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Cântico final retoma a questão estético-ideológica da função da arte e das relações<br />
da Arte com a História e com o social e o político, mas agora numa outra perspectiva –<br />
decerto mais ampla e mais importante do que a perspectiva inicial, a de Apelo da noite – e<br />
com outra intenção: a partir da discussão travada entre os grupos antagônicos dos artistas<br />
progressistas e dos artistas esteticistas, tratada no romance com evidente ironia, o que no<br />
substrato estético-ideológico do livro se insinua e desenvolve com grande interesse é o<br />
processo de evolução/transformação da própria Arte, particularmente na pintura e na literatura<br />
narrativa, em que se fez o caminho do figurativo para o abstrato, do real para o simbólico.<br />
Na demonstração desse processo transformacional da arte, representada nas expressões<br />
pictórica e literária, importa, no romance, considerar, por exemplo, o quadro de Armando<br />
(pintor frustrado e angustiado com a sua frustração e por ter de ganhar a vida como<br />
burocrata de uma repartição qualquer, dedicando à arte apenas as horas livres) intitulado<br />
carro de mão, representando um trabalhador da construção civil, um pedreiro. Realizado a<br />
partir de um modelo vivo observado pelo artista no seu trabalho cotidiano, o “retrato” do<br />
trabalhador não parece de todo mau ao retratado, mas causou-lhe estranheza, quando o viu,<br />
porque, apesar de bem feito, “a roda do carro não tinha raios. Era toda maciça.” E ele “não<br />
estava descalço.” (CF, p. 104). A visão do trabalhador retratado é a visão ingênua dos que<br />
desejam da pintura a fidelidade da fotografia captando a realidade exterior nos seus detalhes<br />
e não a compreendem como expressão da subjetividade do artista, do seu mundo interior,<br />
um “certo modo de ver”, ainda que o ponto de partida tenha sido algo “claramente<br />
visto”, lentamente observado e interiorizado e processado até à sua “devolução” sob a natureza<br />
da arte. Armando é um pintor figurativo que já havia evoluído para um figurativismo<br />
não naturalista. Por isso permitira-se “recriar” o trabalhador: para fugir ao “populismo”<br />
que se lhe insinuava “num certo tom de piedade, na debilidade do velho”, reagiu – “braços<br />
encordoados, face brusca, uma mecha de cabelos brancos atirada ao vento...” (CF, p. 100).<br />
Mas a visão do “retratado” alcançou apenas a diferença vista na roda do carro de mão e nos<br />
seus pés descalços.<br />
Situação idêntica é a que se tem com relação ao quadro de Mário intitulado o galo,<br />
exibido na mesma Exposição Geral das Artes Plásticas em que se via o de Armando. “Mário<br />
observava de longe. Diante do seu galo enorme, breves grupos, breves risos (por causa<br />
de uma sugestão testicular nas massas pendentes da crista?).” (p. 101). É evidente que as<br />
pessoas desses grupos nada mais conseguem ver além da figura do galo sobre a superfície<br />
da tela e não percebem a dimensão simbólica dessa figura, a simbolização do despertar, do