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suas ficções – figuras que são verdadeiramente expressionistas, algo como que de um simbolismo<br />
ou surrealismo muito cruel e que se poderia aproximar de determinados pintores,<br />
por exemplo Edvard Munch ou a pintora portuguesa contemporânea Paula Rego –, por<br />
alguns episódios inquestionavelmente relacionáveis com a pintura, como por exemplo o do<br />
sonho de Mário, que repete o tema da reportagem “sobre fuzilados de uma revolução num<br />
país distante” que ele lera numa revista, e em que se vê condenado à morte, sem saber porquê,<br />
e, juntamente com vários desconhecidos, postado diante de um pelotão de fuzilamento<br />
e efetivamente fuzilado e morto. “Como um quadro de Goya” – dizia a reportagem. Obviamente<br />
o quadro é o famoso Fuzilamentos, que se percebe também presente na cena do<br />
sonho de Mário 29 .<br />
Um romance sobre o Absoluto que se encontra pelo caminho da Arte, mas também<br />
um romance sobre a vida e sobre a morte – como de resto o é toda a obra romanesca de<br />
Vergílio Ferreira. Porque em face da morte é necessário justificar a existência dando-lhe<br />
um sentido. Essa justificativa, erguida como cântico final de uma vida – qualquer vida –<br />
poderia ser a arte de Mário e dos grandes pintores de sempre; um breve, fugaz mas fulgurante<br />
passo de dança de Elsa – a destruição do peso do seu corpo efêmero –; o filho, continuador<br />
da vida e da arte do pai; a literatura de Guida – que o autor do romance lhe inventa<br />
– tanto quanto as grandes obras literárias dos escritores que fazem a história da literatura.<br />
O cântico final será a última dança de Elsa, a capela de Mário, o seu filho com Cidália ou a<br />
música das esferas, da comunhão plena do homem com o cosmos, memória de sinos da<br />
infância e de coros intemporais sugestivos de um “instante infinito de uma fugaz harmonia,<br />
sobre a imperceptível certeza de que tudo estava bem” (CF, p. 240), coros cuja lembrança<br />
Mário desejou ainda que se erguesse, porque<br />
No jardim em frente as duas velhas roseiras do Japão traçam um breve esquema de espectros, o muro<br />
à roda recobre-se de um estofo de alvura, um monte ao fundo ergue contra o céu a sua mudez<br />
branca de espaço (p. 238). Imaginava a capela que dali não podia ver, imaginava-a vestida de neve,<br />
pequena e solitária entre o vasto augúrio do silêncio [...] (p. 239).<br />
É uma cena de certa constância nos romances de V. F., e na sua essência já pôde ser vista nas páginas finais<br />
de Mudança, em algumas passagens de Manhã submersa e voltará com uma expressividade quase obsessiva<br />
em Para sempre.<br />
29 Neste sonho Mário percebe toda a tramitação da morte, desde o alinhamento dos condenados e do pelotão<br />
de fuzilamento, últimas palavras trocadas com um desconhecido, presença de uma multidão de espectadores,<br />
a ordem de preparar e apontar, o “rumor metálico das espingardas”, a ordem de atirar e as balas que lhe<br />
estalaram “no peito, nos dentes, no crânio, um ataque brutal a todo o corpo de uma massa de murros, e nos<br />
olhos uma cor vítrea e amarga partir-se em arestas vivas, como fragmentos de raios.” (p. 91). E, estranhamente,<br />
via-se depois morto, “debruçava-se sobre si, sobre os outros condenados, como os homens fardados<br />
que lhes tiravam as algemas.” (p. 92).