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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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75<br />

renascer, da fertilidade... E é isso e talvez mais que o galo representa. Por isso Mário o<br />

oferece a Guida (Margarida) quando se sabe definitivamente próximo da morte. Oferece-o<br />

a Guida porque sabe da sua noite existencial. Com a perda do filho, com a ruptura do casamento,<br />

cada vez mais enclausurada num mundo caquético e mutilado que os seus livros<br />

representam com tanta violência. Guida já havia pedido a Mário que lhe emprestasse o seu<br />

galo. Sabendo-se perto da morte, ele lho dá, desejando transmitir-lhe a esperança de um<br />

novo amanhecer, a alegria de um canto que não fosse ainda o final, a hipótese de um novo<br />

filho numa nova vida. E é num momento de profunda solidão, rompido o casamento de<br />

Guida com Rebelo, que o significado do galo se revela a este, no instante de intensa fulguração<br />

em que ele se depara com o quadro ao entrar na sala de trabalho da ex-mulher, que se<br />

fora embora “por já nada mais terem a dizer um ao outro” depois da morte do filho.<br />

[...] eis que, [...], se lhe estampou na frente o grande quadro de Mário – o Galo. Sabia<br />

que fora emprestado a Guida, vira-o algumas vezes, vira-o ao entrar, mas só agora o reconhecia.<br />

E sentiu-se fascinado, por que voz antiga, jamais decifrada, por que sinal o-<br />

culto de misteriosa plenitude? [...]. E era ali, no meio da sombra, e do alarme, e da ruína,<br />

que ele ouvia pela primeira vez o cântico de um triunfo absoluto, de uma alegria anterior<br />

a toda a conquista e sonho da vida, sinal vibrante da harmonia e da unção invencível<br />

arauto de uma madrugada eterna. Sobre as patas violentas de precisão e domínio,<br />

sobre as massas de um corpo de pedra e de cimento, erguia-se o grito raivoso do bico<br />

alçado, de uma fúria vermelha de cristas desgarradas, como a glória e o desafio que não<br />

morrera e emergia de dentro de todas as noites do mundo. E era assim uma alegria solitária<br />

e triste como de tudo talvez o que é grande na vida. (CF, p. 200, itálicos da citação).<br />

No elenco das personagens do romance, Guida é provavelmente a que mais se identifica<br />

com Mário, a que mais próximo fala ao seu espírito, a que comunga do seu sentimento<br />

da existência, da angústia que há entre viver e morrer, entre a criação e o deserto da esterilidade.<br />

Guida é escritora, autora de contos e romances que também evidenciam os grandes<br />

questionamentos da Vida e da Arte e demonstram um processo de complexificação no<br />

fazer artístico que conduz a um grau de abstração ou alegorização cada vez mais intenso. É<br />

evidente que as suas narrativas são representações da sua visão de mundo:<br />

Contos fantásticos, sufocantes, em que não havia personagens, mas objetos que se animavam<br />

dentro de um fluido inicial e viscoso. Cadeiras, pontas de cigarro, folhas secas

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