21.05.2014 Views

JOS RODRIGUES DE PAIVA

JOS RODRIGUES DE PAIVA

JOS RODRIGUES DE PAIVA

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

81<br />

– Esquece, esquece. Se puderes. Profundamente, absolutamente, até ao absurdo.<br />

Nada se passa na vida de importante, meu Mário. Exceto a taça que se bebe e que se<br />

quebra. Volto ao ballet, meu amigo. Sim, para o ballet do Maliuk. Regressarei em março<br />

com as luas verdes, os ventos sibilinos... Ou em junho, com as manhãs solenes. Irei<br />

então ver-te como se nunca te tivesse conhecido. Estará pronto o meu retrato, não é verdade?<br />

E tu irás ver-me dançar. E eu dançarei desde o palco, talvez só para ti, talvez melhor<br />

que nunca. Tão bem talvez como a primeira flor que apareceu um dia pela manhã<br />

ao vento, sobre a terra ainda sem homens... (CF, p. 70).<br />

Elsa “nasceu para passar”, diz Guida a Mário em certa ocasião em que o pintor lhe<br />

pediu notícias da bailarina. Elsa aparece e desaparece repentinamente e sem aviso, nos dias<br />

de Mário. E até à definitiva desaparição concedeu-lhe alguns instantes da mais intensa plenitude<br />

existencial. É em Elsa que Mário, enquanto homem, se realiza virilmente. Realização<br />

plena, intensa, beirando o absoluto que Mário busca sem saber exatamente se o encontrará<br />

no erotismo, no filho que deseja ter (mas que Elsa, indignada com a proposta, violentamente<br />

se recusa a dar-lhe) ou na realização artística. Elsa passa a ser essencial à existência<br />

de Mário. Ao seu equilíbrio. À sua criação. Por isso anseia pela sua volta, por isso pergunta<br />

por ela a Guida, por isso o acabrunha a resposta da meia-irmã da bailarina:<br />

– Que procura você nela, Mário? Ela não tem escrito a ninguém. Ela não tem nada<br />

para dar, não há nada nela que fique, nasceu para passar. Como este vento da tarde...<br />

(CF, p. 105).<br />

Pertencem às relações de Mário com Elsa alguns dos momentos mais belos e mais<br />

intensos e significativos do romance. Como o recolhimento do casal por alguns dias na<br />

Serra de Sintra, último encontro do pintor com a bailarina, de onde ela fugiu, certa noite,<br />

depois de ter ouvido de Mário, mais uma vez, a proposta de uma vida a dois, estável, de<br />

acordo com as normas: o trabalho, uma casa, um filho... “Elsa ouviu-o e sorriu de pena, –<br />

de pena que estava já acima da ira por aquela traição.” (CF, p. 164). Ou os dias de férias,<br />

plenos de realização amorosa, fruídos pelos dois, numa casa de praia, em frente ao mar,<br />

perto de Sesimbra. Quer neste episódio, quer no de Sintra, impõe-se o apelo de paganismo<br />

que ressuma de Elsa e que ainda mais acende o fascínio de um Mário já fascinado pelo<br />

mistério da mulher. Em Sintra, Elsa, apenas sumariamente vestida, passeava à noite, sozinha<br />

e até à madrugada, pelo “ermo do bosque”, “através das grandes árvores imóveis, sa-

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!