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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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vel, que sobra ainda de um corpo quando o corpo se ausentou – presença inquietante, tão<br />

viva que era já só ameaça de uma incrível e brusca aparição.” (CF, p. 15). Já aqui se insi-<br />

a significação de uma essencialidade que<br />

nua na palavra o seu sentido fenomenológico:<br />

distingue a pessoa para além do seu corpo, a presentificação essencial de um eu que habita<br />

o corpo e que o transcende, mas que acabará por morrer com ele, evidenciando-se, na mor-<br />

inverossímil e absurda morte do te do corpo, a injusta, eu.<br />

Mário [...] não se deixava iludir. E a sua interrogação alarmada, o seu espanto de quem<br />

só agora tivesse dado conta de tudo, foi para eles uma quase revelação. Viver, morrer.<br />

Sob as cinzas da sua banalidade, havia o lume da surpresa. Como ofuscava a simples<br />

observação de que dali a 20 anos muitos deles estariam decerto mortos! E 20 anos, para<br />

se saber o que eram, deveriam, naturalmente, contar-se para trás: há 20 anos fora ontem...<br />

Como era extraordinário pensar que havia uma realidade íntima para cada um deles,<br />

essa presença de si a si próprios, presença iluminada, irredutível, presença misteriosa<br />

e absoluta; e que esse todo, essa pessoa, seria em breve o nada impensável! E de tal<br />

modo isto era novo, se recuperava em evidência, que houve a princípio, em quase todos,<br />

uma certa emoção silenciosa. (CF, p. 44, itálicos da citação).<br />

Já nitidamente se está aqui em face do tema de Aparição, o romance que a Cântico<br />

final se seguiria e que vinha sendo gerado, em gestação lenta, pelo menos desde Mudança,<br />

como natural conseqüência do pensar e do sentir do escritor. O alarme desse sentido trágivida<br />

é recorrente. Mário o sofre em plenitude e em co da finitude da<br />

angústia:<br />

Olhou as suas mãos: sim, também ele ia morrer. [...]. E uma súbita angústia estrangu-<br />

decerto: era a instantânea evidência do absurdo de morrer. Presen-<br />

lou-o. Não era medo,<br />

ça fulminante de uma surdez profunda, aflição de um muro negro... Que os outros morressem,<br />

sim, entendia-se. Mas como podia ele morrer, acabar essa presença de si a si<br />

próprio, a consciência única, iluminada, de que havia estrelas e searas verdes? Tudo para<br />

quê? Ah, como agora o sentia bem, não no cérebro, não numa idéia, mas numa brutal<br />

torção de vísceras, num compacto negrume dos sentidos, num instantâneo pedregulho a<br />

preenchê-lo todo. Como era incrível a morte – e como sabia que iria morrer dentro em<br />

pouco. (CF, p. 88-89, itálicos da citação).<br />

É muito intensa, a carga poética que o escritor consegue imprimir à palavra aparição,<br />

e pela sua recorrência, sem dúvida, num plano textual que ultrapassa os limites do<br />

meramente estilístico, o vocábulo contribui decisivamente para estabelecer o tom da escri-

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