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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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para se saber que então todas as palavras são vãs. Sei que a vida só é vida, porque há morte,<br />

sei que esse fim brutal põe em causa toda a bela ilusão do mais.” (AN, p. 121 – itálicos<br />

da citação). A impregnação da morte na existência, que leva Adriano a afirmar em desespero<br />

“– Trago a morte em mim como uma doença. Tudo morre à minha volta. Trago a peste<br />

comigo...” (ibid., p. 175) e ainda, desoladamente, “levanto os olhos e não vejo senão<br />

morte” (p. 208), manifesta o mesmo trágico sentir existencial que cercará de uma aura<br />

sombria a figura de Alberto Soares em Aparição. Inserir a morte na vida. Aceitar com a<br />

paz da resignação a nítida fulguração da finitude da existência. Este é o problema de Alberto,<br />

como igualmente o seria de Mário, de Cipriano e de outras personagens de Cântico final<br />

3 , e como já o fora, também, de Adriano e de Carlos Bruno, embora este, tentando<br />

vencer a lassidão que ameaça prostrá-lo, recuse a resignação e a paz quando o meio-irmão<br />

o aconselha a fazer de cada dia seu a história do mundo: “Sim. Mas fazê-la é fazê-la contra<br />

a morte, contra a certeza de que o tempo tem império sobre mim.” (M, p. 141, itálicos da<br />

citação).<br />

Impressiona a ocorrência do vocábulo aparição ao longo de Cântico final. Aqui, a<br />

sua dimensão é predominantemente conotativa. A palavra aparece sempre carregada de<br />

sentido simbólico ou mesmo fenomenológico e é também particularmente utilizada em<br />

situações de intensa dramaticidade ou emotividade. Ela surge logo ao início do livro, num<br />

instante de recolhimento e expectação de Mário: “Talvez ela viesse, a boa Arte, ali, ao<br />

mundo original da sua aparição. (E ela vinha, por vezes, nas noites ferozes de inverno, nas<br />

gigantescas manhãs de verão.)” (CF, p. 12). O mundo original da aparição da arte a Mário<br />

era a aldeia natal do pintor, na montanha, numa situação de comunhão cósmica. É muito<br />

vasta a carga simbólica da palavra aparição, e até que se restrinja a um conceito<br />

fenomenológico que admitirá sempre uma ampliação de sentido pelo poético, vai<br />

assumindo, no texto vergiliano, variadas acepções. São muito numerosos os exemplos da<br />

diversidade semântica do vocábulo a depender do contexto da sua utilização e seria<br />

exaustivo – e talvez dispensável – tentar exauri-los. Mas logo a seguir à transcrição<br />

anterior, já encontramos a palavra com outra significação: “quando [Mário] regressou a<br />

casa [após o sepultamento da mãe], a mãe enchia ainda todas as salas da sua presença,<br />

desse todo real, íntimo, irredutível, que sobra ainda de um corpo quando o corpo se<br />

3 Relembre-se, em CF, o breve solilóquio do cirurgião Cipriano, logo após a cirurgia feita num amigo gravemente<br />

ferido num acidente de carro, de que lhe sobreveio a morte: “Recuperar a vida com a morte no<br />

meio. Acreditar, embora se saiba que se acredita no nada. Tão difícil. E tão raivosamente necessário.” (p.<br />

124). Alberto Soares dirá em Aparição: “Ajustar a vida à morte. Achar e ver a harmonia de ambas. Mas<br />

achá-la depois de sabermos bem o que é uma e outra, depois de nos encandearmos na sua iluminação.”<br />

(FERREIRA,Vergílio. Aparição. 7. ed. Lisboa: Portugália, 1971, p. 71, itálicos do texto citado).<br />

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