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das jarras, buliam espectrais num silêncio de estalactites. Uma vida intensa despertava<br />
devagar , como um rolo de cobras, no fundo túrbido de uma água verde. Lendo os seus<br />
contos, sentia-se um mergulhar surdo de grutas onde quaisquer pequenos objetos boiavam<br />
inteiros à superfície do silêncio coagulado, – objetos vulgares, mortos à luz do sol,<br />
ao trato mecânico e diário, agora ali redescobertos na sua virulência original. Mundo de<br />
coisas indistintas, das breves vozes profundas, das vozes que os raros ouvem.” (CF, p.<br />
72).<br />
Claro que nesta descrição do universo representado nos contos de Guida se podem<br />
notar evidentes referências ao modo de representação do mundo caracterizado pelo nouveau<br />
roman: a coisificação, a substituição do humano pela materialidade de objetos que adquirem<br />
dimensão fantástica, certa crueldade implícita nessa ausência de humanidade, nesse<br />
“mundo de coisas indistintas” que também faz pensar numa “pintura expressionista” e no<br />
fantasmático, no horror e no pânico que pode estar nela. Este estranho e angustiantemente<br />
opressor universo de Guida vai ampliar-se em angústia e estranhamento em outros livros<br />
seus. Um deles tinha por epígrafe o verso de Antero “Assentado entre as formas incompletas”<br />
e representava um mundo de imperfeição, de cegueira e de “desencontro das forças da<br />
vida.”<br />
Agora as personagens dos seus contos eram figuras humanas, mas todas elas mutiladas<br />
ou antes pertencentes a um mundo da mutilação. Havia homens sem cabeça cuja voz<br />
provinha do tórax, do ventre, e que falavam sozinhos, interminavelmente, em ruas e<br />
praças desertas. Havia uma história de um orador sem braços, imóvel, sem gestos nem<br />
palavras, só aos gritos, diante de um auditório sem cabeças. Numa outra, as personagens<br />
sem pernas assentes sobre o ventre, deslizavam por uma cidade espectral, entrando e saindo<br />
pelos buracos vazios das portas e janelas, passando umas pelas outras sem trocarem<br />
palavra, hirtas nos seus troncos, como os bonecos de certos relógios de torre, ou<br />
como se um vento imperceptível as impelisse e fizesse deslizar. (CF, p. 74, itálicos da<br />
citação).<br />
É de uma crueldade mórbida, a representação deste mundo de mutilados. Ele revela,<br />
antecipadamente, um certo fascínio de Vergílio Ferreira por esse estranho mundo de<br />
“formas incompletas”, fascínio que só em romances futuros se vai confirmar e intensificar,<br />
relacionando cada vez mais o autor com uma representação expressionista do mundo, e<br />
nela, a valorização do “feio” e do “grotesco”. Em certas páginas futuras do seu diário, Vergílio<br />
Ferreira freqüentemente falará sobre um “romance do feio”, referindo-se ao livro que