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romance do escritor inglês, esmagado, como em Mudança, pelas rodas de um automóvel.<br />
Mas em Huxley, o incidente da morte do cão não provoca compaixão ou depressão no protagonista,<br />
o escritor Philip, e só lhe estimula racionais exercícios de inteligência 19 . Quanto<br />
a Pessoa, é objeto de discussão num certo momento em que Adriano, indagado sobre as<br />
razões de não gostar do poeta, responde, com uma certa indiferença que “não desgosta” de<br />
Pessoa, simplesmente não “delira com ele”, talvez por ele “não ter tido a coragem de se<br />
aborrecer da vida a sério.” (p. 98).<br />
No plano dos símbolos caracteristicamente vergilianos, Apelo da noite é um romance<br />
relativamente despojado. Trata-se de um texto ficcional essencialmente político que<br />
poderia ter provocado, por diversos aspectos, a censura ideológica salazarista. Talvez por<br />
isso o intervalo de quatro anos entre o término da sua escrita e a publicação. Mas o romance,<br />
ainda que essencialmente político, é também o romance de um pensamento (e conseqüentemente<br />
também de uma estética) em formação, ou mutação, ou transição e por isso,<br />
tudo pretende problematizar, principalmente a literatura, e a pintura, e toda a Arte, a Filosofia,<br />
a História. Daí a sua sobrecarga ensaística com as reflexões sobre a função da arte e<br />
o papel do artista na sociedade moderna. A ironia na representação dos defensores da arte<br />
progressista e dos “talentos” da pintura que nunca fizeram uma exposição e que mesmo se<br />
recusam a expor... É esse “enquadramento” e tratamento temático que levará Eduardo Lourenço<br />
a dizer que a leitura do romance “sugere fortemente o subtítulo: dos intelectuais ou<br />
da Ilusão Ideológica. Dir-se-á [continua ele]: não é milagre pois é disso mesmo que se<br />
trata ou à volta disso.” 20 . Sendo o romance da representação de um grupo de intelectuais,<br />
Apelo da noite é de algum modo o romance de uma geração, a geração portuguesa a que o<br />
mesmo Eduardo Lourenço chamou da “Utopia” 21 e por isso também, é de algum modo um<br />
romance à clef. Decerto alguns dos seus personagens tiveram modelos vivos, como reais<br />
são também os temas filosófico-ideológicos postos em debate e protagonistas desse debate<br />
ideológico considerado em dimensão mais vasta, como Malraux, Sartre, Camus, Gide, Sinclair,<br />
ou a polêmica travada entre neo-realistas e presencistas de que há referências no romance,<br />
sobretudo a Régio e Gaspar Simões. Embora não valha a pena arriscar, não seria<br />
19 V. HUXLEY, Aldous. Contraponto. São Paulo: Abril Cultural, 1971, p. 85-86 (coleção Os Imortais da<br />
Literatura Universal, v. 25). V. também, na mesma obra, à p. 187, uma típica situação vergiliana, a da<br />
“morte do cão”, o cão como “última companhia”: a Sra. Knoyle, personagem do romance, vivendo sozinha,<br />
adotara um cão, um “velho podengo”, como única companhia, mas tendo o animal adoecido de doença<br />
incurável, foi obrigada a mandar sacrificá-lo.<br />
20 LOURENÇO, Eduardo. O itinerário de Vergílio Ferreira: a propósito de Apelo da noite. Op. cit., p. 92.<br />
21 V. Vergílio Ferreira e a geração da utopia. In: LOURENÇO. Op. cit., p. 83-92.