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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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sozinho no grupo de que faz parte defendendo a segunda concepção artística. Defende a<br />

idéia embora acabe por se entregar à ação, num gesto sacrificial ou suicida, como um mártir<br />

se entrega em defesa de uma crença, para “sagrar de grandeza” a sua existência. Neste<br />

romance a literatura é a principal representação da arte. Adriano é escritor, romancista que<br />

se relaciona com outros escritores e com outros que o não sendo, discutem a função da<br />

literatura no campo do ativismo ideológico. Lateralmente, grupos de pintores são representados<br />

e igualmente divididos em pintores ideologicamente comprometidos com o histórico<br />

e outros que defendem essencialmente a função estética e humanista da pintura. Adriano<br />

reflete, esteticamente, sobre Cézanne, Van Gogh, Rouault, Braque... e a sua reflexão impele<br />

as personagens que o rodeiam a refletir também: “Rute dizia que ‘a arte não é para mim<br />

só um modo de estar no mundo, mas de estar para além dele, quase um modo de achar em<br />

mim o rastro dos deuses mortos’.” (AN, p. 104). Observe-se que a concepção de arte defendida<br />

por Rute (“um modo de estar no mundo”, “quase um modo de achar em mim o<br />

rastro dos deuses mortos”) ecoa ou faz ecoar o pensamento do próprio Vergílio Ferreira<br />

presente nas citações que faz do ensaio “Do mundo original” (“toda a grande arte é uma<br />

obra religiosa”; “indício de uma saudade”; “saudação de um eco da memória dos deuses<br />

mortos ao tempo da sua presença nos homens, da presença dos homens neles: é sobretudo<br />

hoje que descobrimos na arte a face do sagrado”; “memória de uma adesão de outrora”),<br />

como fará ecoar a voz emocionada de Mário em Cântico final: “[...] o seu modo de estar<br />

vivo era pintar, habitar o mundo da transfiguração, do sonho que lhe moldava os ossos, as<br />

vísceras.” (p. 11). A arte moderna redescobriu não propriamente “a ‘religião’: a face do<br />

sagrado, essa que a própria religião já não conhece. Não um aposento dos deuses: a memória<br />

da sua sombra...” (CF, p. 170). Ecos que reverberam também na memória dos diálogos<br />

que teve com amigos e artistas do seu grupo:<br />

– Todos esses pintores que decoraram capelas, fizeram-no exatamente como ilustrariam<br />

um conto de fadas.<br />

Sim. Porém Mário sabia agora que ilustrar um conto de fadas era acreditar em<br />

quê da sua saudade? Ninguém acredita num mundo de crianças: mas que é que desse<br />

mundo vence a sua dimensão, para que o adulto aí se reconheça?<br />

“Uma capela fascina” – repete-lhe Félix à memória. Não, não era a “religião”<br />

que se recuperava: era apenas a lembrança dos seus sinais de plenitude. [...] um ateu<br />

verdadeiro não poderia falar dos deuses, estabelecer com eles qualquer espécie de relação.<br />

Mário porém [...] via no ateísmo precisamente a condição de tal arte “religiosa”.<br />

Separado de uma crença que decerto conheceu, o artista podia agora olhá-la co-

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