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– Esquece, esquece. Se puderes. Profundamente, absolutamente, até ao absurdo.<br />
Nada se passa na vida de importante, meu Mário. Exceto a taça que se bebe e que se<br />
quebra. Volto ao ballet, meu amigo. Sim, para o ballet do Maliuk. Regressarei em março<br />
com as luas verdes, os ventos sibilinos... Ou em junho, com as manhãs solenes. Irei<br />
então ver-te como se nunca te tivesse conhecido. Estará pronto o meu retrato, não é verdade?<br />
E tu irás ver-me dançar. E eu dançarei desde o palco, talvez só para ti, talvez melhor<br />
que nunca. Tão bem talvez como a primeira flor que apareceu um dia pela manhã<br />
ao vento, sobre a terra ainda sem homens... (CF, p. 70).<br />
Elsa “nasceu para passar”, diz Guida a Mário em certa ocasião em que o pintor lhe<br />
pediu notícias da bailarina. Elsa aparece e desaparece repentinamente e sem aviso, nos dias<br />
de Mário. E até à definitiva desaparição concedeu-lhe alguns instantes da mais intensa plenitude<br />
existencial. É em Elsa que Mário, enquanto homem, se realiza virilmente. Realização<br />
plena, intensa, beirando o absoluto que Mário busca sem saber exatamente se o encontrará<br />
no erotismo, no filho que deseja ter (mas que Elsa, indignada com a proposta, violentamente<br />
se recusa a dar-lhe) ou na realização artística. Elsa passa a ser essencial à existência<br />
de Mário. Ao seu equilíbrio. À sua criação. Por isso anseia pela sua volta, por isso pergunta<br />
por ela a Guida, por isso o acabrunha a resposta da meia-irmã da bailarina:<br />
– Que procura você nela, Mário? Ela não tem escrito a ninguém. Ela não tem nada<br />
para dar, não há nada nela que fique, nasceu para passar. Como este vento da tarde...<br />
(CF, p. 105).<br />
Pertencem às relações de Mário com Elsa alguns dos momentos mais belos e mais<br />
intensos e significativos do romance. Como o recolhimento do casal por alguns dias na<br />
Serra de Sintra, último encontro do pintor com a bailarina, de onde ela fugiu, certa noite,<br />
depois de ter ouvido de Mário, mais uma vez, a proposta de uma vida a dois, estável, de<br />
acordo com as normas: o trabalho, uma casa, um filho... “Elsa ouviu-o e sorriu de pena, –<br />
de pena que estava já acima da ira por aquela traição.” (CF, p. 164). Ou os dias de férias,<br />
plenos de realização amorosa, fruídos pelos dois, numa casa de praia, em frente ao mar,<br />
perto de Sesimbra. Quer neste episódio, quer no de Sintra, impõe-se o apelo de paganismo<br />
que ressuma de Elsa e que ainda mais acende o fascínio de um Mário já fascinado pelo<br />
mistério da mulher. Em Sintra, Elsa, apenas sumariamente vestida, passeava à noite, sozinha<br />
e até à madrugada, pelo “ermo do bosque”, “através das grandes árvores imóveis, sa-