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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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60<br />

– [...]. É certo que se trata de um nódulo pequeno. Em todo o caso, provisoriamente,<br />

admitamos que é um cancro.<br />

“Um cancro” – pensou Adriano terrivelmente. Mas quando fitou o pai, encontrou<br />

nele dois olhos calmos e quase compadecidos. Tudo se reduzia a um pequeno nódulo –<br />

insistia ainda o médico. – Nenhuma razão pois para alarmes. Metástase evidente não<br />

havia. Em todo o caso...<br />

[...].<br />

“Um cancro” – pensava ainda Adriano. “Estará certa essa doença para ti, pobre velho?<br />

Que tu possas ser forte, ainda que apodrecendo. Como no teu sonho de sempre...”<br />

(AN, p. 84-85).<br />

A doença do pai vai arrastar-se lentamente, mas Adriano sabe-se cada vez mais<br />

condenado à morte – à dos outros e à própria – e portanto mais só e mais carente de objetivos<br />

que justificassem a sua breve passagem pela vida. Faz então quase um inventário das<br />

mortes à sua volta: Lídia morrera; recorda vários professores que tivera em Coimbra, mortos<br />

no decorrer do curso. Também Rodrigues, o estudante que “plantara a vida no sonho”,<br />

mas “o sonho apodrecera” [...] . Queria que o sonho durasse. Segurar o instante perdido –<br />

as gerações novas chegavam, partiam, ele ficava ainda. Uma bala suicida sagrou-o enfim<br />

jovem para sempre.” (p. 25). Também Vitor morre, e Rute, poetisa e vagamente amante de<br />

Adriano, suicida-se, repetindo o gesto de uma velha tia-avó, ou bisavó, só conhecida na<br />

imagem de uma fotografia antiga e que se matara aos vinte anos. “Levanto os olhos, não<br />

vejo senão morte” (p. 208). “– Trago a morte em mim como uma doença. Tudo morre à<br />

minha volta. Trago a peste comigo...” (p.175).<br />

Este lamento de Adriano extravasado no momento do suicídio de Rute, não só o<br />

conscientiza do tamanho da sua solidão, como de alguma forma ecoará, como um lamento<br />

trágico de todos os homens, em outros momentos da obra de Vergílio Ferreira. Ouve-se o<br />

seu eco em falas e pensamentos de Alberto Soares, em Aparição, como também nesse romance<br />

se revê o velho álbum de fotografias que fascinava Rute. E o cão de Mudança, que<br />

reaparece em Apelo levemente referido numa conversa dos fugitivos... Se se estendesse até<br />

Aparição o fio da evolução do personagem arquetípico vergiliano que nasce do Antônio<br />

Borralho de Vagão “J”, ele passaria pelo Antônio Santos Lopes de Manhã submersa, Carlos<br />

Bruno/Pedro de Mudança, Adriano Mendonça de Apelo da noite e chegaria até Alberto<br />

Soares, de Aparição. Continuará, em protagonistas de romances posteriores, mas de momento,<br />

é a estes que interessa referir.

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