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Poderia ele imaginar [indagava Elsa a Mário] como era exaltante construir a beleza<br />
com aquela coisa frágil que era um corpo? Trabalhar meses para conseguir, num<br />
instante, um clarão de eternidade, antes que aquele bocado de carne apodrecesse?<br />
– Viver o milagre no exato momento em que danço e que passa, e que esquece.<br />
Esgotar o instante, como esgoto as sapatilhas de ballet num espetáculo. Não deixar rastro.<br />
Sim, o ballet é uma arte de hoje. Porquê de hoje? Porquê? Jamais soubemos como<br />
agora que nascemos para passar. [...] só a dança é o puro movimento. Vocês, os das artes,<br />
das letras, ainda acreditam no futuro. Trabalham com palavras, com as cores que os<br />
outros hão-de um dia recuperar. Eu salvo-me ou condeno-me só comigo. Jogo tudo nesta<br />
coisa que há-de apodrecer amanhã. Creio com toda a minha ira no breve instante.<br />
Mas como é fascinante pensar que nada vai restar de mim, que eu própria e o meu público<br />
acidental esgotamos totalmente a minha arte! Não: o cinema não prolonga esse<br />
instante, porque um corpo é inimitável. De resto, jamais consentirei em ser filmada!<br />
Como explicar que o prazer é bem mais nosso e profundo e único, se... O sabor de um<br />
vinho é outro se quebrarmos a taça. (CF, p. 65, itálicos da citação).<br />
Essa vivência do instante que tanto fascina Elsa, é por ela cultivada na arte tanto<br />
quanto no amor. Para Elsa, amar não pode ser um acontecimento ou um projeto para sempre,<br />
algo estável, para uma vida. “Só é belo e vivo o que fulge e vibra e passa. Tudo o que<br />
fica é das pedras e da morte” (CF, p. 68), diz ela a Mário, logo após a concretização da<br />
primeira relação erótica. Mário estava fascinado, arrasado ainda pelo impacto, pela emoção<br />
amorosa, pela excessiva plenitude do encontro e pela violência que houvera nele e que lhe<br />
fazia doer todo o corpo. “– Tudo tão de mais, tudo tão de mais...” (p. 66 – itálicos da citação).<br />
Sentia “o triunfo sobre a vida, sobre a terra – triunfo quente, profundo como um urro.<br />
E sentia em Elsa o eco feliz do seu apelo, na resposta aberta e fremente à invasão da vida,<br />
na igual procura hiante dos astros inacessíveis. Enfim a noite absoluta e outra vez o mistério<br />
do amanhecer.” (p. 67). E Elsa parecia aceitar, acolher, corresponder a toda a emoção<br />
de Mário...<br />
Ela ouvia, silenciosa, recolhia tudo em si como num mistério bíblico de sagração.<br />
E sorria para a tarde que florescia lá fora, sorria para si, para a grande paz que a<br />
vestia da cabeça até aos pés, como uns cabelos longos sobre um corpo virgem e nu... (Ibid.).<br />
Mas logo a seguir, essa aceitação ou acolhimento se desfaz ao apelo de Mário: “– Elsa!<br />
Que vou fazer disto que me visitou? E ficou?” (CF, p. 69).