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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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96<br />

Conto tudo, como disse, à distância de alguns anos. Neste vasto casarão, tão vivo<br />

um dia e agora deserto, o outrora tem uma presença alarmante e tudo quanto aconteceu<br />

emerge dessa vaga das eras como uma estranha face intocável e solitária. Mas os elos de<br />

ligação entre os fatos que narro é como se se diluíssem num fumo de neblina e ficassem<br />

só audíveis, como gritos, que todavia se respondem na unidade do que sou, os ecos angustiantes<br />

desses fatos em si – padrões de uma viagem que já mal sei. (Ap, p. 24).<br />

Contar tudo, à distância de alguns anos, mas tudo recriando numa escrita que desse<br />

a essa experiência de vida a perenidade possível, ou, sendo a perenidade demasiada e im-<br />

ambição, a longevidade possível. Tal como a tia Dulce deixou para os pósteros o<br />

possível<br />

seu velho álbum de fotografias, confiando-o a Alberto quando já se encontrava próximo do<br />

fim, este deixará em escrita o testemunho da sua vivência existencial, embora diga, mas<br />

incerto, que “não escreve para ninguém”.<br />

[...] e escreverei sequer para mim? O que me arrasta ao longo destas noites, que, tal como<br />

esse outrora de que falo se aquietam já em deserto, o que me excita a escrever é o<br />

desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me<br />

violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que<br />

é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas<br />

mãos inábeis o que fulgurou e morreu. (Ap, p. 209-210).<br />

Sem dúvida que Alberto escreve para dar sentido e continuidade à sua vida. Justificá-la,<br />

tentar salvá-la do nada absoluto. Pela sua escrita, tenta unir, por um fio invisível e de<br />

duvidosa resistência, o passado vivido ao presente em que escreve, mergulhado na emoção<br />

da reminiscência que se transfigura em arte. Por isso deixa de ter importância a exatidão de<br />

uma memória factual. “Se tento recuperar o passado, não o consigo. Os fatos que verdadeiramente<br />

‘recordo’ não têm imediatamente significação. Porque o que eles significam é<br />

mais violento e evidente e antigo do que eles.” (Ap, p. 103-104). Não é bem a realidade do<br />

passado na sua exata verdade o que interessa a Alberto. “O que me seduz no passado” – diz<br />

ele ao irmão Tomás, numa cena em que os dois conversam à porta da igreja da aldeia, onde<br />

se realizava a missa de Natal, por entre uma memória de coros que “vibravam pelo adro<br />

todo coberto de neve, uniam-se à solene plenitude da montanha”... – “O que me seduz no<br />

passado não é o presente que foi – é o presente que não é nunca. O que sonho nestes cânticos<br />

não é a paz do passado: o que sonho é o sonho.” (Ap, p. 155-156). Esta concepção de

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