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A parte humana é simbolizada por Adriano que assume messianicamente os homens à<br />
maneira de Cristo, morrendo mesmo para possibilitar a fuga dos outros e os (se) salvar.<br />
A sua morte prolonga-se por uma paz tão vasta como o céu e a montanha, que abrange<br />
todo o espaço e todo o tempo (“os sonhos milenários dos homens”). E, tal como Cristo,<br />
ele fala de um mundo diferente, que se gerará numa vivência liminar. 17<br />
Passa agora, então, a fazer mais sentido a paráfrase bíblica encontrada logo ao início<br />
do romance: “ao princípio era a ação” (p. 15) – paráfrase que mais tarde será modificada<br />
para ser repetida em Nítido nulo: “eu sou o Verbo” 18 – e a indagação que o pai de Adriano<br />
lhe faz: “– Que fica para a vida se perdemos a coragem?” (AN, p. 15). Também faz<br />
mais sentido a própria estrutura textual ou formal do romance, construído em dois fluxos<br />
narrativos, representando tempos e espaços diferentes, um o da ação presente, o da fuga<br />
dos prisioneiros conduzidos por Adriano para a montanha, o outro o da reflexão passada,<br />
as vivências de Adriano com o grupo ativista clandestino. Os dois fluxos narrativos, que ao<br />
final vão convergir para um único, o do presente da ação romanesca, que é também o da<br />
ação heróica de Adriano, são identificados na composição gráfica do texto por diferentes<br />
famílias tipográficas: itálico para o da ação presente, romano para o da reflexão passada.<br />
Recurso visual sinalizador dos dois diferentes planos do romance, este elemento estruturador<br />
vai repetir-se em Cântico final, e, de algum modo – embora diferentemente,<br />
também em Manhã submersa e em Aparição. Em Apelo da noite, o jogo contínuo entre os<br />
dois níveis a evocar o interseccionismo pessoano e a técnica do contraponto. Provavelmente<br />
não por acaso é Aldous Huxley um dos autores mencionado entre tantos no romance de<br />
Vergílio. Embora Apelo da noite seja sobretudo um romance malrauxiano, em Contraponto<br />
Huxley também discute Arte, política e ciência valendo-se de um grupo de personagens<br />
que representam a intelectualidade artística, política e científica e a estrutura do romance<br />
joga igualmente com diferentes planos de tempo e de espaço. Coincidência ou não, mesmo<br />
um dos símbolos obsessivos de Vergílio Ferreira, a presença do cão, também lá está no<br />
17 GODINHO, Helder. O limite em Apelo da noite. In: ______ (Org.). Estudos sobre Vergílio Ferreira.<br />
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982, p. 37. Na seqüência da interpretação dada por Godinho,<br />
importaria ainda ler o parágrafo seguinte:<br />
Assim, o limite permite que nasça uma nova qualidade. Daí que duas ideologias se interpenetrem<br />
nos seus pontos liminares, donde que o mesmo livro possa ser lido ‘de outro modo’. E a Morte, que<br />
é uma vivência profunda de fim e de intersecção, reintegra em pureza, salvando a Vida. Aqui a ambivalência<br />
do Princípio e do Fim, gerada na nova qualidade pelo Limite. (Ibidem).<br />
18 FERREIRA,Vergílio. Nítido nulo. 2. ed. Lisboa: Portugália, p. 189.