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dade em que Pedro se lança na sua adesão à luta contra um governo totalitário e que só<br />
transversalmente é percebida na cena do seu aparecimento na aldeia, quase ao final do romance,<br />
é destacada em Adriano mais que em qualquer outra figura do grupo de intelectuais<br />
ativistas clandestinos do qual ele participa, em Lisboa. Adriano é um intelectual que pensa<br />
a política, a vida, a morte, a arte. Que oscila – até à tomada de decisão – entre a Idéia e a<br />
Ação, o pensamento e a prática, a inércia e o heroísmo.<br />
Mais que uma retomada dos grandes símbolos cósmicos que povoam toda a obra de<br />
Vergílio Ferreira desde Mudança e mesmo anteriormente a este romance, Apelo da noite<br />
propõe o regresso a alguns temas anteriores, a incursão por alguns novos, a proposição de<br />
problemas ainda não enfrentados. Mais do que em Mudança – e a partir do confronto Idéia/Ação<br />
–, é o conflito entre o absoluto e o relativo que, filosoficamente, ocupa o relevante<br />
lugar do tema em Apelo da noite. “Ler absoluto no relativo” – diz o próprio Vergílio Ferreira,<br />
“fórmula útil para as verdades indiferentes; para as outras é apenas uma fórmula de<br />
prudência vã. Porque, se previne de que a verdade de hoje seja o erro de amanhã, esquece<br />
que enquanto se ‘lê’ absoluto, o absoluto se não ‘lê’: é” 14 – e isto que diz é em essência a<br />
temática filosófica do romance. De fundo hegeliano, como o anunciou o próprio romancista,<br />
e, como de resto, o confirmam as antíteses que se podem listar à leitura da obra: absoluto/relativo,<br />
idéia/ação, história/transcendência, arte/política, arte/ação, vida/morte, razão/loucura,<br />
ação/destino, justiça/injustiça... São alguns dos conflitos postos em questão<br />
pelo romance, chamados constantemente ao debate pelo grupo de personagens-artistas<br />
(romancistas, poetas, pintores), professores, jornalistas, editores, ativistas culturais. O grupo,<br />
de que fazem parte Adriano Mendonça, Gabriel, Fernando Aires, Décio Ramos, Vitor,<br />
Teles, Torres, Rute, constitui, ficcionalmente, uma espécie de célula de resistência ao governo<br />
salazarista. De início é de natureza ideológico-cultural, com redação e publicação de<br />
artigos, programas, plataformas, intervenções em jornais, realização de conferências – portanto<br />
no plano do pensamento ou da idéia. Adriano acabará por se envolver na fuga de dois<br />
presos políticos de um presídio, que, sob o seu comando, são transportados para um esconderijo<br />
numa aldeia serrana da Beira Alta. O episódio da fuga e o seu desenlace, fatal para<br />
Adriano, constitui a ação (política) como contraponto da idéia.<br />
A representação da intelectualidade no grupo de personagens propicia o aspecto ensaístico<br />
do romance. Porventura demasiado sobrecarregado de matéria ensaística ou ideo-<br />
14 FERREIRA, Vergílio. Posfácio. In: _____ . Apelo da noite. Lisboa: Portugália, 1963, p. 264-265.