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um tema é já significativo... Mas o mais significativo é o tom que se adota perante ele. O sonho, a<br />
morte, o amor, etc., são o que são, mais o modo como deles falamos, a maneira como somos sensíveis<br />
perante eles. Assim o tom dá a opção da nossa sensibilidade. Não bem portanto, o modo como<br />
encaramos um tema, ou seja, o ângulo de ataque a esse tema, mas a armadura da sensibilidade, as<br />
cordas sensíveis que são postas a vibrar nesse modo como o encaramos. O tom dá o tipo da nossa<br />
comoção, a escolha que de nós fazemos na maneira de realizarmos seja o que for.” (CC1, p. 314 –<br />
itálico da citação).<br />
7 A importância da reminiscência como conceito diferenciado de memória ou de lembrança e muito mais<br />
próximo da evocação de uma espécie de ancestralidade atávica, consciente mas abstrata, e indefinidamente<br />
vaga, é sinalizada no romance na evocação de uma aula em que Alberto Soares falou aos seus alunos das<br />
redondilhas camonianas de Sôbolos rios que vão. E, implicitamente, do neo-platonismo que está nelas, naquela<br />
saudade de nada, sentida por Camões, que ali<br />
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desde o início apresentado (ou representado) em ato de escrita, não bem de uma escrita<br />
memorialística – embora o aparente –, mas muito mais evocativa de reminiscências às vezes<br />
fugazes que a emoção, mais do que a memória, constrói ou reconstrói. A retomada,<br />
pelo epílogo, do “tom” e mesmo de porções textuais do prólogo, imediatamente estabelecem<br />
uma idéia de circularidade, que, também já sabemos, ao tempo de Aparição e depois<br />
deste romance, é uma constante na estruturação romanesca vergiliana. Esta estrutura circular<br />
pode ser pensada em relação com a música, um dos temas de grande importância no<br />
romance (e neste sentido o prólogo seria uma espécie de solene abertura sinfônica – uma<br />
abertura trágica, saber-se-á depois – e o epílogo o seu finale, a sua coda), como pode ser,<br />
também, tomada como a representação metafórica do tempo, da existência, dos ciclos da<br />
natureza e de tudo quanto o cosmos tem de cíclico.<br />
O segundo – e porventura menos perceptível – elemento da estruturação de Aparição,<br />
estreitamente relacionado com o “tom” do romance e conseqüência dele no seu processo<br />
de execução, diz respeito à idéia de contraponto, de alternância entre espaço e tempo.<br />
Essa alternância que se opera no texto narrativo, por força do caráter de evocação e da<br />
forte emotividade que o caracteriza – sobretudo em alguns dos seus momentos culminantes<br />
–, tende a fundir espaço e tempo numa só dimensão que é a da reminiscência (mais do que<br />
da memória) 7 , a da saudade, a da emoção, a da transfiguração de tudo isso na poesia que<br />
emana do texto evocativo de Alberto Soares, que, à distância de cerca de vinte anos, procura<br />
reconstituir a sua fulgurante vivência da aparição, experiência e revelação da juventude<br />
que para toda a vida o acompanha e que se constituiu da revelação do ser a si próprio, da<br />
evidência violenta e absurda da morte, da existência de uma pessoa num corpo e da cons-<br />
só queria dizer que a pátria celeste era uma aspiração do seu sonho de miséria, do seu sonho de condenado.<br />
Mas eu sabia, [...] eu, que sonho com o reinado integral do homem na terra da sua condenação<br />
e grandeza, assumindo tudo quanto se anuncia em mistério e exaltação, eu sabia que a memória<br />
de Camões, para além dos olhos e da carne, era a minha memória de origens, a minha memória absoluta.<br />
(Ap, p. 126-127).