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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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suas ficções – figuras que são verdadeiramente expressionistas, algo como que de um simbolismo<br />

ou surrealismo muito cruel e que se poderia aproximar de determinados pintores,<br />

por exemplo Edvard Munch ou a pintora portuguesa contemporânea Paula Rego –, por<br />

alguns episódios inquestionavelmente relacionáveis com a pintura, como por exemplo o do<br />

sonho de Mário, que repete o tema da reportagem “sobre fuzilados de uma revolução num<br />

país distante” que ele lera numa revista, e em que se vê condenado à morte, sem saber porquê,<br />

e, juntamente com vários desconhecidos, postado diante de um pelotão de fuzilamento<br />

e efetivamente fuzilado e morto. “Como um quadro de Goya” – dizia a reportagem. Obviamente<br />

o quadro é o famoso Fuzilamentos, que se percebe também presente na cena do<br />

sonho de Mário 29 .<br />

Um romance sobre o Absoluto que se encontra pelo caminho da Arte, mas também<br />

um romance sobre a vida e sobre a morte – como de resto o é toda a obra romanesca de<br />

Vergílio Ferreira. Porque em face da morte é necessário justificar a existência dando-lhe<br />

um sentido. Essa justificativa, erguida como cântico final de uma vida – qualquer vida –<br />

poderia ser a arte de Mário e dos grandes pintores de sempre; um breve, fugaz mas fulgurante<br />

passo de dança de Elsa – a destruição do peso do seu corpo efêmero –; o filho, continuador<br />

da vida e da arte do pai; a literatura de Guida – que o autor do romance lhe inventa<br />

– tanto quanto as grandes obras literárias dos escritores que fazem a história da literatura.<br />

O cântico final será a última dança de Elsa, a capela de Mário, o seu filho com Cidália ou a<br />

música das esferas, da comunhão plena do homem com o cosmos, memória de sinos da<br />

infância e de coros intemporais sugestivos de um “instante infinito de uma fugaz harmonia,<br />

sobre a imperceptível certeza de que tudo estava bem” (CF, p. 240), coros cuja lembrança<br />

Mário desejou ainda que se erguesse, porque<br />

No jardim em frente as duas velhas roseiras do Japão traçam um breve esquema de espectros, o muro<br />

à roda recobre-se de um estofo de alvura, um monte ao fundo ergue contra o céu a sua mudez<br />

branca de espaço (p. 238). Imaginava a capela que dali não podia ver, imaginava-a vestida de neve,<br />

pequena e solitária entre o vasto augúrio do silêncio [...] (p. 239).<br />

É uma cena de certa constância nos romances de V. F., e na sua essência já pôde ser vista nas páginas finais<br />

de Mudança, em algumas passagens de Manhã submersa e voltará com uma expressividade quase obsessiva<br />

em Para sempre.<br />

29 Neste sonho Mário percebe toda a tramitação da morte, desde o alinhamento dos condenados e do pelotão<br />

de fuzilamento, últimas palavras trocadas com um desconhecido, presença de uma multidão de espectadores,<br />

a ordem de preparar e apontar, o “rumor metálico das espingardas”, a ordem de atirar e as balas que lhe<br />

estalaram “no peito, nos dentes, no crânio, um ataque brutal a todo o corpo de uma massa de murros, e nos<br />

olhos uma cor vítrea e amarga partir-se em arestas vivas, como fragmentos de raios.” (p. 91). E, estranhamente,<br />

via-se depois morto, “debruçava-se sobre si, sobre os outros condenados, como os homens fardados<br />

que lhes tiravam as algemas.” (p. 92).

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