com<strong>em</strong>oração, à exaustão, <strong>de</strong> <strong>da</strong>tas<br />

cívicas - trezentos anos <strong>da</strong> Restauração Pernambucana – inclusive homenageando os<br />

heróis pernambucanos, batizando o maior pronto socorro do Estado (inaugurado <strong>em</strong><br />

1954) <strong>de</strong> Hospital <strong>da</strong> Restauração.<br />

Para Gilberto Freyre, o “Recife <strong>de</strong> moura encanta<strong>da</strong> [transformou-se] <strong>em</strong> moura<br />

torta: escondi<strong>da</strong> por ser feia e não por timi<strong>de</strong>z e feitiço. [...] O Recife ca<strong>da</strong> vez mais<br />

gata borralheira <strong>de</strong>scaracteriza<strong>da</strong>, aliás, por uma arquitetura nova que, admiti<strong>da</strong> uma<br />

exceção ou outra, está longe <strong>de</strong> ser <strong>de</strong> primeira or<strong>de</strong>m” 79 . A construção dos primeiros<br />

arranha-céus também foi abor<strong>da</strong><strong>da</strong> na imprensa. Sob o título <strong>de</strong> “Recife, Ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Mutila<strong>da</strong>” 80 , Magalhães Melo <strong>de</strong>monstra quão agressiva foi a mo<strong>de</strong>rnização <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

escrevendo sobre o acelerado ritmo <strong>da</strong> construção <strong>de</strong> edifícios, ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros arranhacéus<br />

<strong>de</strong> 20/30 an<strong>da</strong>res. Critica a construção do Edifício Capibaribe, no trecho final <strong>da</strong><br />

Rua <strong>da</strong> Aurora, consi<strong>de</strong>ra a construção <strong>de</strong>sse edifício “um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro atentado à<br />

tradição e ao espírito que t<strong>em</strong> informado a nossa arquitetura. Ali, hirto, isolado no seu<br />

egoísmo mercantilista quebrando, inteiramente, to<strong>da</strong> harmonia que margêa [sic] o<br />

velho rio, que lhe <strong>de</strong>u nome, o monstrengo <strong>de</strong> cimento armado, on<strong>de</strong> vão viver vi<strong>da</strong><br />

insípi<strong>da</strong> muitas famílias e, sobretudo, crianças, dignas <strong>de</strong> melhor sorte”.<br />

79 in: Reflexões sobre o Recife,DP,04/07/1954,p.04<br />

80 DP,14/10/1953,p.04


60<br />

Essa polêmica entre o novo e o velho, o progresso e a tradição não é nova e n<strong>em</strong><br />

surgiu na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1950, pelo contrário. Quando o Barão <strong>de</strong> Haussmann foi<br />

encarregado, por Napoleão III, <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rnização <strong>de</strong> Paris, projetou e executou reformas<br />

transformando as ruas estreitas e curvas <strong>da</strong>quela ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> vias retas <strong>de</strong> até 100 metros<br />

<strong>de</strong> largura, no intuito <strong>de</strong> proporcionar maior flui<strong>de</strong>z e veloci<strong>da</strong><strong>de</strong> ao tráfego, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que <strong>de</strong>veriam servir <strong>de</strong> principais ruas <strong>de</strong> comércio e negócios. Porém, com o<br />

crescimento <strong>de</strong>smedido do trânsito, as duas funções tornaram-se incompatíveis, pois a<br />

excessiva veloci<strong>da</strong><strong>de</strong> dos veículos colocava <strong>em</strong> risco a vi<strong>da</strong> dos pe<strong>de</strong>stres. Daí, o<br />

próprio Haussmann se ver atropelado pela dinâmica capitalista. Essa mu<strong>da</strong>nça drástica<br />

na paisag<strong>em</strong> parisiense motivou uma reação por parte dos poetas. Em seus po<strong>em</strong>as,<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e campo tornaram-se antagonistas: o progresso e a mo<strong>de</strong>rnização x a natureza e<br />

a tradição. Nos “Quadros Parisienses”, inseridos <strong>em</strong> “As Flores do Mal”, Bau<strong>de</strong>laire<br />

incorpora à poesia valores, antes consi<strong>de</strong>rados impuros, para <strong>de</strong>monstrar seu mal-estar e<br />

seu inconformismo diante <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> posta abaixo:<br />

Paisag<strong>em</strong><br />

Charles Bau<strong>de</strong>laire<br />

Quero, para compor os meus castos monólogos,<br />

Deitar-me junto ao céu, à mo<strong>da</strong> dos astrólogos,<br />

E, vizinho do sino, escutar cismarento,<br />

Os seus hinos marciais, levados pelo vento.<br />

As mãos postas no queixo, eu do alto <strong>da</strong> mansar<strong>da</strong>,<br />

Hei <strong>de</strong> ver a oficina a cantar na hora par<strong>da</strong>;<br />

Torres e chaminés, os mastros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

Gran<strong>de</strong>s céus a fazer sonhar a liber<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

É s<strong>em</strong>pre doce ver que à tar<strong>de</strong> a bruma vela<br />

A estrela pelo azul e a lâmpa<strong>da</strong> à janela,<br />

Os rios <strong>de</strong> carvão ir<strong>em</strong> ao firmamento,<br />

Como a Lua, verter seu frouxo encantamento. 81<br />

81 BAUDELAIRE. As Flores do Mal, p. 239


61<br />

À linguag<strong>em</strong> romântica (castos monólogos, <strong>de</strong>itar junto ao céu, à tar<strong>de</strong> a bruma<br />

vela), Bau<strong>de</strong>laire incorporou palavras antes inconcebíveis num po<strong>em</strong>a (oficina, torres,<br />

chaminés, rios <strong>de</strong> carvão, hinos marciais, lâmpa<strong>da</strong>). Carregando na ironia e na<br />

ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, (Torres e chaminés, os mastros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, / Gran<strong>de</strong>s céus a fazer sonhar<br />

a eterni<strong>da</strong><strong>de</strong>) fez com que a poesia refletisse a fumaça cinzenta exala<strong>da</strong> pelas torres <strong>da</strong>s<br />

fábricas. Tal visão “cismarenta” ecoou <strong>em</strong> Joaquim Cardoso, <strong>em</strong> cuja poesia percebe-se<br />

as tensões e os conflitos provocados pelas reformas urbanísticas do Recife:<br />

As Alvarengas<br />

Joaquim Cardoso<br />

A ci<strong>da</strong><strong>de</strong> vorag<strong>em</strong><br />

éoMoloch,éoabismo,éacal<strong>de</strong>ira...<br />

Além, pelo ar distante e sobre as casas<br />

as chaminés fumegam e o vento alonga<br />

o passo <strong>de</strong> parafuso<br />

<strong>da</strong>s hélices <strong>de</strong> fumo. 82<br />

O Recife <strong>de</strong> Joaquim Cardoso é <strong>de</strong>vorado pelo <strong>de</strong>us <strong>da</strong> <strong>de</strong>struição, atirado no<br />

abismo chamejante <strong>da</strong> cal<strong>de</strong>ira, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> só escapa a fumaça <strong>da</strong>s chaminés fumegantes<br />

<strong>da</strong>s fábricas, leva<strong>da</strong>s pelo vento, <strong>em</strong> passos rodopiantes. Explicitamente influenciado<br />

por Bau<strong>de</strong>laire 83 , Joaquim Cardoso utiliza vocabulário similar ao do poeta francês, no<br />

entanto, <strong>de</strong> forma mais contun<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong>monstrando sua amargura e <strong>de</strong>solamento por ver<br />

sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong> ser traga<strong>da</strong> pelo <strong>de</strong>us do progresso. Antônio Paulo Rezen<strong>de</strong>, no livro “(Des)<br />

encantos mo<strong>de</strong>rnos”, faz uma análise profun<strong>da</strong> <strong>de</strong>ssa angústia gera<strong>da</strong> pela ruptura do<br />

passado a que o Recife era submetido, confrontando os dois focos opostos – a<br />

mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> e a tradição- o dil<strong>em</strong>a <strong>de</strong> uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Segundo este historiador, “o nosso<br />

t<strong>em</strong>po está envolvido na crise <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, preso nas inquietações que chegam a<br />

82 CARDOSO, Joaquim. Poesias Completas<br />

83 “O sentimento <strong>da</strong> poesia me veio muito moço, t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que procurei imitar Verlaine e Bau<strong>de</strong>laire”.<br />

Apud D’ANDREA,Mo<strong>em</strong>a Selma.A ci<strong>da</strong><strong>de</strong> poética <strong>de</strong> Joaquim Cardoso:elegia <strong>de</strong> uma<br />

mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>.Recife:a autora,1998, p.16


62<br />

admitir o fim <strong>da</strong> História.” 84 . Esse livro t<strong>em</strong>, <strong>de</strong> acordo com Antônio Paulo, o objetivo<br />

<strong>de</strong> “analisar, historicamente, como a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> recifense, na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> vinte<br />

representava o mo<strong>de</strong>rno e o tradicional, o novo e o velho”. 85 Ao longo <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

1920, essa acirra<strong>da</strong> polêmica entre o passado e a mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> teve como protagonistas<br />

Gilberto Freyre, <strong>de</strong>fensor <strong>da</strong> tradição e do regionalismo; e Joaquim Inojosa, que se<br />

encontrava do lado dos mo<strong>de</strong>rnistas paulistas e cariocas.<br />

Ao voltar <strong>de</strong> um período longo <strong>de</strong> estudos superiores nos Estados Unidos e<br />

Europa, on<strong>de</strong> entrou <strong>em</strong> contato com a mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> material e intelectual, Freyre teve,<br />

num primeiro momento <strong>de</strong> seu retorno, duplo impacto: 1- a percepção <strong>de</strong> quão<br />

provinciana era sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e o quanto ela se encontrava <strong>em</strong> atraso com as idéias<br />

vigentes nos centros mais avançados 86 ; e 2- as alterações urbanísticas pelas quais o<br />

Recife estava passando lhe provocou receio. A falta <strong>de</strong> estudos criteriosos para a<br />

execução <strong>da</strong>s obras ameaçava apagar <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória uma parte <strong>da</strong> história <strong>de</strong>ssa ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

que ain<strong>da</strong> não havia sido <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente registra<strong>da</strong>. A história, até então, restringia-se a<br />

“<strong>da</strong>tas e nomes <strong>de</strong> reis e generais” 87 e Gilberto Freyre vinha “colhendo muita nota<br />

possível <strong>de</strong> interesse sociológico e antropológico” 88 para escrever a história do Recife e<br />

<strong>de</strong> sua gente. Daí, consi<strong>de</strong>rava a <strong>de</strong>struição indiscrimina<strong>da</strong> uma atroci<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo<br />

“uma combinação íntima <strong>da</strong> Tradição com a Mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>.” 89<br />

Joaquim Inojosa, bacharel <strong>em</strong> Direito e jornalista, é consi<strong>de</strong>rado o gran<strong>de</strong><br />

divulgador e incentivador do movimento mo<strong>de</strong>rnista no Nor<strong>de</strong>ste. Aos 19 anos (1920),<br />

publicou um livro <strong>de</strong> contos on<strong>de</strong>, <strong>em</strong> alguns <strong>de</strong>les <strong>de</strong>monstra sua preocupação com o<br />

social. Em set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1922, vai a São Paulo e toma conhecimento <strong>da</strong>s novas idéias<br />

<strong>em</strong> circulação. Encontra-se com os expoentes do mo<strong>de</strong>rnismo paulista. Entusiasma-se<br />

84 REZENDE, Antônio Paulo. (Des) encantos mo<strong>de</strong>rnos: histórias <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Recife na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

20.Recife:FUNDARPE,1997,p.14<br />

85 i<strong>de</strong>m,ibi<strong>de</strong>m,p.14<br />

86 “Saí <strong>da</strong>qui quase menino, como se diz, e voltei hom<strong>em</strong> feito, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> contatos <strong>em</strong><br />

meios universitários e extra-universitários nos Estados Unidos e Europa. Ao voltar ao Brasil, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ssa<br />

ausência <strong>de</strong> 5 anos, <strong>de</strong>parei-me com um meio que me <strong>de</strong>snorteou: ao qual me senti totalmente estranho.”<br />

Freyre, apud Rezen<strong>de</strong>, 1997, pp139-140<br />

87 id.,ib.,p.144<br />

88 id.,ib.,p.144<br />

89 id.,ib.,p.145


63<br />

com as novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e <strong>de</strong>clara, na obra “O Movimento Mo<strong>de</strong>rnista <strong>em</strong> Pernambuco”:<br />

“Regressando a Pernambuco – confesso-o sinceramente – não guar<strong>da</strong>va comigo<br />

impressão maior do mo<strong>de</strong>rnismo que não fosse a <strong>de</strong> uma arranca<strong>da</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>alistas<br />

contra a velharia <strong>da</strong> literatura, s<strong>em</strong> a previsão <strong>da</strong>quelas influências que o movimento<br />

viria a exercer <strong>de</strong>pois sobre as letras e as artes e a própria política nacional, no<br />

germinar <strong>da</strong> s<strong>em</strong>ente revolucionária que ocultava <strong>em</strong> seu bojo.” 90<br />

Os <strong>de</strong>bates i<strong>de</strong>ológicos entre esses dois pensadores pernambucanos ocorreram,<br />

basicamente, nos jornais. De um lado o jov<strong>em</strong> intelectual <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> aristocrática<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo a tradição, o regionalismo, a permanência, para qu<strong>em</strong> era necessário<br />

questionar a novi<strong>da</strong><strong>de</strong> e as ameaças trazi<strong>da</strong>s por ela. De outro, um jov<strong>em</strong> <strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong><br />

uma revolução social, “dinâmico, progressista, preocupado com o alcance que um<br />

grupo jov<strong>em</strong> po<strong>de</strong>ria ter na medi<strong>da</strong> que enten<strong>de</strong>sse a renovação artística como parte <strong>de</strong><br />

uma r<strong>em</strong>o<strong>de</strong>lação necessária <strong>da</strong>s estruturas e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do Brasil, sustenta a ponte que<br />

consegue traçar entre a sua região, mais afasta<strong>da</strong> e mais conservadora, e as capitais<br />

on<strong>de</strong> borbulhava o vanguardismo.” 91 . Entre esses dois intelectuais, a formação <strong>da</strong><br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um povo.<br />

A minha ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, a tua, a sua, a <strong>de</strong>le, a nossa ...<br />

To<strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> possui seus símbolos que a faz reconhecível por qu<strong>em</strong> os vê. Esses<br />

símbolos formam uma língua nova, <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>, apesar <strong>da</strong> aparente familiari<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Vê-los, é como <strong>de</strong>cifrar um texto on<strong>de</strong> está contido o que se <strong>de</strong>ve ver e pensar,<br />

provocando a repetição <strong>de</strong> um discurso prévio. Porém, entre uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e o discurso<br />

que a <strong>de</strong>screve, há uma distância. Dessa forma, não se <strong>de</strong>ve confundi-los, pois não há<br />

linguag<strong>em</strong> s<strong>em</strong> enganos. Consi<strong>de</strong>rando que ca<strong>da</strong> pessoa possui <strong>em</strong> sua mente uma<br />

90 apud REZENDE,ib,p.169<br />

91 LOPEZ,apud Rezen<strong>de</strong>,ib.,p.167


64<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong> particular “feita exclusivamente <strong>de</strong> diferenças, uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> s<strong>em</strong> figuras e s<strong>em</strong><br />

forma” 92 , é então necessário <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as amarras e preconceitos,<br />

liberando assim a imaginação para se tornar realmente capaz <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a<br />

linguag<strong>em</strong> e a mensag<strong>em</strong> <strong>em</strong>ana<strong>da</strong>s <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. A mente, encontrando-se livre e aberta,<br />

permite a percepção do novo. E para que esse novo seja fixado, repete-se a imag<strong>em</strong>,<br />

repete-se mn<strong>em</strong>onicamente os símbolos para que, a partir <strong>da</strong>í, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> possa existir,<br />

visto que tanto ela quanto a m<strong>em</strong>ória são redun<strong>da</strong>ntes.<br />

No entanto, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> não é una. Qualquer que seja ela, possui duas faces: uma<br />

oficial, visível: e outra inverti<strong>da</strong>, seu reflexo. Observando-se com atenção, perceber-se<br />

que o que acontece na primeira, acontece também na segun<strong>da</strong>. Contudo, esta é uma<br />

imag<strong>em</strong> virtual e, como que refleti<strong>da</strong> num espelho convexo, ora é dilata<strong>da</strong> ora anula<strong>da</strong>.<br />

Esse avesso oculta o lado feio, in<strong>de</strong>sejado, <strong>de</strong>sagradável: suas imundícies, seus restos<br />

s<strong>em</strong>pre a se multiplicar, face essa escondi<strong>da</strong>, camufla<strong>da</strong>, mas que para vê-la basta sair<br />

<strong>da</strong> rota oficial, fazer um s<strong>em</strong>icírculo para ficar <strong>de</strong>fronte <strong>de</strong>la. Direito e avesso: dois<br />

lados “como uma folha <strong>de</strong> papel , com uma figura aqui e outra ali, que não po<strong>de</strong>m se<br />

separar n<strong>em</strong> se encarar.” 93 Mas, à distância distingue-se melhor as imagens.<br />

Entretanto, há ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s que não se mostram <strong>de</strong> imediato (Recife é uma <strong>de</strong>las, segundo<br />

Gilberto Freyre), é preciso pegá-las <strong>de</strong> surpresa para <strong>de</strong>scobrir seus segredos – algumas<br />

os têm inesgotáveis.<br />

Sabe-se que o olhar do observador influi na quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> apreensão <strong>da</strong> imag<strong>em</strong>,<br />

<strong>de</strong>terminando uma maior ou menor afini<strong>da</strong><strong>de</strong> com a coisa visualiza<strong>da</strong>. De acordo com o<br />

seu humor, a relação entre o observador e o objeto observado (no caso, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>) po<strong>de</strong><br />

ser <strong>de</strong> respeito, ódio ou amor. Caso seja <strong>de</strong> amor, a relação leva a uma cont<strong>em</strong>plação<br />

fascina<strong>da</strong> pela beleza, perfeição, algum <strong>de</strong>talhe (punctum), ou, talvez, pela percepção<br />

<strong>da</strong> própria ausência na imag<strong>em</strong>, “ passado presente futuro que bloqueia as existências<br />

calcifica<strong>da</strong>s pela ilusão do movimento” 94 . É interessante perceber que, ao visitar uma<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, bisbilhotar suas arestas, registrá-la <strong>em</strong> fotos, observar não importa se por um<br />

92 CALVINO, op. cit.,p.34<br />

93 i<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m,p.97<br />

94 id.,ib.,p.94


65<br />

longo ou breve momento, ao recordá-la ela terá se transformado <strong>em</strong> outra diversa, pois<br />

a m<strong>em</strong>ória é fugidia, é fantasiosa. Percorrendo o <strong>em</strong>aranhado <strong>de</strong> suas ruas, <strong>de</strong>scobre-se<br />

a ruínas, o submundo <strong>da</strong>s contravenções, dos interditos, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> mal-cheirosa dos<br />

conspiradores e contrabandistas que transitam pelos esgotos <strong>de</strong>sta ci<strong>da</strong><strong>de</strong> abandona<strong>da</strong>.<br />

Como serão as ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>em</strong> seus diversos ângulos, faces, distância, proximi<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> permanência? A sua essência é t<strong>em</strong>a <strong>de</strong> discussões nunca conclusivas. Alguns<br />

acreditam que o espírito <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> são seus habitantes – mesmo que tenham chegado a<br />

pouco t<strong>em</strong>po -, outros, que o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro espírito é o que lhe dá forma, o que ela contém.<br />

Definir ou <strong>de</strong>screver uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> é atitu<strong>de</strong> inglória, <strong>de</strong>vido à sua redundância ao repetir<br />

chavões e lugares comuns. No entanto, há <strong>em</strong> to<strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> um lugar no qual ela se<br />

mostra por inteiro, on<strong>de</strong> revela seus traços, suas proporções s<strong>em</strong> pudor e que ca<strong>da</strong><br />

habitante ou visitante vai perceber a sua maneira, formando a sua imag<strong>em</strong> sobre tal<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, reconhecendo uma angústia sua e po<strong>de</strong>ndo, através <strong>da</strong> observação <strong>de</strong>sses<br />

<strong>em</strong>aranhados traços, talvez “encontrar [...] uma resposta à história <strong>de</strong> suas vi<strong>da</strong>s, às<br />

vicissitu<strong>de</strong>s do <strong>de</strong>stino.” 95<br />

Para Gilberto Freyre, o espaço on<strong>de</strong> surge é diretamente responsável pelo<br />

caráter <strong>de</strong> uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e por suas características, tal influência passando do geográfico<br />

para o social. Em relação ao Recife, é níti<strong>da</strong> a influência do meio: nesse caso específico<br />

– do porto. Pois, além <strong>de</strong> sua função primeira <strong>de</strong> meio <strong>de</strong> transporte – <strong>de</strong> pessoas,<br />

animais e cargas, ele abre as portas para o mundo, facilita a circulação <strong>de</strong> idéias às<br />

quais repressão nenhuma po<strong>de</strong> evitar. Mas, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que sofre influências<br />

externas, influencia internamente as ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, silenciosamente, contudo <strong>de</strong> forma<br />

inequívoca. Foi <strong>de</strong>vido ao seu porto natural que os holan<strong>de</strong>ses se fixaram no Recife. As<br />

idéias que por ele circularam, levaram à elaboração do “Manifesto do Mundo”, dos<br />

praieiros, “no qual se proclamava que o ‘mundo todo quer reformar-se, uma vocação<br />

mundial e nós não <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os ficar estacionários’. A função portuária <strong>da</strong>ria, assim, ao<br />

Recife, uma vocação atlântica, um <strong>de</strong>stino quase transnacional <strong>de</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> aberta<br />

95 id.,ib.,p.92


66<br />

à rosa dos ventos <strong>da</strong> inquietação universal” 96 Portanto, o fato <strong>de</strong> morar entre as águas<br />

dos rios e do mar, usufruindo <strong>da</strong>s benesses e sofrendo, por vezes, sua fúria, fez com que<br />

os habitantes <strong>de</strong>ssa ci<strong>da</strong><strong>de</strong> anfíbia tenham s<strong>em</strong>pre os olhos a monitorar-lhes o humor.<br />

Por sua parte, o sol é outro fator <strong>de</strong>terminante para a formação do caráter do<br />

Recife. O excesso <strong>de</strong> luz e clari<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao longo <strong>de</strong> todo o ano, fez com que seus prédios<br />

foss<strong>em</strong> construídos <strong>de</strong> forma a proporcionar sombreamentos. G. Freyre chama atenção<br />

para o reflexo <strong>de</strong>sses dois fatores que resultou “num tipo recifens<strong>em</strong>ente urbano que<br />

po<strong>de</strong> ser classificado como atlântico-tropical, [...] pela sua situação, seu espaço, pelo<br />

ambiente, pelo clima, por aquele clima e por aquele sol [...] que parece ter suas<br />

singulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s [...] refleti<strong>da</strong>s sobre a sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, quer <strong>de</strong> moradores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, quer<br />

<strong>de</strong> alguns dos seus visitantes” 97 E como não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, tanta clari<strong>da</strong><strong>de</strong> é<br />

refleti<strong>da</strong> nos trabalhos <strong>de</strong> diversos pintores com suas telas cheias <strong>de</strong> luz e cores furta<strong>da</strong>s<br />

<strong>de</strong>sse sol tropical. Fatores como a luz, o sol e as cores são itens obrigatórios a ser<strong>em</strong><br />

analisados num estudo sobre o Recife, pois quer inci<strong>da</strong>m sobre as construções<br />

tipicamente recifenses como os mocambos, quer sobre os palacetes ou arranha-céus,<br />

seus reflexos são <strong>de</strong>terminantes para a percepção <strong>de</strong> sua personali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Outra força<br />

<strong>de</strong>cisiva para a formação moral <strong>de</strong> uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, é <strong>de</strong> teor sócio-político. Segundo o<br />

professor Gi<strong>de</strong>on Sjoberg 98 , os impérios são naturais diss<strong>em</strong>inadores <strong>de</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, uma<br />

vez que elas serv<strong>em</strong> para manter a supr<strong>em</strong>acia militar nas regiões conquista<strong>da</strong>s.<br />

Para Gilberto Freyre, o Recife “v<strong>em</strong> sendo uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> plural no seu caráter e<br />

nas suas formas características <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e cultura. A sua personali<strong>da</strong><strong>de</strong> não v<strong>em</strong><br />

faltando contradições. Choques entre contrários. Aventura e rotina. Inovação e<br />

tradição. [...] Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> misto <strong>de</strong> apolínea e dionisíaca. De Sancho e <strong>de</strong> Quixote. Mais<br />

introverti<strong>da</strong> que extroverti<strong>da</strong>. Mais longilínea que brevilínea. Tão dramática quanto<br />

96 MATOS, Potiguar. op. cit., 391<br />

97 FREYRE, Gilberto. Como Escrever uma Autobiografia coletiva do Recife?. In: Um T<strong>em</strong>po do Recife<br />

Mota, Mauro (org.),p. 456<br />

98 SJOBERG.Orig<strong>em</strong> e evolução <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s. In: Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, a urbanização <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Zahar Editores, 1972, p. 45


67<br />

lírica.” 99 E o Recife possui essas múltiplas faces: moura torta, moura encanta<strong>da</strong>, gata<br />

borralheira... Possui mais que as 27 ruas <strong>de</strong> Olin<strong>da</strong> dos t<strong>em</strong>pos <strong>de</strong> Bento Teixeira, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que é um “país fabuloso” 100 on<strong>de</strong> a casa do avô Costa Ribeiro era a<br />

capital e cuja dimensão não ultrapassava, geograficamente, quatro ruas: <strong>da</strong> União, do<br />

Sol, <strong>da</strong> Aurora e <strong>da</strong> Sau<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas que nas recor<strong>da</strong>ções do poeta, era infinito. É uma<br />

povoação mestiça e alagadiça que o belga, ímpio tirano, edificou. Velho livro <strong>de</strong> uma<br />

história relido à tar<strong>de</strong>. Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> que provoca sau<strong>da</strong><strong>de</strong>s:<br />

Recife<br />

Ernani Sátiro<br />

Oh que sau<strong>da</strong><strong>de</strong>s que tenho<br />

Da minha rua <strong>da</strong> Aurora<br />

Do rio naquela rua<br />

Da aurora naquele rio<br />

Daquelerio<strong>da</strong>Aurora<br />

Que as águas não traz<strong>em</strong> mais. 101<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> que provoca separações:<br />

“ – Como po<strong>de</strong>s então crer que eu po<strong>de</strong>ria partir, e <strong>de</strong>ixar tudo isso <strong>em</strong> mãos alheias?<br />

E que mãos alheias penetr<strong>em</strong> nesta terra, que é minha, e nela se suj<strong>em</strong> e façam crescer flores e<br />

frutos?<br />

- Terias outras flores e frutos na Holan<strong>da</strong>.<br />

- Não terão o mesmo odor, a mesma áci<strong>da</strong> doçura.<br />

- Anna, a terra nós a traz<strong>em</strong>os <strong>em</strong> nós.<br />

- Tu, talvez, Andreza. Não eu. Careço <strong>de</strong> sentir sob meus pés este barro pegajoso,<br />

esta terra escura. Ou as areias <strong>da</strong>s margens do Capibaribe. Careço dos perfumes<br />

99 FREYRE,Como escrever-se uma autobiografia coletiva do Recife?. In:UmT<strong>em</strong>podoRecife.Mota,<br />

Mauro (org.), Recife:Arquivo Público Estadual, 1978<br />

100 BANDEIRA, Manuel, apud Mauro Mota,1978<br />

101 in: O Recife Pela Voz dos Poetas,p. 195


68<br />

<strong>da</strong>s matas do Engenho <strong>da</strong> Casa Forte. Meu corpo se fez neste solo, se enraizou.<br />

Como uma árvore antiga e viçosa, morreria se me arrancass<strong>em</strong>.” 102<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> ingrata:<br />

Recife, cruel ci<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

águia sangrenta, leão.<br />

ingrata para os <strong>da</strong> terra,<br />

boa para os que não são.<br />

Amiga dos que a maltratam,<br />

inimiga dos que não,<br />

este é o teu retrato feito<br />

com tintas do teu verão<br />

e <strong>de</strong>smaia<strong>da</strong>s l<strong>em</strong>branças<br />

do t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que também eras<br />

noiva <strong>da</strong> revolução.<br />

Pois é do sonho dos homens<br />

que uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> se inventa. 103<br />

102 FERREIRA, Luzilá G. A garça mal feri<strong>da</strong>, a história <strong>de</strong> Anna Paes D’Altro no Brasil Holandês.<br />

Recife:Editora Nova Fronteira,2002, p.165<br />

103 Po<strong>em</strong>a “GuiaPrático<strong>da</strong>Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>doRecife”, Carlos PENA FILHO, in: Livro Geral,p.142 e 129


69<br />

A CRÔNICA DA CIDADE<br />

Bico <strong>de</strong> pena do Diário <strong>de</strong> Pernambuco e linha <strong>de</strong> bon<strong>de</strong> puxado a burros


70<br />

Capítulo III<br />

A CRÔNICA DA CIDADE<br />

Mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

A aceleração do progresso<br />

material fará nascer um medo do<br />

progresso.<br />

Jacques Le Goff<br />

Para se compreen<strong>de</strong>r o passado e o presente é necessário ter consciência <strong>da</strong><br />

fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> do t<strong>em</strong>po. T<strong>em</strong>a complexo cujo leque <strong>de</strong> interpretações permite sua<br />

abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> sobre as mais distintas áreas do conhecimento, o t<strong>em</strong>po é fugaz, carrega <strong>em</strong><br />

seu dorso o peso do <strong>de</strong>sencanto e o espectro <strong>da</strong> dissolução. Na teologia cristã, o t<strong>em</strong>po<br />

t<strong>em</strong> três faces: o passado – que po<strong>de</strong> ser resgatado pela m<strong>em</strong>ória; o presente – a face<br />

mais frágil, o instante imediato, aquele que quando se torna reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, já não é mais; e o<br />

futuro – a face <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>, <strong>da</strong> expectativa. Segundo Padre Antônio Vieira, “O t<strong>em</strong>po,<br />

como o Mundo, t<strong>em</strong> dois h<strong>em</strong>isférios: um superior e visível, que é o passado, outro<br />

inferior e invisível, que é o futuro: no meio <strong>de</strong> um e <strong>de</strong> outro h<strong>em</strong>isférios ficam<br />

horizontes do que viv<strong>em</strong>os, on<strong>de</strong> o passado se termina e o futuro começa”. 104 Santo<br />

Agostinho con<strong>de</strong>nsa os três t<strong>em</strong>pos no presente: “o presente <strong>da</strong>s coisas passa<strong>da</strong>s, o<br />

presente <strong>da</strong>s coisas presentes e o presente <strong>da</strong>s coisas futuras” 105 Para Brau<strong>de</strong>l, o t<strong>em</strong>po<br />

é ternário, conjuntural e breve. Gilberto Freyre <strong>de</strong>fine-o como tríbio: sendo a projeção<br />

<strong>de</strong> t<strong>em</strong>pos já vividos e aquele que ain<strong>da</strong> está sendo vivido, o hom<strong>em</strong> sendo o resultado<br />

<strong>de</strong> sua relação com o t<strong>em</strong>po. Essa <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Freyre é corrobora<strong>da</strong> pelo pensamento<br />

104 Apud CORDIVIOLA,Alfredo. Uma História do T<strong>em</strong>po. Antônio Vieira e os Limites <strong>da</strong> Profecia.<br />

Recife: Gab. Português <strong>de</strong> Leitura, 1998, p.28<br />

105 Apud LE GOFF, Passado/Presente. Enciclopédia Einaudi. Vol I.Lisboa:Imprensa Nacional/Casa <strong>da</strong><br />

Moe<strong>da</strong>, 1984, p. 294


71<br />

do Padre Daniel Lima: “Ca<strong>da</strong> hom<strong>em</strong> carrega a História <strong>de</strong> todos os que o prece<strong>de</strong>ram.<br />

E faz, por sua vez, <strong>em</strong> certa medi<strong>da</strong>, a História <strong>de</strong> todos que o seguirão. Nenhum <strong>de</strong> nós<br />

começa no princípio. Nasc<strong>em</strong>os no meio <strong>de</strong> nossa própria história.” 106 Porém, para que<br />

essa História vivi<strong>da</strong> seja resgata, é necessária a m<strong>em</strong>ória. É na infância que a m<strong>em</strong>ória<br />

individual é <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> parte forma<strong>da</strong>, enquanto que a social e histórica é construí<strong>da</strong><br />

pela tradição e pelo ensino sist<strong>em</strong>ático. Através <strong>de</strong>ssas duas – individual e coletiva,<br />

organiza<strong>da</strong>s, po<strong>de</strong>-se cont<strong>em</strong>plar um mais além no t<strong>em</strong>po.<br />

Ao longo <strong>da</strong> História, a forma como o t<strong>em</strong>po é visto modificou-se: para os povos<br />

primitivos, o t<strong>em</strong>po é uno, não havendo divisão <strong>em</strong> presente-passado-futuro; na<br />

antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> pagã, valorizava-se o passado e seus feitos heróicos; a I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média<br />

carregou o fardo do passado mantendo, porém confiança no futuro, restando ao presente<br />

ficar sufocado entre os dois; o Renascimento valorizou o presente; do século XVII ao<br />

século XIX, entendia-se o t<strong>em</strong>po como o futuro – t<strong>em</strong>po do progresso, <strong>da</strong>s <strong>de</strong>scobertas<br />

técnicas, <strong>da</strong>s promessas <strong>de</strong> dias tranqüilos. Contudo, o século XX chegou mostrando o<br />

quão utópica e ingênua era essa visão. As duas Guerras Mundiais, a crise financeira que<br />

levou vários países à bancarrota, os <strong>de</strong>scaminhos que as <strong>de</strong>scobertas técnicas<br />

percorreramcriandoaameaçaatômicaeamo<strong>de</strong>rnizaçãodosmeios<strong>de</strong>comunicação<br />

<strong>de</strong>mocratizando a divulgação <strong>da</strong>s notícias, levando ao conhecimento <strong>de</strong> todos as<br />

mazelas <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong> e a cruel<strong>da</strong><strong>de</strong> do ser humano expondo as atroci<strong>da</strong><strong>de</strong>s cometi<strong>da</strong>s<br />

pelos homens, abalaram profun<strong>da</strong>mente as pessoas, levando-as a buscar conforto no<br />

passado. Vale, no entanto, frisar que “não há <strong>de</strong>scontinui<strong>da</strong><strong>de</strong> absoluta, os t<strong>em</strong>pos não<br />

se produz<strong>em</strong> do vazio, os t<strong>em</strong>pos estão entrelaçados.” 107<br />

Mas, é preciso ter consciência que, do mesmo modo que a m<strong>em</strong>ória, o passado<br />

também po<strong>de</strong> ser manipulado, distorcido pelas classes dominantes que, <strong>em</strong> geral, não<br />

<strong>de</strong>sejavam / não <strong>de</strong>sejam mu<strong>da</strong>nças na or<strong>de</strong>m vigente por t<strong>em</strong>er<strong>em</strong> per<strong>de</strong>r suas regalias.<br />

Des<strong>de</strong> que surgiu pela primeira vez, no séc. XVI, a palavra progresso mexe com o<br />

106 LIMA, Daniel. Da Teologia ao rol-<strong>de</strong>-roupa (V). DP,27/02/76<br />

107 REZENDE,Antônio Paulo. (Des) encantos mo<strong>de</strong>rnos: histórias <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Recife<br />

na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 20.Recife:FUNDARPE,1997


72<br />

imaginário <strong>da</strong>s pessoas. No Renascimento, a fé no hom<strong>em</strong> e na evolução <strong>da</strong> civilização,<br />

imperava; Descartes via o ser humano como o centro do mundo, mestre e senhor <strong>da</strong><br />

natureza <strong>em</strong> prol <strong>da</strong> ciência. Contrariando a tendência dos filósofos, Rousseau pôs <strong>em</strong><br />

questionamento o progresso moral, pois acreditava que a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> corrompia o<br />

hom<strong>em</strong>. No séc. XIX, basea<strong>da</strong> nas Revoluções Francesas e Industrial, a idéia <strong>de</strong><br />

progresso tornou-se mito, as idéias eram cultua<strong>da</strong>s como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros <strong>de</strong>uses. De um<br />

lado, os visionários como Júlio Verne e Zola; <strong>de</strong> outro, Bau<strong>de</strong>laire questionando os<br />

efeitos do progresso e buscando refúgio no individualismo <strong>de</strong> resistência. O século XX<br />

chegou para questionar o progresso e suas conseqüências: benefícios ou <strong>da</strong>nos? O<br />

progresso, como o fármaco, é probl<strong>em</strong>a e solução: ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que<br />

proporcionou maior quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, <strong>de</strong>gradou a natureza, expôs o hom<strong>em</strong> à radiação,<br />

etc. A <strong>de</strong>silusão com o tão esperado futuro / progresso levou à nostalgia do passado,<br />

provocando in<strong>da</strong>gações sobre o que é ser mo<strong>de</strong>rno.<br />

Com orig<strong>em</strong> no latim vulgar, a primeira conotação <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rno era <strong>de</strong> coisa<br />

recente, <strong>em</strong> oposição a antigo = que pertence ao passado. Quando a história dominante<br />

do oci<strong>de</strong>nte foi dividi<strong>da</strong> (no séc. XVI) <strong>em</strong> três I<strong>da</strong><strong>de</strong>s – Antiga, Média e Mo<strong>de</strong>rna,<br />

“antigo” passou a referir-se a tudo que <strong>de</strong>signasse a Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> greco-latina. Porém,<br />

aos poucos, sua conotação foi sendo modifica<strong>da</strong> até incorporar o sentido pejorativo <strong>de</strong><br />

velho, ultrapassado, enquanto que a palavra mo<strong>de</strong>rno “<strong>de</strong>fronta os t<strong>em</strong>pos <strong>da</strong> revolução<br />

industrial, ro<strong>de</strong>ado do ‘novo’, cuja frescura e inocência não t<strong>em</strong>, e <strong>de</strong> ‘progressista’,<br />

cujo dinamismo também não t<strong>em</strong>.” 108 Da palavra mo<strong>de</strong>rno, originaram-se outras três:<br />

mo<strong>de</strong>rnismo, mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> e mo<strong>de</strong>rnização. Mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>signa a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser<br />

resolutamente <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po. Bau<strong>de</strong>laire a <strong>de</strong>screve como transitória, fugidia e<br />

contingente. A mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> t<strong>em</strong> o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> libertar a vi<strong>da</strong> atual dos el<strong>em</strong>entos arcaicos,<br />

ultrapassados. É uma eterna busca do novo. É uma experiência histórica. Jacques Le<br />

Goff <strong>de</strong>fine mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> como “o resultado i<strong>de</strong>ológico do mo<strong>de</strong>rnismo. Mas –<br />

i<strong>de</strong>ologia do inacabado, <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> crítica – a mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> é também impulso<br />

108 LE GOFF op. cit., p. 374


73<br />

para a criação, ruptura <strong>de</strong>clara<strong>da</strong> com to<strong>da</strong>s as i<strong>de</strong>ologias e teorias <strong>da</strong> imitação, cuja<br />

base é a referência ao antigo e a tendência para o aca<strong>de</strong>mismo.” 109<br />

A mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> caracteriza-se pela massificação <strong>da</strong>s idéias. Edgar Morin a<br />

<strong>de</strong>screve como “cultura <strong>de</strong> massa”, tendo surgido no E.U.A., <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> 1950, assim<br />

a <strong>de</strong>finindo: “as massas populares urbanas e <strong>de</strong> uma parte dos campos, ace<strong>de</strong>m a<br />

novos stan<strong>da</strong>rds <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>: entram progressivamente no universo do b<strong>em</strong>-estar, <strong>da</strong><br />

distração, do consumo, que até então era exclusivo <strong>da</strong>s classes burguesas. As<br />

transformações quantitativas (elevação do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> compra, substituição progressiva<br />

do esforço do hom<strong>em</strong> pelo trabalho <strong>da</strong> máquina, aumento do t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso)<br />

operam uma lenta metamorfose qualitativa.” 110<br />

Mo<strong>de</strong>rnização e oci<strong>de</strong>ntalização equivalendo-se, provocando tensão ao<br />

probl<strong>em</strong>atizar a questão <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional. A mo<strong>de</strong>rnização ocorre <strong>de</strong> três formas<br />

distintas: <strong>de</strong> maneira equilibra<strong>da</strong>, o novo e o antigo convivendo pacificamente, o<br />

tradicional sendo respeitado (Japão); <strong>de</strong> maneira conflituosa, imposta por uma parte <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, provocando graves conflitos com as tradições antigas (mundo árabe); e<br />

mo<strong>de</strong>rnização por tentativas, buscando um equilíbrio parcial entre o antigo e o novo<br />

(países africanos, os quais procuram encontrar o ponto <strong>de</strong> equilíbrio entre a<br />

mo<strong>de</strong>rnização e sua tradição, tão arraiga<strong>da</strong> no inconsciente coletivo).<br />

Mo<strong>de</strong>rnismo caracteriza tudo o que t<strong>em</strong> relação com a vi<strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rna,<br />

relativamente a ca<strong>da</strong> época. No séc. XIX, sua originali<strong>da</strong><strong>de</strong> dizia respeito ao<br />

<strong>de</strong>senvolvimento econômico, técnico e científico. No séc. XX, passou a significar a<br />

civilização materialista. Para Perry An<strong>de</strong>rson, “o mo<strong>de</strong>rnismo é a mais vazia <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s<br />

as categorias culturais. [...] A futili<strong>da</strong><strong>de</strong> do termo, e a i<strong>de</strong>ologia que o acompanha,<br />

po<strong>de</strong>m ser vistos, <strong>de</strong> modo até claro <strong>de</strong>mais, nas tentativas correntes <strong>de</strong> se apegar aos<br />

<strong>de</strong>stroços e tentar na<strong>da</strong>r com a maré, ain<strong>da</strong> mais longe, até ultrapassá-lo na cunhag<strong>em</strong><br />

do termo pós-mo<strong>de</strong>rnismo, um vazio atrás do outro, numa regressão <strong>em</strong> série <strong>de</strong> uma<br />

109 LEGOFF,op.cit.,p.385<br />

110 MORIN, apud Le Goff, op. cit., p. 388


74<br />

cronologia auto-congratulatória.” 111 A mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> traz, <strong>em</strong> seu bojo, a fragmentação<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, mostrando-se utópica <strong>em</strong> relação às vantagens que a Revolução Francesa e a<br />

Revolução Industrial promoveriam na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas, com promessas que se<br />

mostraram inviáveis. A criação <strong>da</strong> linha <strong>de</strong> montag<strong>em</strong> que proporcionou aumento <strong>da</strong><br />

produção, levando a um barateamento no custo final dos produtos tornando-os,<br />

conseqüent<strong>em</strong>ente, mais acessíveis, mostrou-se ser um sonho a anos-luz <strong>de</strong> distância <strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

A industrialização tirou as pessoas do campo e <strong>de</strong>sestimulou as oficinas<br />

artesanais, tornando-as inviáveis. O surgimento <strong>da</strong> linha <strong>de</strong> montag<strong>em</strong> transformou os<br />

antigos mestres-artesãos, que dominava to<strong>da</strong> a técnica <strong>da</strong> fabricação, <strong>em</strong> meros<br />

montadores especializados <strong>em</strong> apertar parafusos, s<strong>em</strong> o domínio <strong>da</strong> totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

elaboração do processo. Charles Chaplin retrata essa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> no filme “T<strong>em</strong>pos<br />

Mo<strong>de</strong>rnos”, <strong>em</strong> que o hom<strong>em</strong> é transformado <strong>em</strong> robô.<br />

As esteiras <strong>da</strong>s fábricas foram ficando ca<strong>da</strong> vez mais rápi<strong>da</strong>s, fabricando ca<strong>da</strong><br />

vez mais e mais, levando a um consumismo ca<strong>da</strong> vez mais alucinante e os produtos, na<br />

mesma veloci<strong>da</strong><strong>de</strong>, ca<strong>da</strong> vez mais <strong>de</strong>scartáveis. O valor <strong>de</strong> troca findou por sucumbir ao<br />

valor <strong>de</strong> uso. Na mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> não basta ser – o que importa é ter. Essedrama<strong>da</strong><br />

mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> inibe, pela veloci<strong>da</strong><strong>de</strong> dos contatos, relacionamentos mais profundos,<br />

levando à solidão, ao tédio e à eterna insatisfação pelo que t<strong>em</strong>, pelo que é: a<br />

propagan<strong>da</strong> a estimular o verbo capitalista do “ter”, <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo.<br />

Aesfingeeailusão<br />

As m<strong>em</strong>órias, segundo a len<strong>da</strong>,<br />

ensinam como transformar a<br />

esfinge <strong>em</strong> estátua <strong>de</strong> sal.<br />

111 ANDERSON, apud Rezen<strong>de</strong>, 1997, p. 117


75<br />

Paulo Henrique Martins<br />

No Brasil, o processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização foi conflituoso. A mentali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

aristocracia do período imperial estava volta<strong>da</strong> para a Europa, o dito “mundo<br />

civilizado”. Para po<strong>de</strong>r ser consi<strong>de</strong>rado “civilizado”, era preciso pensar como o europeu<br />

(francês ou inglês, b<strong>em</strong> entendido). Esse tipo <strong>de</strong> pensamento gerou dil<strong>em</strong>as: <strong>de</strong> um lado<br />

uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> bipolar, divi<strong>da</strong> entre po<strong>de</strong>rosos e subordinados, resquício <strong>da</strong> experiência<br />

secular <strong>da</strong> escravatura; <strong>de</strong> outro, o sonho <strong>da</strong> República re<strong>de</strong>ntora. O século XX encontra<br />

o brasileiro divido entre o sonho <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rnização e o medo, por parte <strong>da</strong> alta burguesia<br />

patriarcalista dominante, <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o “status quo”. Este dil<strong>em</strong>a levou a confrontos n<strong>em</strong><br />

s<strong>em</strong>pre restritos, apenas, às polêmicas nos jornais. Revoltas como a <strong>da</strong> vacina, do<br />

quebra-quilo e <strong>da</strong> chibata espelham quão doloroso foi o primeiro momento <strong>em</strong> direção<br />

ao progresso.<br />

Formado por uma constelação <strong>de</strong> raças e culturas (indígenas, africanas,<br />

européias, etc), a formatação <strong>da</strong> “cara” do brasileiro levou os intelectuais a refletir<strong>em</strong> e<br />

<strong>de</strong>bater<strong>em</strong> sobre o t<strong>em</strong>a. A diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seu povo e os i<strong>de</strong>ais oligárquicos <strong>da</strong> cama<strong>da</strong><br />

economicamente privilegia<strong>da</strong> dificultaram os primeiros passos para uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

nacional. O passado escravocrata, patriarcal, apesar <strong>da</strong> Abolição, ain<strong>da</strong> influenciava no<br />

modo <strong>de</strong> pensar <strong>de</strong> muitos. Cansados <strong>da</strong> lentidão exasperante <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças na estrutura<br />

político, econômica e social brasileira, alguns radicalizaram seus discursos e atitu<strong>de</strong>s. A<br />

déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 20, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu início, test<strong>em</strong>unhou ávidos <strong>de</strong>bates e atos <strong>de</strong> <strong>de</strong>satino, na<br />

intenção <strong>de</strong> chocar e provocar as renovações tão necessárias e espera<strong>da</strong>s.<br />

O fim <strong>da</strong> escravatura e <strong>da</strong> monarquia criaram expectativa <strong>de</strong> novos e melhores<br />

t<strong>em</strong>pos para o Brasil. No entanto, a incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>monstra<strong>da</strong> pelos primeiros<br />

presi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> promover as tão espera<strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças, levaram a confrontos violentos.<br />

Alguns bélicos (Guerra <strong>de</strong> Canudos, Revolução <strong>de</strong> 32); outros, no campo i<strong>de</strong>ológico.<br />

Um grupo <strong>de</strong> intelectuais brasileiros se juntou para, realmente, abalar as estruturas<br />

vigentes. De formações diversas - músicos, escritores, sociólogos, artistas pláticos...,


76<br />

<strong>em</strong>preen<strong>de</strong>ram a tentativa <strong>de</strong> elaborar o perfil <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira: mestiça,<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e soberana. Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> caricaturou o herói nacional; Manuel<br />

Ban<strong>de</strong>ira o pôs ven<strong>de</strong>ndo “midubim”; Tarsila do Amaral pintou as curvas e exageros<br />

que só o privilégio <strong>da</strong> miscigenação proporciona; Gilberto Freyre, retornando <strong>de</strong> seus<br />

estudos nos E.U.A. e Europa, surpreen<strong>de</strong>-se como quão provinciano e s<strong>em</strong> traços<br />

<strong>de</strong>finidos é o brasileiro. Resolve, então buscar <strong>da</strong>dos que permitam retratar sua história,<br />

sua orig<strong>em</strong>, sua formação e características mais marcantes.<br />

Em Pernambuco, esta tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>linear a imag<strong>em</strong> no espelho <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

teve seu início com a Escola do Recife, no séc. XIX, li<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> por Tobias Barreto e<br />

Sílvio Romero – momento no qual, segundo Antônio Brasil 112 , a crítica literária no<br />

Brasil t<strong>em</strong> início. A prática <strong>de</strong> crítica literária provocou uma sacudi<strong>da</strong> na<br />

intelectuali<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira e na consciência nacional, fazendo com que os intelectuais se<br />

voltass<strong>em</strong> para os probl<strong>em</strong>as locais. Com a reforma urbanística do Recife, que<br />

objetivava mo<strong>de</strong>rnizar a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, colocando-a per<strong>em</strong>ptoriamente com os pés no novo<br />

século, e o “bota-abaixo” conseqüente, a história colonial local foi abala<strong>da</strong>. A orfan<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

provoca<strong>da</strong> pela <strong>de</strong>struição inapelável <strong>de</strong> monumentos tão antigos quanto caros aos<br />

pernambucanos, reacen<strong>de</strong>u a polêmica, realimenta<strong>da</strong> pelos <strong>de</strong>bates Freyre x Inojosa, na<br />

déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920.<br />

Nasce um poeta<br />

Viva o Recife e o seu rio com<br />

seus cais <strong>de</strong> auroras e os seus<br />

poetas!<br />

Manuel Ban<strong>de</strong>ira<br />

112 BRASIL,Antônio. Recife e a Crítica Literária. In: Um t<strong>em</strong>po do Recife. MOTA,Mauro (org.), pp353


77<br />

Déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 20 – Polêmica Freyre x Inojosa: <strong>de</strong> um lado o tradicional e o regional<br />

preservados; <strong>de</strong> outro, o mo<strong>de</strong>rno e a ruptura com o passado. Debates <strong>em</strong> torno <strong>de</strong>stas<br />

questões artístico-literárias eram freqüentes nos jornais. O movimento Regionalista<br />

li<strong>de</strong>rado por Gilberto Freyre, consoli<strong>da</strong>-se com o Congresso Regionalista <strong>de</strong> 1926.<br />

Através <strong>de</strong>sse Movimento, G. Freyre <strong>de</strong>fendia uma arte com cores locais, porém com<br />

visão <strong>de</strong> mundo. Joaquim Inojosa fazia oposição a Freyre, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo o Movimento<br />

Mo<strong>de</strong>rnista <strong>de</strong> eixo Rio-São Paulo. Configurando a concretização <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

surge o pólo cin<strong>em</strong>atográfico do Recife: “dos ciclos regionais que marcaram a<br />

evolução do cin<strong>em</strong>a brasileiro antigo, silencioso, o ciclo do Recife foi talvez o mais<br />

importante e se esten<strong>de</strong>u durante to<strong>da</strong> a déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 20.” 113 É o Recife vanguardista.<br />

A déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 30 e a déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> Mauro Mota (1940) - Período <strong>em</strong> que se<br />

aglutinaram “<strong>de</strong> forma mais dinâmica, os nomes literários fa<strong>da</strong>dos à maior<br />

evidência” 114 Tal <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong>ve-se à influência exerci<strong>da</strong> por Mauro Mota e o<br />

estímulo promovido por ele “ao aparecimento <strong>de</strong> valores que a ele se juntaram” 115 ,<br />

atravésdoSupl<strong>em</strong>entoLiteráriodoDiário<strong>de</strong>Pernambuco,oprimeiro<strong>da</strong>imprensa<br />

recifense. Aparec<strong>em</strong> as primeiras companhias teatrais pernambucanas: Companhia Trálá-lá<br />

dos irmãos João e Raul Valença; o Grupo Gente Nossa, dirigido por Samuel<br />

Campelo; o Teatro <strong>de</strong> Amadores <strong>de</strong> Pernambuco, dirigido por Val<strong>de</strong>mar <strong>de</strong> Oliveira e o<br />

Teatro <strong>de</strong> Estu<strong>da</strong>nte <strong>de</strong> Pernambuco, <strong>de</strong> Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna. Em<br />

1948, Abelardo <strong>da</strong> Hora e Hélio Feijó criam a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Arte do Recife (SAMR),<br />

com a intenção <strong>de</strong> incentivar discussões sobre cultura através <strong>de</strong> conferências, palestras<br />

e encontros. Paralelo aos <strong>de</strong>bates literários e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong>s artes, o Recife<br />

test<strong>em</strong>unha a r<strong>em</strong>o<strong>de</strong>lação <strong>de</strong> sua arquitetura para ampliação <strong>de</strong> antigas ruas e aberturas<br />

<strong>de</strong> novas vias, o que levou a novos enfrentamentos e <strong>de</strong>bates nos jornais. 116<br />

1929 – A 17 <strong>de</strong> maio, nasce Carlos Pena Filho, <strong>em</strong> meio à ebulição que o Recife<br />

test<strong>em</strong>unhava. Passou a infância na casa dos avós, <strong>em</strong> Portugal, período que muito o<br />

113 SOUZA BARROS, apud REZENDE, 1977, p. 79<br />

114 BRASIL,. Antônio. Recife e a Crítica Literária., p. 365<br />

115 i<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p.365<br />

116 Ver cap. II – “O ‘bota-abaixo’ e os poetas”


78<br />

influenciaria. De volta ao Recife, conclui os estudos secundários no Colégio Nóbrega e<br />

ingressa na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito, porém não chega a exercer a advocacia. Trabalhou <strong>em</strong><br />

órgãos públicos e no Jornal do Commercio. Esse período afastado <strong>de</strong> sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, apesar<br />

<strong>de</strong> ain<strong>da</strong> criança, apresenta-se <strong>de</strong> fun<strong>da</strong>mental importância para a sua poesia. Espécie <strong>de</strong><br />

exílio, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que serviu para ampliar sua visão <strong>de</strong> mundo com novas<br />

experiências e contato com outras culturas e pessoas, o fez perceber <strong>de</strong> maneira<br />

diferente a sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Tal como Ferreira Gullar, Jorge Luís Borges, Ítalo Calvino e<br />

Manuel Ban<strong>de</strong>ira – ca<strong>da</strong> um a sua maneira, exilado, Carlos Pena sente necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

escrever sobre a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> por instantes abandona<strong>da</strong>, sobre a sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, isto é, sobre a<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong> que ele vê, sente, percebe. Talvez, como uma busca <strong>de</strong> auto-i<strong>de</strong>ntificação, como<br />

uma tentativa <strong>de</strong> se reconhecer entre aquelas edificações, ou melhor “<strong>de</strong>sedificações”, já<br />

que, arquitetonicamente, parecia que o Recife havia sido posto <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um<br />

liquidificador, cujo resultado era uma incógnita. Seriam os passeios noturnos pelas ruas<br />

recifenses, acompanhado pelos amigos, a <strong>de</strong>clamar poesia, uma corri<strong>da</strong> contra o t<strong>em</strong>po<br />

numa esperança <strong>de</strong> <strong>de</strong>ter sua ação <strong>de</strong>struidora, registrando o que restava do original<br />

<strong>da</strong>queles símbolos <strong>de</strong> sua infância, na sua retina?<br />

Os títulos <strong>de</strong> seus livros são b<strong>em</strong> sugestivos a esse respeito. O primeiro, “O<br />

T<strong>em</strong>po <strong>da</strong> Busca”, publicado <strong>em</strong> 1952 quando Pena Filho tinha apenas 23 anos,<br />

<strong>de</strong>monstra o quanto intensa era essa procura. Logo no prefácio, revela que “entrara<br />

inconscient<strong>em</strong>ente no mundo do absurdo”, estupefação reforça<strong>da</strong> pelos po<strong>em</strong>as que o<br />

compõ<strong>em</strong>: Soneto <strong>da</strong>s Definições, Soneto <strong>da</strong>s Metamorfoses, Soneto <strong>da</strong> Busca, Soneto<br />

<strong>da</strong> Ausência...Em 1956, publica “M<strong>em</strong>órias do Boi Serapião”. O poeta tenta, nesse<br />

momento, compreen<strong>de</strong>r o que é ser nor<strong>de</strong>stino através <strong>da</strong>s recor<strong>da</strong>ções e <strong>da</strong> experiência<br />

<strong>de</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> um animal-símbolo <strong>da</strong> força do sertanejo. “A Vertig<strong>em</strong> Lúci<strong>da</strong>”, título<br />

paradoxal publicado <strong>em</strong> 1958, proporciona um mergulho na profundi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

existencialista do azul (Soneto do Desmantelo Azul), reflexão sobre a importância <strong>da</strong><br />

palavra (“A Palavra” e “Po<strong>em</strong>a”) e a força <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> (“Retrato Campestre” e<br />

“Retrato do Pintor Reinaldo Fonseca”), para que essa vertig<strong>em</strong> ce<strong>da</strong> lugar à luci<strong>de</strong>z<br />

<strong>de</strong>finitiva. “Livro Geral”, o quarto e último livro <strong>de</strong> Carlos Pena Filho, publicado <strong>em</strong><br />

1959, aglutina os três primeiros livros acrescidos <strong>de</strong> alguns po<strong>em</strong>as novos, entre eles o


79<br />

“Guia Prático <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Recife”, configurando um fechamento <strong>em</strong> close, um<br />

direcionamento do macrocosmo para o microcosmo, do universal para o particular.<br />

Pena Filho, ain<strong>da</strong> adolescente, foi ao Diário <strong>de</strong> Pernambuco com um ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong><br />

po<strong>em</strong>as <strong>em</strong>baixo do braço, procurando espaço para divulgá-los. Mauro Mota, na época<br />

diretor do Supl<strong>em</strong>ento Cultural, leu alguns e escolheu três para publicar 117 : “Quando<br />

Carlos, adolescente [...] apareceu no DP [...] com o primeiro ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> versos, não<br />

vacilei um instante, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> lê-los: arranquei do ca<strong>de</strong>rno três páginas<br />

correspon<strong>de</strong>ntes a três sonetos <strong>de</strong> minha escolha e publiquei-os no supl<strong>em</strong>ento literário<br />

do jornal que então dirigia.” 118 Desses, somente “Marinha” seria consi<strong>de</strong>rado<br />

merecedor <strong>de</strong> figurar <strong>em</strong> livro, primeiramente <strong>em</strong> “O T<strong>em</strong>po <strong>da</strong> Busca” e, mais tar<strong>de</strong>,<br />

no “Livro Geral”. As características <strong>de</strong> seus po<strong>em</strong>as ligam Carlos Pena Filho à Geração<br />

<strong>de</strong> 45, movimento polivalente que combateu o caos estético <strong>da</strong>s primeiras horas do<br />

Mo<strong>de</strong>rnismo Literário. Pregava a disciplina <strong>da</strong> poesia com apuro do verso:<br />

Marinha 119<br />

Tu nasceste no mundo do sargaço<br />

<strong>da</strong> gestão <strong>de</strong> búzios, nas areias.<br />

Corr<strong>em</strong> águas do mar <strong>em</strong> tuas veias,<br />

dorm<strong>em</strong> peixes <strong>de</strong> prata <strong>em</strong> teu regaço.<br />

Descobri tua orig<strong>em</strong>, teu espaço,<br />

pelas canções marinhas que s<strong>em</strong>eias.<br />

Por isso as tuas mãos são tão alheias,<br />

por isso o teu olhar é triste e baço.<br />

Mas teu segredo é meu, ah não me digas<br />

117 Segundo Edilberto Coutinho (<strong>em</strong> O livro <strong>de</strong> Carlos: Carlos Pena Filho, poesia e vi<strong>da</strong>, p. 37) os<br />

primeiros po<strong>em</strong>as foram publicados <strong>em</strong> 12/11/1950, no DP. Ariano Suassuna indica o ano <strong>de</strong> 1947 (CPF<br />

visto por A. Suassuna. Revista DECA)<br />

118 Depoimento <strong>de</strong> improviso por ocasião <strong>da</strong> S<strong>em</strong>ana Carlos Pena Filho, <strong>em</strong> homenag<strong>em</strong> aos 20 anos <strong>de</strong><br />

falecimento do poeta, no auditório <strong>da</strong> Fafire, <strong>em</strong> julho <strong>de</strong> 1980.<br />

119 LG,p.118


80<br />

on<strong>de</strong> é tua pousa<strong>da</strong>, on<strong>de</strong> é teu porto<br />

e on<strong>de</strong> moram sereias tão amigas.<br />

Qu<strong>em</strong> te ouvir, ficará s<strong>em</strong> teu conforto<br />

pois não enten<strong>de</strong>rá essas cantigas<br />

que trouxeste do fundo do mar morto.<br />

Com os olhos voltados para o além-mar como se à espera <strong>de</strong> um enviado divino,<br />

gerado na imaginação ou nas entranhas do mar, Carlos Pena Filho intertextualiza a<br />

crença dos indígenas americanos (astecas, incas, maias, várias tribos brasileiras) que<br />

acreditavam que um ser superior viria do mar para guiá-los. O mito do estrangeiro<br />

superior, salvador, <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento do autóctone inferior e incapaz, está representado<br />

nesse ser fantástico, irreal, <strong>em</strong> cujas veias “corr<strong>em</strong> as águas do mar”. A imag<strong>em</strong> suave<br />

e envolvente <strong>de</strong>sse ser salvador, v<strong>em</strong> representa<strong>da</strong> pela sereia que enfeitiça, com seu<br />

canto, para dominar, revelando-se, tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais, o gênio mal-fazejo que realmente é.<br />

Todo o simbolismo <strong>da</strong> formação do povo brasileiro, os primeiros passos na<br />

tentativa <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, com a miscigenação que a caracteriza e as<br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s para sua percepção como nação, estão presentes nesse po<strong>em</strong>a. Na primeira<br />

estrofe, há a representação do estrangeiro, do ser mítico, i<strong>de</strong>alizado, capaz <strong>de</strong> proteger<br />

contra as mal<strong>da</strong><strong>de</strong>s do mundo: “Tu nasceste no mundo do sargaço / <strong>da</strong> gestação <strong>de</strong><br />

búzios, nas areias. / Corr<strong>em</strong> águas do mar <strong>em</strong> tuas veias, / dorm<strong>em</strong> peixes <strong>de</strong> prata , <strong>em</strong><br />

teu regaço.” Nas 2ª e 3ª estrofes, há a <strong>de</strong>scoberta que esse ser divino possui segredos e<br />

sua <strong>de</strong>codificação revela a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira intenção <strong>de</strong>sse ser, provocando um <strong>em</strong>baçamento<br />

no olhar, antes reluzente, do estrangeiro. Por fim, na 4ª estrofe, o engodo <strong>de</strong>scoberto, a<br />

espera mostra-se vã, pois o conforto tão aguar<strong>da</strong>do, é negado: “Qu<strong>em</strong> te ouvir, ficará<br />

s<strong>em</strong> teu conforto / pois não enten<strong>de</strong>rá essas cantigas / que trouxeste do fundo do mar<br />

morto.”<br />

Apesar <strong>de</strong> ain<strong>da</strong> adolescente, Carlos Pena <strong>de</strong>monstra profundo conhecimento <strong>da</strong><br />

arte <strong>da</strong> poesia ao elaborar esse soneto <strong>em</strong> estrutura <strong>de</strong> cantiga <strong>de</strong> maestria. É


81<br />

surpreen<strong>de</strong>nte tal escolha, pois esse estilo exige maior domínio do gênero trovadoresco<br />

provençal, cujo principal recurso é a ausência <strong>de</strong> refrão o que torna o esqu<strong>em</strong>a estrófico<br />

mais difícil, intelectualizado. “Marinha” caracteriza-se por ser um soneto<br />

<strong>de</strong>cassilábico; com rimas interpola<strong>da</strong>s (abba); por fazer referências ao ambiente marinho<br />

(sargaço, búzios, areias, águas do mar, peixes, canções marinhas, porto, sereias, fundo<br />

do mar morto); <strong>de</strong>senvolver-se <strong>em</strong> progressão retilínea, s<strong>em</strong> repetições; pela presença<br />

do narrador; pelos enjamb<strong>em</strong>ents (“Tu nasceste no mundo do sargaço / <strong>da</strong> gestação <strong>de</strong><br />

búzios, nas areias. [...] Mas teu segredo é meu, ah não me digas / on<strong>de</strong> é tua pousa<strong>da</strong>,<br />

on<strong>de</strong> é teu porto [...]); eapresençadoparalelismo(Por isso as tuas mãos são tão<br />

alheias, / por isso o teu olhar é triste e baço [...]”) reafirmando o pleno domínio <strong>da</strong><br />

mais requinta<strong>da</strong> técnica.<br />

Nor<strong>de</strong>ste <strong>de</strong>sterrado<br />

Após escrever seus primeiros versos <strong>de</strong> costas para o Brasil, buscando<br />

reconhecer-se nos reflexos do estrangeiro europeu, Pena Filho <strong>em</strong> seu segundo livro,<br />

“M<strong>em</strong>órias do Boi Serapião”, volta-se para o continente. Em sua segun<strong>da</strong> edição, esse<br />

po<strong>em</strong>a e mais quatro outros, formaram um bloco, sob o título significativo <strong>de</strong><br />

“Nor<strong>de</strong>sterro” = Nor<strong>de</strong>ste <strong>de</strong>sterrado ou o <strong>de</strong>sterro do nor<strong>de</strong>stino, representando<br />

figurativamente a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> o nor<strong>de</strong>stino mu<strong>da</strong>r a sua sina. Em contraposição à<br />

erudição do soneto “Marinha”, esses po<strong>em</strong>as caracterizam-se por ser <strong>de</strong> registro<br />

popular <strong>de</strong>vido a sua métrica, ritmo e vocabulário e estruturam-se <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> um herói<br />

coletivo ou que representa uma figura resgata<strong>da</strong> do imaginário popular brasileiro.<br />

M<strong>em</strong>órias do Boi Serapião 120<br />

120 LG, pp. 39-45. Devido à extensão do po<strong>em</strong>a, serão transcritos apenas alguns fragmentos. O po<strong>em</strong>a<br />

completo encontra-se no anexo 3.


82<br />

Este campo,<br />

vasto e cinzento<br />

não t<strong>em</strong> começo n<strong>em</strong> fim<br />

n<strong>em</strong><strong>de</strong>leve<strong>de</strong>sconfia<br />

<strong>da</strong>s coisas que vão <strong>em</strong> mim.<br />

Deve conhecer, apenas<br />

(porque são pecados nossos)<br />

o pó que cega meus olhos<br />

e a se<strong>de</strong> que rói meus ossos.<br />

No verão, quando não há<br />

capim na terra<br />

e milho no paiol<br />

solen<strong>em</strong>ente mastigo<br />

areias, pedras e sol.<br />

Às vezes, nas longas tar<strong>de</strong>s<br />

do quieto mês <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro<br />

vou a uma serra que eu sei<br />

e as coisas <strong>da</strong> infância l<strong>em</strong>bro.<br />

Instante azul <strong>em</strong> meus olhos<br />

vazios <strong>de</strong> luz e fé<br />

cont<strong>em</strong>plando a festa ru<strong>de</strong><br />

que a infância dos bichos é...<br />

No lugar on<strong>de</strong> nasci<br />

havia um rio ligeiro<br />

eumcampover<strong>de</strong><strong>em</strong>aisver<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> um janeiro a outro janeiro<br />

havia um hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>itado<br />

na re<strong>de</strong> azul do terraço


83<br />

e as filhas <strong>de</strong>ntro do rio<br />

diminuindo o mormaço.<br />

[...]<br />

Havia este céu <strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre<br />

e, além disto, pouco mais<br />

que as on<strong>da</strong>s na superfície<br />

dos ver<strong>de</strong>s canaviais<br />

[...]<br />

Este campo<br />

vasto e cinzento,<br />

é on<strong>de</strong> às vezes me escondo<br />

e envolto nestas l<strong>em</strong>branças<br />

durmo o meu sono redondo<br />

que o que há <strong>de</strong> bom por aqui<br />

naterradonãochover<br />

é que não se espera a morte<br />

pois se está s<strong>em</strong>pre a morrer:<br />

<strong>em</strong> ca<strong>da</strong> poço que seca<br />

<strong>em</strong> ca<strong>da</strong> árvore morta<br />

<strong>em</strong> ca<strong>da</strong> sol que penetra<br />

na frincha <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> porta<br />

<strong>em</strong> ca<strong>da</strong> passo avançado<br />

no leito <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> rio<br />

por todo o t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que fica<br />

<strong>de</strong>spido, seco, vazio.<br />

Quando o sol doer nas coisas<br />

<strong>da</strong> terra e no céu azul


84<br />

e os homens for<strong>em</strong> <strong>em</strong> busca<br />

dos ver<strong>de</strong>s mares do sul,<br />

[...]<br />

“M<strong>em</strong>órias...” é um po<strong>em</strong>a épico narrativo-<strong>de</strong>scritivo, on<strong>de</strong> o narrador é o<br />

animal símbolo <strong>da</strong> força do nor<strong>de</strong>stino: o boi. O título <strong>de</strong>sse po<strong>em</strong>a, “M<strong>em</strong>órias do Boi<br />

Serapião”, po<strong>de</strong>ria ser interpretado como as recor<strong>da</strong>ções – pois, o ver<strong>de</strong> e a vi<strong>da</strong> só<br />

sobreviv<strong>em</strong> na m<strong>em</strong>ória do boi – do herói valoroso que resiste ao sol incl<strong>em</strong>ente como<br />

um mártir do sertão. A primeira estrofe contextualiza a ação – sertão nor<strong>de</strong>stino,<br />

seguindo uma lógica narrativa dominante (“Este campo / vasto e cinzento, / não t<strong>em</strong><br />

começo n<strong>em</strong> fim / n<strong>em</strong> <strong>de</strong> leve <strong>de</strong>sconfia / <strong>da</strong>s coisas que vão <strong>em</strong> mim”). O <strong>em</strong>prego <strong>de</strong><br />

verbos no pretérito imperfeito indica a distância que existe entre o verdor <strong>da</strong> infância e a<br />

seca reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> no sertão: “havia um rio ligeiro” que, agora, está “<strong>de</strong>spido, seco,<br />

vazio”; e a presença <strong>da</strong> sinestesia reforça a dura reali<strong>da</strong><strong>de</strong> do sertanejo, levando o leitor<br />

a sentir <strong>em</strong> sua pele o sol abrasador do sertão (“o pó que cega meus olhos / e a se<strong>de</strong> que<br />

rói meus ossos”). Novamente, a força <strong>da</strong> pintura com as palavras, <strong>da</strong> imagística, mostrase<br />

forte na poesia <strong>de</strong> Pena Filho, como se os olhos do boi Serapião projetass<strong>em</strong> as<br />

imagens <strong>da</strong>s suas m<strong>em</strong>órias.<br />

“M<strong>em</strong>órias...” é um duro retrato <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterrado, <strong>em</strong> sua própria terra, do<br />

nor<strong>de</strong>stino, <strong>de</strong>scrito cruamente num ciclo que parece se repetir infinitamente (“No<br />

verão, quando não há capim na terra / e milho no paiol / solen<strong>em</strong>ente mastigo / areias,<br />

pedras e sol.”) Como um elo <strong>de</strong>ssa ca<strong>de</strong>ia, os últimos versos <strong>de</strong>ssa estrofe se repet<strong>em</strong><br />

na estrofe final, como se fechasse o ciclo, impedindo qualquer possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

libertação do sertanejo. A sina severina do nor<strong>de</strong>stino, <strong>de</strong> estar s<strong>em</strong>pre a morrer, é<br />

amplifica<strong>da</strong> a ca<strong>da</strong> nascer do sol, “<strong>em</strong> ca<strong>da</strong> poço que seca / <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> árvore morta / <strong>em</strong><br />

ca<strong>da</strong> sol que penetra na frincha <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> porta / <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> passo avançado / no leito <strong>de</strong><br />

ca<strong>da</strong> rio.”<br />

Há, nesse po<strong>em</strong>a, duas reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s contrastantes: a <strong>da</strong> infância do boi Serapião, na<br />

Zona <strong>da</strong> Mata, <strong>em</strong> meio ao ver<strong>de</strong> dos canaviais e <strong>da</strong>s colinas colori<strong>da</strong>s que, apesar <strong>de</strong>


85<br />

distante, ain<strong>da</strong> habita seus “olhos com sereni<strong>da</strong><strong>de</strong> e constância”. A outra é seca, vasta e<br />

cinzenta. É a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> “terra do não chover”, dorio“<strong>de</strong>spido, seco, vazio”, do<br />

campo “vasto e cinzento”. A reali<strong>da</strong><strong>de</strong> promissora do ver<strong>de</strong>, do azul e <strong>da</strong>s colinas<br />

colori<strong>da</strong>s, <strong>em</strong> oposição àquela cinzenta do verão “s<strong>em</strong> capim na terra / e milho no<br />

paiol.”<br />

Episódio Sinistro <strong>de</strong> Virgulino Ferreira 121<br />

A Jorge Amado e Odorico Tavares<br />

I<br />

Sobre um chão <strong>de</strong> sol manchado,<br />

passeavas pelos campos<br />

o teu cangaço s<strong>em</strong> rumo.<br />

Comumolhonamorteeoutro<br />

no fel que se elaborava<br />

<strong>em</strong> tua vi<strong>da</strong> s<strong>em</strong> prumo.<br />

Teus olhos apenas viam<br />

fogo, sol, lâmina, fumo<br />

e apetrechos <strong>de</strong> <strong>em</strong>bosca<strong>da</strong>.<br />

Em vez <strong>de</strong> chapéu, possuías<br />

um céu <strong>de</strong> couro à cabeça<br />

com três estrelas finca<strong>da</strong>s.<br />

Tua missão neste mundo<br />

era governar o escuro:<br />

acen<strong>de</strong>r uma fogueira<br />

com os mil <strong>de</strong>stroços <strong>da</strong> fúria.<br />

Cultivar lavoura estranha:<br />

s<strong>em</strong>ear <strong>em</strong> sepultura.<br />

121 LG, p. 24. O po<strong>em</strong>a completo encontra-se no anexo 4


86<br />

E arriscar, que é certo o risco<br />

na profissão <strong>da</strong> aventura.<br />

[...]<br />

II<br />

Afeira<strong>de</strong>VilaBela<br />

t<strong>em</strong> chocalho para vacas.<br />

Na feira <strong>de</strong> Vila Bela,<br />

feijão e pó nas barracas.<br />

Na feira <strong>de</strong> Vila Bela,<br />

arreios, cor<strong>da</strong>s e facas.<br />

Na feira <strong>de</strong> Vila Bela,<br />

chapéus <strong>de</strong> couro, alpercatas.<br />

Na feira <strong>de</strong> Vila Bela,<br />

um ceguinho pe<strong>de</strong> esmola.<br />

Na feira <strong>de</strong> Vila Bela,<br />

ocegoesuaviola:<br />

- “Dona, siga o meu conselho,<br />

vá rezar uma oração,<br />

porque eu já vejo, à distância,<br />

a ira <strong>de</strong> Lampião.<br />

Fiqu<strong>em</strong> somente os sol<strong>da</strong>dos,<br />

o sargento e o capitão.<br />

Fico eu também que sou cego<br />

e não sei <strong>da</strong> clari<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Se Lampião me matar,<br />

mata somente a meta<strong>de</strong>,<br />

que a outra já levou Deus<br />

por sua agreste vonta<strong>de</strong>”.


87<br />

[...]<br />

V<br />

Um dia é apenas um dia,<br />

pois os dias, dias são.<br />

Umdiaseráteudia,<br />

Virgulino Lampião.<br />

[...]<br />

A morte será tão gran<strong>de</strong><br />

que até mesmo a solidão<br />

que há tantos anos te habita<br />

será corta<strong>da</strong> a facão.<br />

[...]<br />

VI<br />

- “A len<strong>da</strong> t<strong>em</strong> pés ligeiros<br />

e corre mais no sertão,<br />

corre mais do que l<strong>em</strong>brança,<br />

mais que sol<strong>da</strong>do fujão.<br />

Corre mais que tudo, só<br />

não corre mais que oração<br />

e isso mesmo quando é feita a<br />

Padre Cícero Romão.<br />

Hoje todo mundo sabe<br />

qu<strong>em</strong> foi ele, o capitão.<br />

Junta o sabe e o não sabe<br />

e inventa outro Lampião.


88<br />

Mas, <strong>de</strong>le mesmo, não sab<strong>em</strong><br />

E n<strong>em</strong> nunca saberão,<br />

pois ele nunca viveu,<br />

não era sim, era não,<br />

como essas coisas que exist<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> imaginação.<br />

Qu<strong>em</strong> pu<strong>de</strong>r que invente outro<br />

Virgulino Lampião.<br />

“Episódio Sinistro...” reforça a tentativa <strong>de</strong> se <strong>de</strong>linear o perfil, a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

nor<strong>de</strong>stino, através <strong>de</strong> sua cultura, len<strong>da</strong>s e mito. Ao escolher Lampião como o herói<br />

<strong>de</strong>sse po<strong>em</strong>a, Carlos Pena Filho faz uma abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> sociológica <strong>da</strong> região nor<strong>de</strong>stina e<br />

seus el<strong>em</strong>entos formadores. Esse po<strong>em</strong>a é uma análise <strong>da</strong> crueza <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> vivi<strong>da</strong> pelos<br />

nor<strong>de</strong>stinos, à mercê dos humores (normalmente, maus humores) <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> a força:<br />

<strong>de</strong> um lado, Lampião e seu bando; <strong>de</strong> outro, as volantes; no meio, o povo.<br />

“Nor<strong>de</strong>sterro” configura-se como uma canção <strong>de</strong> gesta. Tal qual “M<strong>em</strong>órias do<br />

Boi Serapião”, o po<strong>em</strong>a “Episódio Sinistro...” possui s<strong>em</strong>elhança com o romanceiro<br />

português: po<strong>em</strong>a épico, celebra os feitos heróicos <strong>de</strong> Lampião através do narrador (o<br />

ceguinho). A primeira estrofe contextualiza e justifica a ação a ser narra<strong>da</strong> e introduz o<br />

herói (“Sobre um chão <strong>de</strong> sol manchado, / passeavas pelos campos / o teu cangaço s<strong>em</strong><br />

rumo, / com um olho na morte e o outro / no fel que se elaborava / <strong>em</strong> tua vi<strong>da</strong> s<strong>em</strong><br />

prumo”). Carlos Pena metaforiza a ari<strong>de</strong>z do sertão nor<strong>de</strong>stino (sobre um chão <strong>de</strong> sol<br />

manchado) e, através do uso <strong>da</strong> metonímia (cangaço = Lampião), com o reforço <strong>da</strong><br />

homonímia (cangaço =1. gênero <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>; 2. conjunto <strong>de</strong> armas), revela o protagonista.<br />

Sob uma lógica narrativa, <strong>de</strong>screve a cena - aproximação <strong>de</strong> Lampião e seu bando; o<br />

contexto – nor<strong>de</strong>ste avaro e sinistro; o local – Vila Bela, atual Serra Talha<strong>da</strong>, sua feira e<br />

sua gente; e o episódio propriamente dito, concluindo com a morte e mitificação <strong>de</strong><br />

Lampião (“Hoje todo mundo sabe / qu<strong>em</strong> foi ele, o capitão. / Junta o sabe e o não sabe /<br />

e inventa outro Lampião), transformando o cangaceiro num personag<strong>em</strong> lendário <strong>de</strong><br />

fa<strong>da</strong>s (como essas coisas que exist<strong>em</strong> / <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> imaginação. Qu<strong>em</strong> pu<strong>de</strong>r que invente<br />

outro / Virgulino Lampião”).


89<br />

Na forma, o po<strong>em</strong>a obe<strong>de</strong>ce à estrutura medieval: redondilha maior,<br />

irregulari<strong>da</strong><strong>de</strong> no tamanho <strong>da</strong>s estrofes, po<strong>em</strong>a composto por cantos, verbos <strong>de</strong> ação,<br />

expressões <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po e <strong>de</strong> lugar, reflexão, <strong>em</strong>parelhamento (“A feira <strong>de</strong> Vila Bela / t<strong>em</strong><br />

chocalhos para vacas. / Na feira <strong>de</strong> Vila Bela, / arreios cor<strong>da</strong>s e vacas...”),<br />

enjamb<strong>em</strong>ent (“Por <strong>de</strong>z minutos, o chumbo / passeou na escuridão”,) e amplificação (-<br />

“A len<strong>da</strong> t<strong>em</strong> pés ligeiros / e corre mais no sertão, / corre mais do que l<strong>em</strong>brança, /<br />

mais que sol<strong>da</strong>do fujão. / Corre mais que tudo, só / não corre mais que oração).<br />

Ocronista<strong>da</strong>ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Carlos Pena Filho, continuando sua busca incessante, vai fechando a lente <strong>em</strong><br />

close, focalizando, agora, suas atenções na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Do além-mar para o continente, <strong>da</strong>í<br />

para a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: o seu Recife. Aliás, não seria ele o primeiro a cantar o Recife. Vários<br />

poetas, cronistas, cantores já a haviam louvado, ora a exaltando, ora a <strong>de</strong>negrindo.<br />

Joaquim Cardoso, com seu olhar <strong>de</strong> engenheiro e coração <strong>de</strong> poeta, sofria com ca<strong>da</strong><br />

martela<strong>da</strong>, com ca<strong>da</strong> <strong>de</strong>molição <strong>de</strong> monumentos inerentes à ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> prol <strong>da</strong> reforma<br />

urbanística. Seu Recife está mutilado. A visão negativa <strong>da</strong>s alterações arquitetônicas <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong> provoca tensão <strong>em</strong> sua poesia. Manuel Ban<strong>de</strong>ira sente sau<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> sua<br />

infância, <strong>da</strong> rua <strong>da</strong> Aurora ain<strong>da</strong> estreita, on<strong>de</strong> “os meninos iam fumar escondido”, e <strong>da</strong>s<br />

ruas com nomes poéticos - t<strong>em</strong>ia que eles foss<strong>em</strong> trocados pelos nomes <strong>de</strong> “Drs.<br />

Fulano <strong>de</strong> Tal”. Gilberto Freyre <strong>de</strong>strincha o Recife no seu “Guia Prático, Histórico e<br />

Sentimental <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Recife”, numa crônica on<strong>de</strong> abor<strong>da</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> suas primeiras<br />

edificações a seus perfumes e pala<strong>da</strong>res, recor<strong>da</strong>ndo as impressões <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong>s nos<br />

visitantes e revelando sua histórica timi<strong>de</strong>z e acanhamento.<br />

O Recife <strong>de</strong> Pena Filho é múltiplo: é a sua história, são as suas praias, o rio, o<br />

mar e o subúrbio. O poeta parte do real, <strong>da</strong> história e dos fatos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> para retratá-la a


90<br />

sua maneira – espelha<strong>da</strong>, imaginária, afetiva, revelando-se um cronista <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. N<strong>em</strong><br />

s<strong>em</strong>pre, porém, <strong>de</strong> fino trato. De t<strong>em</strong>peramento folgazão, seus po<strong>em</strong>as citadinos são<br />

espirituosos e irônicos, por vezes até ferinos – uma espécie <strong>de</strong> Gregório <strong>de</strong> Matos e<br />

Boccage misturados. Boêmio e conversador, estava s<strong>em</strong>pre por <strong>de</strong>ntro dos<br />

acontecimentos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e não <strong>de</strong>ixava por menos – registrava tudo nos seus po<strong>em</strong>as,<br />

<strong>de</strong> forma vela<strong>da</strong>, mensag<strong>em</strong> subliminar. Em “Soneto Macedônico”, espécie <strong>de</strong> soneto<br />

“à clé”, on<strong>de</strong> os fatos são revelados mas o nome dos personagens são omitidos ou<br />

camuflados, Carlos Pena narra um escân<strong>da</strong>lo <strong>da</strong> época: moça <strong>de</strong> importante e tradicional<br />

família que gostava <strong>de</strong> freqüentar o baixo-meretrício para <strong>da</strong>r cor a sua vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> tédio ao<br />

lado <strong>de</strong> seu marido (“pálido e tímido espantalho”). A protagonista chama-se Maria,<br />

como muitas na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> – <strong>da</strong>s operárias às abasta<strong>da</strong>s, estratégia para dificultar sua<br />

i<strong>de</strong>ntificação; ou <strong>em</strong> referência à Maria Ma<strong>da</strong>lena...<br />

Soneto Macedônico 122<br />

Em frente ao mar, sonhando levagantes,<br />

Maria fabricava centopéias<br />

e as ofertava às praias escal<strong>da</strong>ntes,<br />

tendo por troca um ramo <strong>de</strong> azaléias.<br />

Tinha um sonho – entregar-se aos navegantes<br />

que a viriam salvar dos cornos finos.<br />

E abandonando seios e meninos<br />

fugir, para s<strong>em</strong>pre, ao riso dos farsantes.<br />

Por isso imaginava saltimbancos<br />

que a viriam roubar – graves e louros –<br />

<strong>de</strong> seu pálido e tímido espantalho.<br />

Terminou se entregando aos homens francos:<br />

a um vagabundo triste e a um rei <strong>de</strong> ouros<br />

122 LG,p. 121


91<br />

esquecido entre as cartas <strong>de</strong> um baralho.<br />

Sua estrutura equivale a <strong>da</strong>s cantigas <strong>de</strong> escárnio que t<strong>em</strong> como t<strong>em</strong>a aspectos<br />

particulares <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> elite, cuja personag<strong>em</strong> (Maria) freqüenta tanto a alta socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

como ambientes escusos e <strong>em</strong>prega, <strong>de</strong> forma satírica, a equivocatio, a alusão oblíqua: o<br />

envolvimento <strong>de</strong> Maria com homens <strong>de</strong> renome, ricos, e com homens <strong>de</strong> reputação<br />

duvidosa (Terminou se entregando aos homens francos: / a um vagabundo triste e a um<br />

rei <strong>de</strong> ouros).<br />

“Guia Prático <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Recife” revela to<strong>da</strong> a maestria <strong>de</strong> Carlos Pena<br />

Filho, como poeta e como cronista <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Po<strong>em</strong>a épico-narrativo, é elaborado <strong>em</strong><br />

XIII cantos, <strong>de</strong> 1 a 5 estrofes ca<strong>da</strong>, num total <strong>de</strong> 356 versos. Baseia-se no real, na<br />

história <strong>de</strong> Pernambuco, abor<strong>da</strong>ndo a invasão holan<strong>de</strong>sa e suas conseqüências, a<br />

formação <strong>da</strong> “raça recifense” – miscigenação <strong>de</strong> todos os povos que aqui habitaram /<br />

habitam: índios, negros portugueses, holan<strong>de</strong>ses, árabes, ju<strong>de</strong>us. “Guia Prático...” po<strong>de</strong><br />

ser consi<strong>de</strong>rado um po<strong>em</strong>a m<strong>em</strong>orialista, pois evoca t<strong>em</strong>pos, figuras e espaços do<br />

Recife através <strong>da</strong>s recor<strong>da</strong>ções do poeta, seguindo “o fluxo do pensamento, num<br />

processo <strong>de</strong> sucessivas associações mentais e discursivas” 123 O po<strong>em</strong>a oscila entre o<br />

passado e o presente, a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e o sonho. A evocação <strong>de</strong> lugares e pessoas são<br />

contrastantes: escuros e tristes x coloridos, escassez x abundância, igreja x pecadores.<br />

Aliás, a população mais humil<strong>de</strong> – operárias, pescadores, prostitutas e os velhos, t<strong>em</strong> a<br />

simpatia do poeta, <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento dos oradores, dos “brasileiros sabidos” e “dos<br />

portugueses sabidões”.<br />

Guia Prático <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Recife 124<br />

OInício<br />

No ponto on<strong>de</strong> o mar se extingue<br />

123 SARMENTO,Ângela.Ecos <strong>da</strong> poesia portuguesa na poesia <strong>de</strong> Carlos Pena Filho.in: Revista do Centro<br />

<strong>de</strong> Estudos Brasileiros, n.03, 2002. Porto: 3Terceira Marg<strong>em</strong> / Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

124 LG, p. 127. O po<strong>em</strong>a completo encontra-se no anexo 5.


92<br />

e as areias se levantam<br />

cavaram seus alicerces<br />

nasur<strong>da</strong>sombra<strong>da</strong>terra<br />

e levantaram seus muros<br />

do frio sono <strong>da</strong>s pedras.<br />

Depois armaram seus flancos:<br />

trinta ban<strong>de</strong>iras azuis<br />

planta<strong>da</strong>s no litoral.<br />

Hoje, serena, flutua,<br />

meta<strong>de</strong> rouba<strong>da</strong> ao mar,<br />

meta<strong>de</strong> à imaginação,<br />

pois é do sonho dos homens<br />

que uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> se inventa.<br />

[...]<br />

O Bairro do Recife<br />

Ali é que é o Recife<br />

mais propriamente chamado,<br />

com seu pecado diurno<br />

e o seu noturno pecado,<br />

mas tudo muito tranqüilo,<br />

sereno e equilibrado.<br />

No an<strong>da</strong>r térreo, moram os bancos<br />

(capitais <strong>da</strong> Capital)<br />

no primeiro, a ex-austera<br />

Associação Comercial,<br />

no segundo, a s<strong>em</strong>pre fútil,<br />

Câmara Municipal<br />

e, no terceiro, afinal,<br />

estáaalegrepensão<br />

<strong>da</strong> redon<strong>da</strong> Alzira, a viga<br />

mestra <strong>da</strong> prostituição.


93<br />

Mascomoviv<strong>em</strong>tãob<strong>em</strong>,<br />

<strong>em</strong> tão segura união,<br />

qualquer dia, todos juntos,<br />

vão fun<strong>da</strong>r a Associação<br />

dos Múltiplos Pecadores,<br />

com banqueiros, comerciantes,<br />

prostitutas, vereadores,<br />

ingleses do Britissh Club,<br />

homens doentes e sãos,<br />

pois o camelô já disse<br />

que somos todos irmãos.<br />

Esse é o bairro do Recife<br />

que t<strong>em</strong> um cais <strong>de</strong>bruçado<br />

nas ver<strong>de</strong>s águas do Atlântico<br />

e ain<strong>da</strong> t<strong>em</strong> o cais do Apolo,<br />

apodrecido e romântico,<br />

beleza que ain<strong>da</strong> resiste<br />

lá nos <strong>de</strong>svãos <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória<br />

<strong>de</strong>sse bairro que se escoa<br />

pela Ponte Giratória,<br />

que é uma estranha armação<br />

que agüenta <strong>em</strong> seu férreo dorso<br />

automóvel, caminhão<br />

e tr<strong>em</strong> <strong>de</strong> carga b<strong>em</strong> cheio,<br />

mas não resiste às barcaças<br />

que a fen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> meio a meio.<br />

[...].<br />

OFim<br />

Recife, cruel ci<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

águia sangrenta, leão.


94<br />

Ingrata para os <strong>da</strong> terra,<br />

boa para os que não são.<br />

Amiga dos que a maltratam,<br />

inimiga dos que não,<br />

este é o teu retrato feito<br />

com tintas do teu verão<br />

e <strong>de</strong>smaia<strong>da</strong>s l<strong>em</strong>branças<br />

do t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que também eras<br />

noiva <strong>da</strong> revolução.<br />

Po<strong>em</strong>a <strong>de</strong> estrutura próxima do cancioneiro português, “Guia Prático...” revelase<br />

épico, ao narrar “feitos valorosos” do passado, e lírico – a história do Recife é<br />

narra<strong>da</strong> basea<strong>da</strong> no olhar <strong>de</strong> um sujeito poético. Apesar <strong>de</strong> seu estilo popular, dialoga<br />

com a literatura culta através dos poetas João Cabral, Joaquim Cardoso e Manuel<br />

Ban<strong>de</strong>ira, além <strong>de</strong> fazer alusão a Ascenso Ferreira. No primeiro canto, Pena Filho<br />

contextualiza e <strong>de</strong>fine a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: a imagética e a concreta. Ao longo do po<strong>em</strong>a, são<br />

abor<strong>da</strong>dos a história do Recife, suas belas-letras, sua geografia, monumentos, os bairros<br />

centrais, o subúrbio, a bo<strong>em</strong>ia, a reforma arquitetônica e a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte com suas<br />

ruínas e o lado negro do submundo e <strong>da</strong> corrupção dos políticos e capitalistas<br />

inescrupulosos. O último canto, <strong>de</strong>nominado “O Fim”, é um quadro duro e frio, on<strong>de</strong><br />

Pena Filho retrata, com baços olhos, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> espelha<strong>da</strong> <strong>em</strong> sua retina, <strong>de</strong>sola<strong>da</strong><br />

paráfrase<strong>de</strong>Camões:“Da terra vos sei dizer que é mãe <strong>de</strong> vilões e ruins, e madrasta <strong>de</strong><br />

homens honrados” 125 . Fim.<br />

125 CAMÕES, Luís <strong>de</strong>. Os Lusía<strong>da</strong>s (trecho sobre Goa), 1998.


95<br />

CONCLUSÃO<br />

Carlos Pena Filho, poeta múltiplo e plural é um retrato fiel do Recife. Sim, um<br />

retratos, pois como foi visto a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> é, também, plural. E, <strong>de</strong> acordo com o ângulo <strong>em</strong><br />

que é observa<strong>da</strong>, revela-se diferente, n<strong>em</strong> melhor n<strong>em</strong> pior, apenas diversa. Recife,<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong> ingrata, sangrenta, noiva <strong>da</strong> revolução. Carlos, poeta do dialogismo, <strong>da</strong> cor, <strong>da</strong><br />

musicali<strong>da</strong><strong>de</strong>, do imagismo, <strong>da</strong> transcendência e <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Esse trabalho teve a intenção <strong>de</strong> analisar a influência <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> na formação <strong>da</strong><br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> humana e seus reflexos psicológicos <strong>em</strong> seus habitantes e a repercussão<br />

<strong>de</strong>ssa influência na obra <strong>de</strong> Carlos Pena Filho. Para uma melhor compreensão do<br />

processo po<strong>em</strong>ático <strong>de</strong> Pena Filho, a análise teve por base o conceito <strong>de</strong> biograf<strong>em</strong>a <strong>de</strong><br />

Roland Barthes, o qual levou à escolha <strong>de</strong> cinco “inflexões” que mais se distingu<strong>em</strong> na<br />

poesia do autor <strong>de</strong> “Livro Geral”: dialogismo, apoiando-se <strong>em</strong> Bakthin; a cor e a<br />

música, buscando apoio teórico <strong>em</strong> Boileau e Jung; o imagismo, tendência literária<br />

surgi<strong>da</strong> no início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1950, na qual Carlos Pena foi um dos principais<br />

representantes; a transcendência, <strong>de</strong>vido à níti<strong>da</strong> preocupação do poeta com a morte, e a<br />

compreensão <strong>da</strong> alma, essas quatro inflexões sendo estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s no Primeiro capítulo, “No<br />

Sumidouro do Azul”.<br />

A ci<strong>da</strong><strong>de</strong> é a última inflexão abor<strong>da</strong><strong>da</strong>. Ela mereceu dois capítulos (2º e 3º)<br />

<strong>de</strong>vido a sua importância para a formação i<strong>de</strong>ntitária <strong>da</strong> pessoa e o gran<strong>de</strong> peso que ela<br />

t<strong>em</strong> na poesia <strong>de</strong> Carlos Pena Filho. O segundo capítulo, intitulado “A Poesia <strong>da</strong><br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>”, é mais teórico. Nele, procurou-se compreen<strong>de</strong>r a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, a sua orig<strong>em</strong>, os<br />

paradoxos gerados por ela, a importância tanto para o indivíduo como para a<br />

preservação <strong>de</strong> uma cultura e os estragos psicológicos provocados pelas agressões por<br />

ela sofri<strong>da</strong>s. Historiadores e poetas são as bases para esse estudo: Jorge Luís Borges,<br />

Ferreira Gullar, Manuel Ban<strong>de</strong>ira, Ítalo Calvino, Foustel <strong>de</strong> Coulanges, Antônio Paulo<br />

Rezen<strong>de</strong>, Joaquim Cardoso, Bau<strong>de</strong>laire, Eduardo Galeano e tantos outros, a sua<br />

maneira, <strong>de</strong>ram sua valiosa contribuição para essa análise.


96<br />

Em “A Crônica <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>”, terceiro e último capítulo, foi abordou o t<strong>em</strong>a <strong>de</strong><br />

antigo e mo<strong>de</strong>rno (mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, mo<strong>de</strong>rnismo, mo<strong>de</strong>rnização) e as várias concepções <strong>de</strong><br />

t<strong>em</strong>po: na antigui<strong>da</strong><strong>de</strong>; para os povos primitivos; para os gregos; para os cristãos; e nas<br />

<strong>de</strong>finições <strong>de</strong> Pe. Antônio Vieira, Santo Agostinho e Gilberto Freyre. Carlos Pena Filho<br />

e a Geração <strong>de</strong> 45, à qual cronologicamente pertence, e suas características também<br />

foram vistos, para <strong>em</strong> segui<strong>da</strong> trabalhar sua poesia.<br />

No it<strong>em</strong> “Nor<strong>de</strong>ste Desterrado”, Pena Filho, como se estivesse com uma câmara<br />

objetiva na mão, vira-se <strong>de</strong> frente para o continente, <strong>de</strong>ixando para trás o além-mar e<br />

seus mitos, e foca o Brasil, o nor<strong>de</strong>ste brasileiro, e trabalha a cultura autóctone com seus<br />

mitos e suas len<strong>da</strong>s. Em “O Cronista <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>”, Carlos Pena direciona sua lente para a<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, fechando o ângulo <strong>em</strong> zoom, para melhor e mais niti<strong>da</strong>mente visualizar seu<br />

objeto <strong>de</strong> análise.<br />

Partindo do macrocosmo, no po<strong>em</strong>a “Marinha”, o primeiro a ser publicado, no<br />

Supl<strong>em</strong>ento Cultural do Diário <strong>de</strong> Pernambuco, on<strong>de</strong> estava voltado para a Europa e<br />

para o mito do estrangeiro salvador e protetor, ao perceber quão frágil era esse canto <strong>da</strong><br />

sereia, no po<strong>em</strong>a “M<strong>em</strong>órias do Boi Serapião”, segundo livro publicado (1956), iniciou<br />

seu giro para a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e a cultura nor<strong>de</strong>stina. No “Livro Geral”, esse giro se<br />

completou, seu foco era o microcosmo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Não uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> qualquer, não o<br />

Recife <strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas o Recife refletido na sua retina, cuja imag<strong>em</strong> projeta to<strong>da</strong>s<br />

as outras, reais ou imaginárias, forjando a sua particular, única e intransferível,<br />

“planta<strong>da</strong> no litoral, [...], meta<strong>de</strong> rouba<strong>da</strong> ao mar, meta<strong>de</strong> à imaginação”.


97<br />

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PENA FILHO,Carlos. Livro Geral.Tânia Carneiro Leão (organização e seleção).<br />

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Literatura Fantástica.7 ed.Buenos Aires:Editorial Sulamericana,1991<br />

CALVINO,Ítalo. As Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s Invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo:Cia <strong>da</strong>s<br />

<strong>Letras</strong>,2002<br />

FERREIRA,Luzilá Gonçalves.A garça mal feri<strong>da</strong>, a história <strong>de</strong> Anna Paes D’Altro no<br />

Brasil Holandês. Recife:Editora Nova Fronteira,2002<br />

_________.Os Rios Turvos.Rio <strong>de</strong> Janeiro:Rocco,1993<br />

_________Voltar a Palermo. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Rocco,2002<br />

_________No t<strong>em</strong>po frágil <strong>da</strong>s horas. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Rocco,2003


100<br />

GALEANO, Eduardo.Dias e noites <strong>de</strong> amor e guerra.Trad. Eric Nepomuceno.Porto<br />

Alegre:L e PM,1991<br />

GULLAR,Ferreira. Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s Inventa<strong>da</strong>s. Rio <strong>de</strong> Janeiro:José Olympio, 1997<br />

REGO,José Lins.O moleque Ricardo.20ed.Rio<strong>de</strong>Janeiro:J.Olympio,1995<br />

.RIMBAUD,Arthur.Rimbaud <strong>em</strong> Metro e Rima. Trad.,Milton Lins.Recife:Ed. Gráfica<br />

UPE,1998.<br />

ROSA,João Guimarães.Primeiras estórias.Rio <strong>de</strong> Janeiro:Nova Fronteira,1988<br />

VII – Sobre o T<strong>em</strong>po<br />

CORDIVIOLA,Alfredo. Uma História do T<strong>em</strong>po. Antônio Vieira e os Limites <strong>da</strong><br />

Profecia. Recife: Gabinete Português <strong>de</strong> Leitura,1998.<br />

GAUER,Ruth M. Chittó (coord.).SILVA,Mozart Linhares (org.).T<strong>em</strong>po/História. Porto<br />

Alegre:EDPUCRS.1998<br />

LE GOFF,Jacques.Passado/Presente. Enciclopédia Einaudi.Vol. I.Lisboa:Imprensa<br />

Nacional/ Casa <strong>da</strong> Moe<strong>da</strong>,1984<br />

VIII – Sobre a Mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

HARVEY,David.Condição Pós-Mo<strong>de</strong>rna:Uma Pesquisa sobre as Origens <strong>da</strong> Mu<strong>da</strong>nça<br />

Cultural.Trad. A<strong>da</strong>il Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves.São Paulo:Edições<br />

Loyola,1992<br />

LE GOFF,Jacques.Antigo/Mo<strong>de</strong>rno. Enciclopédia Einaudi.Vol. I.Lisboa:Imprensa<br />

Nacional/ Casa <strong>da</strong> Moe<strong>da</strong>,1984<br />

________.Progresso/Reação. Enciclopédia Einaudi.Vol. I.Lisboa:Imprensa Nacional/<br />

Casa <strong>da</strong> Moe<strong>da</strong>,1984<br />

IX – Sobre Teoria <strong>da</strong> Literatura<br />

ARISTÓTELES.A Poética.2 ed.Rio <strong>de</strong> Janeiro:Imprensa Nacional ? Casa <strong>da</strong> Moe<strong>da</strong>,<br />

1990.<br />

BARTHES,Roland.Sa<strong>de</strong>,Fourier,Loyola.São Paulo:Brasiliense,1990.


101<br />

_________.A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro:Nova Fronteira,1984.<br />

BÉNAC,Henri.Gui<strong>de</strong> <strong>de</strong>s idées litteraires. Ed. Ver. Et augmentée par Brigitte Réauté et<br />

Michèle Laskar.Paris:Hachette, 1988<br />

BORGES,J. L.Esse Ofício do Verso. Trad. José Marcos Macedo. São Paulo: Cia <strong>da</strong>s<br />

<strong>Letras</strong>, 2000.<br />

BOUSOÑO,Carlos.Teoría <strong>de</strong> la Expresion Poética. 2 ed. Madrid:Editorial<br />

Gredos,1956.<br />

CHEVALIER,Jean & GHEERBRANT,Alain. Dicionário <strong>de</strong> símbolos (mitos, costumes,<br />

gestos, formas, figuras,cores, números).Trad. Vera <strong>da</strong> Costa e Silva et alii.Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro:J. Olympio,2002.<br />

FREITAS,Maria Teresa <strong>de</strong> Assunção. Vygotsky e Bakthin. Psicologia e Educação: um<br />

intertexto. 4 ed.São Paulo:Editora Ática,2002.<br />

LITRENTO,Oliveiros. Apresentação <strong>da</strong> Literatura Brasileira.Tomo I. História<br />

Literária. Guanabara: Biblioteca do Exército - Editora e ForenseUniversitária Lt<strong>da</strong>,<br />

1974<br />

MOISÉS,Massaud.A Literatura Portuguesa. 21 ed.São Paulo:Cultrix,1995.<br />

PAZ,Octavio.O ArcoeaLira. Trad. Olga Savary. 2 ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira,<br />

1982.<br />

SARAIVA,Antônio José & LOPES,Oscar. História <strong>da</strong> Literatura Portuguesa.13<br />

ed.Porto:Porto Editora Lt<strong>da</strong>,1985.<br />

IX – Revistas e Periódicos<br />

CÂMARA,João. O olho <strong>de</strong> João Câmara sobre as ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Revista Continente<br />

Multicultural. Recife:CEPE,<strong>de</strong>z/2002. Ano 1. n 0.<br />

DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Recife, 1953 / 1954.<br />

JOACHIN,Sébastien.O papel <strong>da</strong> teoria no ensino <strong>da</strong> literatura. Revista Investigações –<br />

Lingüística e Teoria Literária. Vol.13 e 14. Reice:<strong>UFPE</strong>, <strong>de</strong>z/2001.<br />

1 LIMA, Daniel. Da Teologia ao rol-<strong>de</strong>-roupa (V). DP,27/02/76


102<br />

MONTEIRO,Luiz Carlos. Luminosa paisag<strong>em</strong> <strong>de</strong>sértica – O “Nor<strong>de</strong>sterro” <strong>de</strong> Carlos<br />

Pena Filho.Supl<strong>em</strong>ento Cultural do Diário Oficial <strong>de</strong> Pernambuco..Recife:CEPE,<br />

jun/1996. Ano IX<br />

SARMENTO,Ângela. Ecos <strong>da</strong> poesia portuguesa na poesia <strong>de</strong> Carlos Pena Filho.<br />

Revista do Centro <strong>de</strong> Estudos Brasileiros.Terceira Marg<strong>em</strong>. Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

do Porto,2002, n.3.<br />

SUASSUNA,Ariano. Carlos Pena Filho por Ariano Suassuna. Revista do<br />

Departamento <strong>de</strong> Extensão Cultural e Artístico. Recife:DECA,1960. Ano II, n 2.


103<br />

ANEXOS<br />

Anexo I<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>zinha qualquer<br />

Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

Obra Completa. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Aguilar, 1967,p.67<br />

Casas entre bananeiras<br />

Mulheres entre laranjeiras<br />

Pomar amor cantar<br />

Um hom<strong>em</strong> vai <strong>de</strong>vagar.<br />

Um cachorro vai <strong>de</strong>vagar.<br />

Um burro vai <strong>de</strong>vagar.<br />

Devagar; as janelas olham.<br />

Etavi<strong>da</strong>besta,meuDeus.


104<br />

Anexo II<br />

O Grito<br />

Edvar Munch,1893


105<br />

Anexo III<br />

M<strong>em</strong>órias do Boi Serapião<br />

Carlos Pena Filho<br />

Livro Geral.Tânia Carneiro Leão(org. e seleção).<br />

Recife:Graf. e Ed. Liceu, 1999,p.39<br />

Este campo,<br />

vasto e cinzento,<br />

não t<strong>em</strong> começo n<strong>em</strong> fim<br />

n<strong>em</strong><strong>de</strong>leve<strong>de</strong>sconfia<br />

<strong>da</strong>s coisas que vão <strong>em</strong> mim.<br />

Deve conhecer, apenas<br />

(porque são pecados nossos)<br />

o pó que cega meus olhos<br />

e a se<strong>de</strong> que rói meus ossos.<br />

No verão, quando não há<br />

capim na terra<br />

e milho no paiol<br />

solen<strong>em</strong>ente mastigo<br />

areias, pedras e sol.<br />

Às vezes, nas longas tar<strong>de</strong>s<br />

do quieto mês <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro<br />

vou a uma serra que eu sei<br />

e as coisas <strong>da</strong> infância l<strong>em</strong>bro.<br />

Instante azul <strong>em</strong> meus olhos<br />

vazios <strong>de</strong> luz e fé<br />

cont<strong>em</strong>plando a festa ru<strong>de</strong><br />

que a infância dos bichos é...<br />

No lugar on<strong>de</strong> eu nasci<br />

havia um rio ligeiro<br />

eumcampover<strong>de</strong><strong>em</strong>aisver<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> um janeiro a outro janeiro<br />

havia um hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>itado<br />

na re<strong>de</strong> azul do terraço<br />

e as filhas <strong>de</strong>ntro do rio<br />

diminuindo o mormaço.<br />

Não tinha as coisas <strong>da</strong>qui:<br />

homens secos e compridos<br />

e estas mulheres que guar<strong>da</strong>m<br />

o sol na cor dos vestidos


106<br />

n<strong>em</strong> estas crianças feitas<br />

<strong>de</strong> farinha e jerimum<br />

e a gran<strong>de</strong> se<strong>de</strong> que mora<br />

no abismo <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um.<br />

Havia este céu <strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre<br />

e, além disto, pouco mais<br />

que as on<strong>da</strong>s na superfície<br />

dos ver<strong>de</strong>s canaviais.<br />

Mas, os homens que moravam<br />

na língua do litoral<br />

falavam se <strong>de</strong>smanchando<br />

<strong>da</strong>s terras gor<strong>da</strong>s e grossas<br />

<strong>da</strong>quele canavial<br />

e raras vezes guar<strong>da</strong>vam<br />

suas l<strong>em</strong>branças mofinas<br />

as fumaças que sujavam<br />

os claros céus que cobriam<br />

as chaminés <strong>da</strong>s usinas.<br />

Às vezes, entre iguarias,<br />

um comentário isolado:<br />

a crônica triste e curta<br />

<strong>de</strong> um engenho assassinado.<br />

Mas, logo à mesa voltavam<br />

que a fome b<strong>em</strong> pouco espera<br />

e os seus olhos <strong>de</strong>scansavam<br />

<strong>em</strong> porcelanas <strong>da</strong> China<br />

ecristais<strong>da</strong>Baviera.<br />

Naquelas terras <strong>da</strong> mata<br />

b<strong>em</strong> poucos amigos fiz,<br />

ou porque não me quiseram<br />

ou então porque eu não quis.<br />

L<strong>em</strong>bro apenas um boi triste<br />

num lençol <strong>de</strong> margari<strong>da</strong>s<br />

que era o encanto do menino<br />

que alegre o tangia para<br />

as colinas colori<strong>da</strong>s.<br />

Um dia, naquelas terras<br />

foi encontrado um boi morto<br />

e os outros logo disseram<br />

que o seu dono era o hom<strong>em</strong> torto<br />

que <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> contar as coisas<br />

<strong>da</strong>queles canaviais


107<br />

vivia<strong>de</strong>mexericos<br />

“entre estas índias <strong>de</strong> leste<br />

e as índias Oci<strong>de</strong>ntais”.<br />

A ver<strong>de</strong> flora <strong>da</strong> mata<br />

(que é azul por ser <strong>da</strong> infância)<br />

habita os meus olhos com<br />

sereni<strong>da</strong><strong>de</strong> e constância.<br />

Este campo,<br />

vasto e cinzento,<br />

éon<strong>de</strong>àsvezesmeescondo<br />

e envolto nestas l<strong>em</strong>branças<br />

durmo o meu sono redondo,<br />

que o que há <strong>de</strong> bom por aqui<br />

na terra do não chover<br />

é que não se espera a morte<br />

poisseestás<strong>em</strong>preamorrer:<br />

<strong>em</strong> ca<strong>da</strong> poço que seca<br />

<strong>em</strong> ca<strong>da</strong> árvore morta<br />

<strong>em</strong> ca<strong>da</strong> sol que penetra<br />

na frincha <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> porta<br />

<strong>em</strong> ca<strong>da</strong> passo avançado<br />

no leito <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> rio<br />

por todo o t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que fica<br />

<strong>de</strong>spido, seco vazio.<br />

Quando o sol doer nas coisas<br />

<strong>da</strong> terra e no céu azul<br />

e os homens for<strong>em</strong> <strong>em</strong> busca<br />

dos ver<strong>de</strong>s mares do sul,<br />

só eu ficarei aqui<br />

para morrer por completo,<br />

para <strong>da</strong>r a carne à terra<br />

e ao sol meu branco esqueleto,<br />

n<strong>em</strong> ao menos tentarei<br />

voltar ao canavial,<br />

p’ra <strong>de</strong>pois me dividir<br />

entreafábrica<strong>de</strong>couro<br />

e o terrível matadouro<br />

municipal.<br />

E pensar que já houve um t<strong>em</strong>po<br />

<strong>em</strong> que estes homens compridos<br />

falavam <strong>de</strong> nós assim:<br />

o meu boi morreu


108<br />

que será <strong>de</strong> mim?<br />

Este campo<br />

vasto e cinzento,<br />

não t<strong>em</strong> entrar n<strong>em</strong> sair<br />

e n<strong>em</strong> <strong>de</strong> longe imagina<br />

as coisas que estão por vir,<br />

e enquanto o t<strong>em</strong>po não v<strong>em</strong><br />

n<strong>em</strong> chega o milho ao paiol<br />

solen<strong>em</strong>ente mastigo<br />

areia, pedras e sol.


109<br />

Anexo IV<br />

Episódio Sinistro <strong>de</strong> Virgulino Ferreira<br />

Carlos Pena Filho Livro Geral.Tânia Carneiro<br />

Leão(org. e seleção). Recife:Graf. e Ed. Liceu,<br />

1999,p.24<br />

AJorgeAmado<br />

e<br />

Odorico Tavares<br />

I<br />

Sobre um chão <strong>de</strong> sol manchado,<br />

passeavas pelos campos<br />

o teu cangaço s<strong>em</strong> rumo.<br />

Comumolhonamorteeoutro<br />

no fel que se elaborava<br />

<strong>em</strong> tua vi<strong>da</strong> s<strong>em</strong> prumo.<br />

Teus olhos apenas viam<br />

fogo, sol, lâmina, fumo<br />

e apetrechos <strong>de</strong> <strong>em</strong>bosca<strong>da</strong>.<br />

Em vez <strong>de</strong> chapéu, possuías<br />

umcéu<strong>de</strong>coroàcabeça<br />

com três estrelas finca<strong>da</strong>s.<br />

Tua missão neste mundo<br />

era governar o escuro:<br />

acen<strong>de</strong>r uma fogueira<br />

comosmil<strong>de</strong>stroços<strong>da</strong>fúria.<br />

Cultivar lavoura estranha:<br />

s<strong>em</strong>ear <strong>em</strong> sepultura.<br />

E arriscar, que é certo o risco<br />

na profissão <strong>da</strong> aventura.<br />

Nos sítios on<strong>de</strong> campeavas,<br />

nor<strong>de</strong>ste avaro e sinistro<br />

<strong>de</strong> sóis s<strong>em</strong> fim do sertão,<br />

povoavas as campinas,<br />

as vastidões <strong>de</strong>sola<strong>da</strong>s<br />

com tua negra solidão.<br />

A solidão que habitava<br />

teu sono e tua ração<br />

e que ia mesmo até on<strong>de</strong>


110<br />

não ia um boi n<strong>em</strong> um cão,<br />

on<strong>de</strong> não chegava um hom<strong>em</strong><br />

n<strong>em</strong> sua <strong>de</strong>gra<strong>da</strong>ção,<br />

on<strong>de</strong> não iam as aves<br />

n<strong>em</strong> ia a recor<strong>da</strong>ção,<br />

on<strong>de</strong> só ia ela mesmo,<br />

<strong>em</strong> tua perseguição.<br />

II<br />

Afeira<strong>de</strong>VilaBela<br />

t<strong>em</strong> chocalhos para vacas.<br />

Na feira <strong>de</strong> Vila Bela,<br />

feijão e pó nas barracas.<br />

Na feira <strong>de</strong> Vila Bela,<br />

arreios, cor<strong>da</strong>s e facas.<br />

Na feira <strong>de</strong> Vila Bela,<br />

chapéus <strong>de</strong> couro, alpercatas.<br />

Na feira <strong>de</strong> Vila Bela,<br />

um ceguinho pe<strong>de</strong> esmola.<br />

Na feira <strong>de</strong> Vila Bela,<br />

ocegoesuaviola:<br />

- “Dona, siga o meu conselho,<br />

vá rezar uma oração,<br />

porqueeujávejo,àdistância,<br />

aira<strong>de</strong>Lampião.<br />

Fiqu<strong>em</strong> somente os sol<strong>da</strong>dos,<br />

o sargento e o capitão.<br />

Fico eu também que sou cego<br />

e não sei <strong>da</strong> clari<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Se Lampião me matar,<br />

mata só a meta<strong>de</strong>,<br />

que a outra já levou Deus<br />

por sua agreste vonta<strong>de</strong>”.<br />

III<br />

Às cinco horas, a tar<strong>de</strong><br />

aguar<strong>da</strong>va a escuridão.<br />

Uma cabra ruminava<br />

e um boi dormia no chão.<br />

Pelo silêncio voava<br />

o vento <strong>da</strong> solidão<br />

e o longo céu transformava<br />

seu ourazul <strong>em</strong> carvão.


111<br />

Àsseis<strong>em</strong>eia<strong>da</strong>noite,<br />

Corisco cuspiu no chão,<br />

Voltasecaolhou<strong>em</strong>torno,<br />

fez sinal a Lampião.<br />

Àssete<strong>em</strong>eia<strong>da</strong>noite,<br />

Virgulino disse: não.<br />

Só meia hora <strong>de</strong>pois<br />

cuspiu fogo a sua mão.<br />

Na frente segu<strong>em</strong> as balas<br />

e, logo após, o trovão.<br />

Depois <strong>de</strong>le vai Lusbel<br />

no corpo <strong>de</strong> Lampião.<br />

Por <strong>de</strong>z minutos, o chumbo<br />

passeou na escuridão.<br />

entrou no medo <strong>de</strong> alguns<br />

e, <strong>de</strong> outros, no coração.<br />

Entrou também, <strong>de</strong> repente,<br />

na branca imaginação<br />

<strong>da</strong>s mocinhas que dormiam<br />

com os seios presos na mão.<br />

- “Venha o chefão”! Ele veio.<br />

Foi passado no facão.<br />

- “Venha agora o carcereiro<br />

que é hom<strong>em</strong> s<strong>em</strong> precisão.<br />

Saia o vigário <strong>da</strong> igreja<br />

prame<strong>da</strong>rsuabenção.<br />

Volta Seca, solte os presos<br />

que o mundo já é prisão”.<br />

IV<br />

Veio o sol imperecível<br />

eiluminouto<strong>da</strong>avila,<br />

pôs luz no ar e no medo<br />

na carne, no pó, na argila.<br />

Banhou <strong>de</strong> luz um vaqueiro<br />

que vinha <strong>de</strong> uma fazen<strong>da</strong>,<br />

parounaalmofa<strong>da</strong><strong>de</strong>uma<br />

avó que fazia ren<strong>da</strong>.<br />

Desceu ao chão e secou<br />

sangue rubro <strong>de</strong>rramado,<br />

brilhou nos botões <strong>da</strong> far<strong>da</strong><br />

do cadáver <strong>de</strong> um sol<strong>da</strong>do.


112<br />

Na meia-manhã, a vila<br />

preparava um pelotão<br />

para sair pelos campos<br />

afora, <strong>em</strong> perseguição.<br />

Mas,norte,sul,esteeoeste,<br />

pra to<strong>da</strong> parte é sertão<br />

e nele ninguém <strong>de</strong>scobre<br />

Virgulino Lampião.<br />

V<br />

Um dia é apenas um dia,<br />

pois os dias, dias são.<br />

Umdiaseráoteudia,<br />

Virgulino Lampião.<br />

Teus olhos míopes, tua<br />

corag<strong>em</strong> e tua mão<br />

ficarão paralisados,<br />

Virgulino Lampião.<br />

De na<strong>da</strong> adiantará<br />

aquela forte oração<br />

que te <strong>de</strong>u <strong>em</strong> Juazeiro<br />

Padre Cícero Romão.<br />

A morte será tão gran<strong>de</strong><br />

que até mesmo a solidão<br />

que há tantos anos te habita<br />

será corta<strong>da</strong> a facão.<br />

VI<br />

Afeira<strong>de</strong>VilaBela<br />

t<strong>em</strong> chocalhos para vacas.<br />

Na feira <strong>de</strong> Vila Bela,<br />

feijão e pó nas barracas.<br />

Na feira <strong>de</strong> Vila Bela,<br />

arreios, cor<strong>da</strong>s e facas.<br />

Na feira <strong>de</strong> Vila Bela,<br />

chapéus <strong>de</strong> couro, alpercatas.<br />

Na feira <strong>de</strong> Vila Bela,<br />

um ceguinho pe<strong>de</strong> esmola.<br />

Na feira <strong>de</strong> Vila Bela,<br />

ocegoesuaviola:<br />

- “A len<strong>da</strong> t<strong>em</strong> pés ligeiros<br />

e corre mais no sertão,<br />

corre mais do que l<strong>em</strong>brança,<br />

mais que sol<strong>da</strong>do fujão.


113<br />

Corre mais que tudo, só<br />

não corre mais que oração<br />

e isso mesmo quando é feita a<br />

Padre Cícero Romão.<br />

Hoje todo mundo sabe<br />

qu<strong>em</strong> foi ele, o capitão.<br />

Junta o sabe e o não sabe<br />

e inventa outro Lampião.<br />

Mas, <strong>de</strong>le mesmo, não sab<strong>em</strong><br />

e n<strong>em</strong> nunca saberão,<br />

pois ele nunca viveu,<br />

não era sim, era não,<br />

como essas coisas que exist<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> imaginação.<br />

qu<strong>em</strong> pu<strong>de</strong>r que invente outro<br />

Virgulino Lampião.


114<br />

Anexo V<br />

Guia Prático <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Recife<br />

Carlos Pena Filho<br />

Livro Geral.Tânia Carneiro Leão(org. e sel..<br />

Recife:Graf. e Ed. Liceu, 1999,p.129<br />

O INÍCIO<br />

O NAVEGADOR HOLANDÊS<br />

No ponto on<strong>de</strong> o mar se extingue<br />

easareiasselevantam<br />

cavaram seus alicerces<br />

na sur<strong>da</strong> sombra <strong>da</strong> terra<br />

e levantaram seus muros<br />

do frio sono <strong>da</strong>s pedras.<br />

Depois armaram seus flancos:<br />

trinta ban<strong>de</strong>iras azuis<br />

planta<strong>da</strong>s no litoral.<br />

Hoje, serena, flutua,<br />

meta<strong>de</strong> rouba<strong>da</strong> ao mar,<br />

meta<strong>de</strong> á imaginação,<br />

pois é do sonho dos homens<br />

que uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> se inventa.<br />

Outrora o t<strong>em</strong>po era intacto<br />

<strong>em</strong> seus braços prolongados<br />

e <strong>em</strong> suas línguas <strong>de</strong> areia,<br />

virgens <strong>de</strong> pés e barcaças,<br />

virgens <strong>de</strong> olhos e lunetas,<br />

(até <strong>de</strong> imaginação)<br />

chegou, tranqüilo e exato,<br />

o argonauta do improviso,<br />

trazendo o sol na cabeça<br />

e o mar no fundo dos olhos,<br />

um gosto <strong>de</strong> azul na boca<br />

sob a audácia dos bigo<strong>de</strong>s<br />

flamengos e retorcidos.<br />

Mas, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algumas bulhas<br />

com o português cristão<br />

e alguns segredos <strong>de</strong> amor<br />

com as donzelas <strong>de</strong> então,<br />

escorraçado voltou<br />

<strong>de</strong>ixando-nos essas coisas<br />

que a sua presença atestam:<br />

algumas mulheres prenhas<br />

<strong>de</strong>stes Wan<strong>de</strong>rleys que restam.<br />

Esse t<strong>em</strong>po, há muito gasto,<br />

resiste, apenas, agora<br />

<strong>em</strong> feriados <strong>de</strong> escola<br />

e <strong>em</strong> frias e sonolentas<br />

or<strong>de</strong>ns do dia, <strong>em</strong> quartéis


115<br />

on<strong>de</strong> fofos capitães,<br />

esver<strong>de</strong>ados por fora,<br />

ganham a vi<strong>da</strong> e as estrelas,<br />

odia,omês,oano<br />

a custa do amarelinho<br />

e alegre “porque me ufano”.<br />

MANOEL,<br />

JOÃO E<br />

JOAQUIM<br />

Desset<strong>em</strong>po,éoqueresta<br />

para um discreto dizer,<br />

pois qu<strong>em</strong> cantou esse t<strong>em</strong>po<br />

já não é do meu saber.<br />

Hoje a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> possui<br />

os seus cantores que po<strong>de</strong>m<br />

ser resumidos assim:<br />

Manoel, João e Joaquim.<br />

No jardim Treze <strong>de</strong> Maio,<br />

Manoel vai ficar plantado,<br />

para s<strong>em</strong>pre e mais um dia,<br />

sereno, bustificado,<br />

pois qu<strong>em</strong> <strong>da</strong> terra se ausenta<br />

<strong>de</strong>ve assim ser castigado.<br />

Dali não po<strong>de</strong>rá ver<br />

a casa do seu avô<br />

e n<strong>em</strong> a rua <strong>da</strong> Aurora,<br />

n<strong>em</strong> o que o t<strong>em</strong>po acabou,<br />

n<strong>em</strong> o mar n<strong>em</strong> a sereia<br />

e n<strong>em</strong> o boi morto na cheia<br />

<strong>de</strong>sserioescuroetriste,<br />

<strong>de</strong> lama podre no fundo<br />

e baronezas na face,<br />

que v<strong>em</strong>, modorra e preguiça,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o lugar on<strong>de</strong> nasce<br />

parando pelas campinas<br />

e escorregando nos montes,<br />

atéestesítioclaro,<br />

on<strong>de</strong> cobriram seu leito<br />

<strong>de</strong> pedra, ferro e cimento<br />

organizados <strong>em</strong> pontes.<br />

Des<strong>de</strong> a Velha, carcomi<strong>da</strong>,<br />

passag<strong>em</strong> para <strong>de</strong>tentos,<br />

que é por on<strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre passa<br />

esse povo marginal,<br />

escuro e anfíbio que habita<br />

ocaisditodoAreal,<br />

até a ponte mais nova<br />

quet<strong>em</strong>onom<strong>em</strong>aisvelho:<br />

a ponte <strong>de</strong> Duarte Coelho.<br />

Mas tudo o que for do rio,<br />

água, lama, caranguejos,


116<br />

os peixes e as baronezas<br />

e qualquer <strong>em</strong>barcação,<br />

está s<strong>em</strong>pre e a todo instante<br />

l<strong>em</strong>brando o poeta João<br />

que leva o rio consigo<br />

como um cego leva um cão.<br />

Mas vieram <strong>de</strong> longe as águas<br />

que aqui no Recife estão,<br />

já comeram areia e pedra<br />

lá b<strong>em</strong> perto do sertão<br />

e é por isso, talvez,<br />

queescurasetristessão.<br />

Porém não foi só tristeza<br />

sua peregrinação,<br />

<strong>em</strong> seu trajeto tiveram<br />

a farta satisfação<br />

<strong>de</strong> <strong>da</strong>r <strong>de</strong> beber a secos<br />

homens, cavalos e bois<br />

e <strong>em</strong> seu incerto caminho<br />

ain<strong>da</strong> viram <strong>de</strong>pois<br />

os sítios cheios <strong>de</strong> sombra,<br />

on<strong>de</strong> dorme a sonho espesso<br />

o poeta Joaquim que foi<br />

fazer uma estação <strong>de</strong> águas<br />

nos olhos do seu amor<br />

e trouxe, nos seus, acesos,<br />

os cajueiros <strong>em</strong> flor.<br />

APRAIA<br />

Masnãoésójuntoaorio<br />

que o Recife está plantado,<br />

hojeaci<strong>da</strong><strong>de</strong>seesten<strong>de</strong><br />

por sítios nunca pensados,<br />

dos subúrbios coloridos<br />

aos horizontes molhados.<br />

Horizontes on<strong>de</strong> habitam<br />

homens <strong>de</strong> pouco falar<br />

noturnos como convém<br />

à fúria grave do mar.<br />

Que com<strong>em</strong> fel <strong>de</strong> crustáceos<br />

e que viv<strong>em</strong> do precário<br />

<strong>de</strong>sequilíbrio dos peixes.<br />

Nesse lugar, as mulheres<br />

cultivam brancos silêncios<br />

e nas ausências mais longas,<br />

pousam os olhos no chão,<br />

sa<strong>em</strong> do fundo <strong>da</strong> noite,<br />

tiram a angústia do bolso<br />

eacont<strong>em</strong>plamnamão.<br />

Só os velhos adormec<strong>em</strong>,<br />

l<strong>em</strong>brando o t<strong>em</strong>po que foi,


117<br />

vazios como o vazio<br />

e fácil sono <strong>de</strong> um boi.<br />

SUBÚRBIOS<br />

Nos subúrbios coloridos<br />

<strong>em</strong> que a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> se esten<strong>de</strong>,<br />

<strong>em</strong> seus longos arredores,<br />

on<strong>de</strong>, a ca<strong>da</strong> instante nasce<br />

umarosa<strong>de</strong>papel,<br />

caminham as tecelãs.<br />

Restos <strong>de</strong> amor nos cabelos<br />

que ocultam por ocultar,<br />

levam a noite no ventre<br />

e a madruga<strong>da</strong> no olhar<br />

e <strong>em</strong> esqueletos <strong>da</strong> sombra,<br />

on<strong>de</strong> a luz chega filtra<strong>da</strong>,<br />

as tecelãs vão parar.<br />

A<strong>de</strong>us l<strong>em</strong>brança <strong>de</strong> amores,<br />

a<strong>de</strong>us leve caminhar.<br />

Agora resta somente<br />

um <strong>de</strong>sencanto sereno:<br />

o gerente e as botinas,<br />

magoando o silêncio pleno.<br />

A LUA<br />

Mas,nosdomingosmaisclaros,<br />

as tecelãs se transformam<br />

<strong>em</strong> puras rosas <strong>de</strong> sal<br />

e oferec<strong>em</strong> os seus braços<br />

a curva do litoral.<br />

n<strong>em</strong> se l<strong>em</strong>bram mais do mangue,<br />

podre, virg<strong>em</strong> vegetal,<br />

on<strong>de</strong> os homens são s<strong>em</strong> sonhos,<br />

como qualquer mineral.<br />

Mas, enquanto tudo é fome,<br />

por todo o reino animal,<br />

existe ain<strong>da</strong> fartura<br />

na “terceira capital”,<br />

pois os que for<strong>em</strong> passear<br />

no cais <strong>da</strong> rua <strong>da</strong> Aurora,<br />

<strong>em</strong> certa noite do mês,<br />

po<strong>de</strong>rão sair dizendo,<br />

todos juntos, <strong>de</strong> uma vez:<br />

Era uma lua tão gran<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong> tão vermelha amplidão<br />

que mesmo Ascenso Ferreira,<br />

comendo só a meta<strong>de</strong>,<br />

morria <strong>de</strong> indigestão.


118<br />

IGREJAS<br />

O BAIRRO DO<br />

RECIFE<br />

Não é que somente <strong>em</strong> luas,<br />

o Recife farto seja;<br />

é farto, também <strong>de</strong> igrejas.<br />

Pois t<strong>em</strong> a <strong>de</strong> São Francisco<br />

na rua do Imperador,<br />

com rezas pra Santo Antônio<br />

e promessas por amor;<br />

t<strong>em</strong> a Igreja <strong>de</strong> São Pedro,<br />

nopátiodomesmonome<br />

que se fosse gente, há muito<br />

tinha morrido <strong>de</strong> fome,<br />

mas,comé,firme,resiste,<br />

sozinha, <strong>em</strong> seu abandono<br />

e <strong>em</strong> seu <strong>de</strong>stino b<strong>em</strong> triste<br />

<strong>de</strong> igreja quase s<strong>em</strong> dono.<br />

É como se fosse pouco<br />

seu exílio obrigatório,<br />

ain<strong>da</strong> está con<strong>de</strong>na<strong>da</strong><br />

a ver o bar <strong>de</strong> Gregório,<br />

on<strong>de</strong> os nossos literatos,<br />

criados a uva e maçãs,<br />

levam os amigos <strong>de</strong> fora<br />

para comer sarapatel,<br />

<strong>de</strong>pois transformado <strong>em</strong> obra<br />

com tinta escura e papel.<br />

Mas não é só, o Recife<br />

ain<strong>da</strong> t<strong>em</strong> muitas igrejas<br />

lavando os pecados seus;<br />

t<strong>em</strong> lá b<strong>em</strong> perto do mar,<br />

a sua concatedral<br />

chama<strong>da</strong> Madre <strong>de</strong> Deus,<br />

que é on<strong>de</strong> essas menininhas<br />

<strong>de</strong> Maria Ma<strong>da</strong>lena<br />

vãoàmissaeànovena.<br />

AliéqueéoRecife<br />

mais propriamente chamado,<br />

com seu pecado diurno<br />

e o seu noturno pecado,<br />

mas tudo muito tranqüilo,<br />

sereno e equilibrado.<br />

no an<strong>da</strong>r térreo, moram os bancos<br />

(capitais <strong>da</strong> Capital)<br />

no primeiro, a ex-austera<br />

Associação Comercial,<br />

no segundo, a s<strong>em</strong>pre fútil,<br />

Câmara Municipal<br />

e, no terceiro, afinal,<br />

esta a alegre pensão<br />

<strong>da</strong> redon<strong>da</strong> Alzira, a viga


119<br />

mestra <strong>da</strong> prostituição.<br />

Mas como viv<strong>em</strong> tão b<strong>em</strong>,<br />

<strong>em</strong> tão segura união,<br />

qualquer dia, todos juntos,<br />

vão fun<strong>da</strong>r a Associação<br />

dos Múltiplos Pecadores,<br />

com banqueiros, comerciantes,<br />

prostitutas, vereadores,<br />

ingleses do British Club,<br />

homens doentes e sãos,<br />

pois o camelô já disse<br />

que somos todos irmãos.<br />

Esse é o bairro do Recife<br />

que t<strong>em</strong> um cais <strong>de</strong>bruçado<br />

nas ver<strong>de</strong>s águas do Atlântico<br />

e ain<strong>da</strong> t<strong>em</strong> o cais do Apolo,<br />

apodrecido e romântico,<br />

beleza que ain<strong>da</strong> resiste<br />

lá nos <strong>de</strong>svãos <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória<br />

<strong>de</strong>sse bairro que se escoa<br />

pela Ponte Giratória,<br />

que é uma estranha armação<br />

queagüenta<strong>em</strong>seuférreodorso<br />

automóvel, caminhão<br />

etr<strong>em</strong><strong>de</strong>cargab<strong>em</strong>cheio,<br />

mas não resiste às barcaças<br />

que a fen<strong>de</strong>m do meio a meio.<br />

SÃO JOSÉ<br />

CHOPP<br />

É por ela que se chega<br />

ao bairro <strong>de</strong> São José,<br />

<strong>de</strong> ruas <strong>de</strong> casas juntas,<br />

caria<strong>da</strong>s, mas <strong>de</strong> pé.<br />

De classe média arruina<strong>da</strong>,<br />

mas <strong>de</strong> gravata e até<br />

missa ao domingo, pois s<strong>em</strong>pre<br />

é bom ter alguma fé.<br />

Bairro português que outrora<br />

foi <strong>de</strong> viver e poupar,<br />

nascer, crescer e casar<br />

naquela igreja chama<strong>da</strong><br />

SãoJosédoRibamar.<br />

Na aveni<strong>da</strong> Guararapes,<br />

o Recife vai marchando.<br />

O bairro <strong>de</strong> Santo Antônio,<br />

tanto se foi transformando<br />

que, agora às cinco <strong>da</strong> tar<strong>de</strong><br />

mais se ass<strong>em</strong>elha a um festim,<br />

nas mesas do bar Savoy,


120<br />

orefrãot<strong>em</strong>sidoassim:<br />

São trinta copos <strong>de</strong> chopp,<br />

são trinta homens sentados,<br />

trezentos <strong>de</strong>sejos presos,<br />

trinta mil sonhos frustrados.<br />

Ah mas se a gente pu<strong>de</strong>sse<br />

fazer o que t<strong>em</strong> vonta<strong>de</strong>:<br />

espiar o banho <strong>de</strong> uma,<br />

a outra amar pela meta<strong>de</strong><br />

e <strong>da</strong>quela que é mais lin<strong>da</strong><br />

quebrar a rija vai<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Mas como a gente não po<strong>de</strong><br />

fazer o que t<strong>em</strong> vonta<strong>de</strong>,<br />

o jeito é mu<strong>da</strong>r a vi<strong>da</strong><br />

num diabólico festim.<br />

Por isso no bar Savoy,<br />

o refrão é s<strong>em</strong>pre assim:<br />

São trinta copos <strong>de</strong> chopp,<br />

são trinta homens sentados,<br />

trezentos <strong>de</strong>sejos presos,<br />

trinta mil sonhos frustrados.<br />

ORADORES<br />

SECOS E<br />

MOLHADOS<br />

Este ponto ver<strong>de</strong> aqui,<br />

feito <strong>de</strong> folhas e flores,<br />

éoJardimTreze<strong>de</strong>Maio,<br />

on<strong>de</strong> os nossos oradores<br />

vãoumaooutrocontar<br />

como foi que conseguiram<br />

a vi<strong>da</strong> inteira passar<br />

nas trevas <strong>da</strong> ignorância<br />

s<strong>em</strong> nunca <strong>de</strong>sconfiar.<br />

Pois, ca<strong>da</strong> qual sente um gênio<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si borbulhar<br />

e, coitadinhos, n<strong>em</strong> sab<strong>em</strong><br />

que o que borbulha é a ameba<br />

que não pu<strong>de</strong>ram tratar.<br />

Ain<strong>da</strong> existe muita coisa<br />

<strong>de</strong> bom e ruim pra contar,<br />

mas como sou conhecido<br />

por discreto no falar,<br />

irei,agora,evitar.<br />

Mas não s<strong>em</strong> antes passar<br />

pelosarmazéns<strong>de</strong>estiva,<br />

mar dos nossos tubarões,<br />

<strong>de</strong> brasileiros sabidos,<br />

portugueses sabidões<br />

que na vi<strong>da</strong> leram menos<br />

que o olho cego <strong>de</strong> Camões,<br />

mas que <strong>em</strong> patacas possu<strong>em</strong>


121<br />

muito mais que Ali Babá<br />

e os seus quarenta ladrões.<br />

É por isso que aos domingos,<br />

ca<strong>da</strong> qual na sua Igreja<br />

reza, assim, as orações:<br />

-“Sobe, sobe, meu gajeiro,<br />

naquele mastro real,<br />

vê se <strong>de</strong>scobres um meio<br />

<strong>de</strong> aumentar meu capital,”<br />

- “Ven<strong>de</strong>ndo carne <strong>de</strong> charque<br />

importando bacalhau,<br />

dizendo que prata é ouro<br />

e latão é bom metal.<br />

É assim que viv<strong>em</strong>os <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

Pedro Alvarez Cabral,<br />

pois o Papa já nos pôs,<br />

no Tratado <strong>da</strong>s Tor<strong>de</strong>silhas,<br />

além do b<strong>em</strong> e do mal.”<br />

O FIM<br />

Recife, cruel ci<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

águia sangrenta, leão.<br />

ingrataparaos<strong>da</strong>terra,<br />

boaparaosquenãosão.<br />

Amiga dos que a maltratam,<br />

inimiga dos que não,<br />

este é o teu retrato feito<br />

com tintas do teu verão<br />

e <strong>de</strong>smaia<strong>da</strong>s l<strong>em</strong>branças<br />

do t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que também eras<br />

noiva<strong>da</strong>revolução.

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