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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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plificada por inúmeras passagens pontuais, como a que se segue, colhida de um diálogo<br />

(quase platônico) entre Mário e o Dr. Beirão – médico dotado de um raro perfil humanístico<br />

que lhe permite pensar a medicina e a arte, Deus e o Homem, a religião e a vida, a existência<br />

e a transcendência.<br />

[...] a Arte tivera sempre duas funções fundamentais: servir-se a si ou a um valor que a<br />

transcendia. Sim, de certo modo, a arte servira-se sempre a si; mas ignorava-o quando<br />

servia verdadeiramente uma Transcendência, e isso lhe dava uma força absoluta.<br />

Quando porém se servia conscientemente a si, havia sempre para os homens a sombra<br />

ao menos de um valor que eles separavam da arte – e a tolerava. Frente a esse valor, o<br />

da arte era apenas um acréscimo, não uma substituição; a própria amargura que exprimisse<br />

era um aceno à esperança. 22<br />

Mas o romance, embora não datado, inscreve-se no tempo da sua escritura. Um<br />

tempo histórico (a década de 50) intensamente propício à discussão ideológica e aos seus<br />

cruzamentos com a estética. Nesse aspecto o livro dará continuidade ao debate proposto<br />

por Apelo da noite e, embora a ênfase se transfira da política para a Arte, estão ainda postos<br />

em evidência certos temas e sobretudo os confrontos dialéticos que caracterizam o romance<br />

anterior e que já se podiam vislumbrar desde Mudança: referências à Guerra (“essa<br />

guerra da esperança, da ‘violência da esperança’” – CF, p. 11), revelações mais ou menos<br />

traumáticas do stalinismo, o hegeliano conflito entre o relativo e o absoluto, particularmente<br />

nos seus desdobramentos binômicos: Arte/Vida, Arte/Liberdade, a Arte/um Filho (como<br />

prolongamento da vida ou possibilidade do Absoluto), Vida/Morte, morte-natural/suicídio,<br />

Humano/Divino, Divino/Profano... De todas estas dicotomias o romance dirá, ora mais, ora<br />

menos, e sempre pela consciência ou pela emoção de Mário, e sempre tudo convergindo<br />

para definir uma concepção e destinação da Arte: o que é, para que serve, que impulso leva<br />

o homem a realizá-la. Na formulação romanesca de Cântico final estas indagações, que são<br />

recorrentes, alcançam o seu máximo momento na reflexão que faz sobre as razões que levam<br />

um pintor agnóstico (Mário) a restaurar e decorar uma capela, seguindo o mesmo e-<br />

xemplo, ou cedendo ao mesmo impulso ou à mesma fascinação que à realização de obras<br />

idênticas levou artistas como Matisse, Braque, Chagall... Que razões, sobretudo quando tal<br />

realização é um canto de cisne, o cântico final entoado à hora do fim e ali deixado suspen-<br />

22 FERREIRA, Vergílio. Cântico final. 2. ed. Lisboa: Portugália, 1966, p. 169 (itálico e destaque do texto<br />

citado).

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