You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
69<br />
so, para depois da vida, para depois da morte. Serão, decerto, em essência, as mesmas razões<br />
que tenham levado Gaviarra (de Mudança) ao som do seu rústico cantar, a plantar<br />
mudas de castanheiros de que sabe que não vai colher os frutos. Mário não chegará a ver<br />
plenamente restaurada a sua capela que vai deixar inconclusa à espera dos vitrais mandados<br />
fazer na França. Confiará aos amigos a conclusão da obra.<br />
Em comunicação apresentada a um colóquio de homenagem a Vergílio Ferreira<br />
realizado no Porto, em 1977, o crítico de arte Fernando Pernes centra toda a problemática<br />
de Cântico final na questão da pintura da capela. Procura responder às indagações que o<br />
livro naturalmente suscita a partir da (recorrente) pergunta que põe em paralelo Matisse e<br />
Mário: “Por que pintou Matisse uma capela?”. A partir daí, vai glosando pergunta e pensamento:<br />
Posta noutros termos a pergunta podia ser esta: Quanto a sensibilidade moderna sofre a<br />
nostalgia do antigo mundo religioso?<br />
Vergílio Ferreira é um homem que tem como Camus, a consciência dum tempo de<br />
solidão. “Todos estamos sós e condenados à morte”. É um pensador que tem, como<br />
Malraux, uma consciência da arte como testemunho do sagrado. E o seu olhar da história<br />
da arte é, também e muito, comandado pela nostalgia desse sagrado.<br />
Por que pintou Matisse uma capela? Creio que Matisse o explicou. Que Vergílio<br />
Ferreira o pressente. Matisse pintou a capela por nele haver certamente aquela mesma<br />
ansiedade de que sofre o pintor protagonista do Cântico final. Mas, complementarmente,<br />
Matisse pintou a capela na fundamentada convicção de haver um encontro de linguagens<br />
entre a sua arte moderna e antigas expressões estético-religiosas. 23<br />
Efetivamente, Mário carregou sempre consigo uma consciência trágica do mundo e<br />
da vida, a consciência desse “tempo de solidão”. Nasce-se sozinho, vive-se sozinho, morrese<br />
sozinho. A narração lembra Pascal, na última cena de Mário, a da sua aproximação do<br />
fim: “Quanto tempo? Quanto tempo ainda? Morria só, estava só à hora da morte como<br />
todos os homens. Pascal: on mourra seul...” (CF, p. 238 – itálico do texto citado). Solidão<br />
absoluta, com a morte dos pais, com a morte de Deus, sem o filho que Elsa se recusou a<br />
dar-lhe. A única comunhão possível é com o cosmos, na visão derradeira da montanha coberta<br />
de neve. Ou com a arte, na restauração da capela, concluída a pintura do afresco da<br />
Senhora da Noite transfigurada na imagem nostálgica da mulher amada e para sempre au-<br />
23 Participação de Fernando Pernes. In: GODINHO, Helder (Org.). Estudos sobre Vergílio Ferreira. Lisboa:<br />
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982, p. 426-427.