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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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gradas do silêncio das velhas florestas nórdicas.” (p. 163, 162). O episódio da praia é ainda<br />

mais simbolicamente significativo, e por sua beleza poética justifica transcrição, ainda que<br />

longa. Logo à primeira noite, passada numa casa de pescadores,<br />

Elsa rejubilou com aquele silêncio, [...]. Rejubilou sobretudo quando [...] a lua nasceu,<br />

grande, sangrenta – lua de agosto, suada de cansaço. Via-a subir, espectral, raiada de silêncio;<br />

e um gosto quente, intrínseco, de sofrer dissolvia-a venenosamente. [...]. A terra<br />

inteira renascia sob as formas das origens. Elsa, em pé, olhava, aspirava profundamente<br />

esse aroma a infinitude que se ergue sempre do mar. E fremente, escutava o rumor espacial<br />

da iniciação, escutava o profundo renascer da flor original da sua carne...<br />

Então, irreprimivelmente, despiu-se. Mas fê-lo lentamente, como quem se despoja.<br />

Em pé, nua e hirta, voltada para a lua, Mário olhava-a aturdido de prazer, [...] Depois<br />

uma breve aragem ergueu-a suspensa como um astro, foi-a impelindo num giro de órbitas<br />

celestes, trouxe-a de novo à terra, levava-a de novo, fluorescente. Elsa, nua, dançava.<br />

Estarrecido, Mário via-a rodopiar à sua frente, emergir de longe, passar num sopro como<br />

um vapor de augúrio, na plácida harmonia do silêncio e do mar. Vinha de longe, sobre<br />

ela, o ritmo da velha Hélade, das portadoras de ânforas, da graça das Panateneias.<br />

Dançava como dança a vida efêmera e perene. Depois os seus movimentos endureceram.<br />

Dava os seios à lua, inclinava a cabeça para trás como uma bacante. Até que, no<br />

termo de um rodopio, mergulhou nas águas e desapareceu. Mário ergueu-se de salto,<br />

viu-a enfim reaparecer ao longe. (CF, p. 155-156).<br />

Sem dar resposta aos chamados de Mário, Elsa nadava “sempre no rastro do luar,<br />

como se caminhasse pela estrada de uma iniciação. Mário despiu-se, mergulhou também,<br />

foi enfim alcançá-la em pleno mar.” (p. 156). Nadando de costas, com os rostos voltados<br />

para a lua, dá-se então, entre o pintor e a bailarina, um intenso e tenso diálogo, sobre um<br />

Deus que estava morto, os deuses e o corpo, a arte, a memória e o amor. Diálogo em que<br />

Elsa reafirma o corpo como única certeza possível – “profundamente, ardentemente, só<br />

acredito no meu corpo”, porque “os próprios deuses, quando viviam [argumenta], só conheciam<br />

bem a linguagem do sangue.” (p. 156-157). O discurso de Elsa fala à consciência<br />

de Mário, que “sabia bem que era esse um dos últimos refúgios dos deuses mortos: o corpo.”<br />

(p. 157).<br />

O corpo era, portanto, também um “lugar” do absoluto. Elsa o sabia, como Mário o<br />

sabia com relação à arte – a pintura, a literatura, a música, mesmo a dança... – a um filho,<br />

ou à harmonia do cosmos. Vergílio Ferreira, provavelmente na esteira de Malraux, o com-

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