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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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76<br />

das jarras, buliam espectrais num silêncio de estalactites. Uma vida intensa despertava<br />

devagar , como um rolo de cobras, no fundo túrbido de uma água verde. Lendo os seus<br />

contos, sentia-se um mergulhar surdo de grutas onde quaisquer pequenos objetos boiavam<br />

inteiros à superfície do silêncio coagulado, – objetos vulgares, mortos à luz do sol,<br />

ao trato mecânico e diário, agora ali redescobertos na sua virulência original. Mundo de<br />

coisas indistintas, das breves vozes profundas, das vozes que os raros ouvem.” (CF, p.<br />

72).<br />

Claro que nesta descrição do universo representado nos contos de Guida se podem<br />

notar evidentes referências ao modo de representação do mundo caracterizado pelo nouveau<br />

roman: a coisificação, a substituição do humano pela materialidade de objetos que adquirem<br />

dimensão fantástica, certa crueldade implícita nessa ausência de humanidade, nesse<br />

“mundo de coisas indistintas” que também faz pensar numa “pintura expressionista” e no<br />

fantasmático, no horror e no pânico que pode estar nela. Este estranho e angustiantemente<br />

opressor universo de Guida vai ampliar-se em angústia e estranhamento em outros livros<br />

seus. Um deles tinha por epígrafe o verso de Antero “Assentado entre as formas incompletas”<br />

e representava um mundo de imperfeição, de cegueira e de “desencontro das forças da<br />

vida.”<br />

Agora as personagens dos seus contos eram figuras humanas, mas todas elas mutiladas<br />

ou antes pertencentes a um mundo da mutilação. Havia homens sem cabeça cuja voz<br />

provinha do tórax, do ventre, e que falavam sozinhos, interminavelmente, em ruas e<br />

praças desertas. Havia uma história de um orador sem braços, imóvel, sem gestos nem<br />

palavras, só aos gritos, diante de um auditório sem cabeças. Numa outra, as personagens<br />

sem pernas assentes sobre o ventre, deslizavam por uma cidade espectral, entrando e saindo<br />

pelos buracos vazios das portas e janelas, passando umas pelas outras sem trocarem<br />

palavra, hirtas nos seus troncos, como os bonecos de certos relógios de torre, ou<br />

como se um vento imperceptível as impelisse e fizesse deslizar. (CF, p. 74, itálicos da<br />

citação).<br />

É de uma crueldade mórbida, a representação deste mundo de mutilados. Ele revela,<br />

antecipadamente, um certo fascínio de Vergílio Ferreira por esse estranho mundo de<br />

“formas incompletas”, fascínio que só em romances futuros se vai confirmar e intensificar,<br />

relacionando cada vez mais o autor com uma representação expressionista do mundo, e<br />

nela, a valorização do “feio” e do “grotesco”. Em certas páginas futuras do seu diário, Vergílio<br />

Ferreira freqüentemente falará sobre um “romance do feio”, referindo-se ao livro que

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