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sente. Ou com uma memória de inocência e de sagrado que os sinos do Freixo lhe trazem:<br />
“Sinos do Freixo, memória profunda – Natal. A senhora Ana lho lembrara: – Para a novena<br />
do Menino Deus...” (CF, p. 239 – itálico do texto). Mário carregou sempre consigo<br />
essa nostalgia do sagrado, dos seus mitos, da sua mística, de um antigo mundo religioso e a<br />
consciência de que a arte é também uma forma de testemunho desse sagrado, e que se pode<br />
manifestar por diferentes linguagens. Tem razão Fernando Pernes na análise sensível que<br />
faz de Cântico final a partir da específica perspectiva da crítica de arte, mas este romance<br />
de Vergílio Ferreira é muito mais do que este seu ponto culminante da decoração da capela.<br />
E há todo um trajeto estético-existencial percorrido por Mário e pelo seu criador até se<br />
chegar a esse ponto máximo do romance.<br />
Os temas da capela como objeto de realização estética no horizonte de artistas agnósticos,<br />
a sagração da Arte ou a manifestação do sagrado nela, a divinização do humano e<br />
a correspondente humanização do divino, pertencem a um elenco de questões sobre as<br />
quais o escritor reflete permanentemente. Temas obsessivos, privilegiados ou prediletos,<br />
sendo de sempre são decerto anteriores a Cântico final e já aparecem em ensaios de Do<br />
mundo original, publicado em 1957, um ano depois do término da escritura daquele romance.<br />
Encontra-se em Do mundo original a seguinte reflexão:<br />
[...] é talvez válida a afirmação de que toda a grande arte é uma obra religiosa. A fé autêntica<br />
é um absoluto e a obra de arte gerada aí é-o particularmente também – ou mais<br />
salientemente também. [...]. Será por acaso que, sendo hoje a arte um valor por si só,<br />
mas, quando autêntica, fora dos limites do passatempo, sendo hoje a arte a última forma<br />
de o homem se reconhecer em plenitude – será por acaso que em tantos artistas a decoração<br />
de uma capela dir-se-ia uma fascinação? Sim, eu sei: as explicações imediatas são<br />
inúmeras. Mas como se nos insinua a evidência de alguma coisa mais! E entre essa “alguma<br />
coisa”, por exemplo, a certeza de que o ateísmo de alguns desses artistas é bem<br />
mais convincente do que o dos ateus dos séculos XVIII e XIX: o ateu de hoje não é antireligioso,<br />
ou seja, é um agnóstico: a anti-religião implica a religiosidade. O ateu de hoje<br />
admite a religião (ou melhor, a crença), porque se separou dela. Mas, fundamentalmente<br />
o que se nos insinua é que um irresistível sinal sagra aí uma certa identificação do absoluto<br />
da arte de hoje, fechada em si, com o da arte religiosa do passado: indício de uma<br />
saudade, apelo a uma única e irrecuperável justificação de plenitude, saudação de um<br />
eco da memória dos deuses mortos ao tempo da sua presença nos homens, da presença<br />
dos homens neles: é sobretudo hoje que descobrimos na arte a face do sagrado... (DMO,<br />
p. 238-239).