Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
54<br />
Esta é a memória dolorida que Antônio Santos Lopes guardou e que A. Lopes, anos<br />
e anos depois, vai transformar em escrita, com a consciência de que nem sempre a memória<br />
é a realidade de outrora e que evocar não é o mesmo que recordar.<br />
Aqui, neste quarto nu em que escrevo, relembro agora tudo com emoção. À dor que<br />
passei mistura-se incrivelmente uma saudade irremediável para nunca mais, não bem,<br />
concretamente, por este instante ou aquele, mas apenas porque a tudo envolve um halo<br />
estranho, agora que tudo me vive na memória. Ao relembrar o passado ocorrem-me instantes<br />
únicos de uma chuva correndo largamente nas vidraças, ou de um sol carinhoso<br />
no fumo largo da manhã, ou até mesmo de uma madrugada fria na igreja. Mas que houve,<br />
realmente, nesses instantes, que me tivesse comovido? Eis porque eu me perturbo à<br />
memória da noite de Natal em que todavia eu sei que sofri de fadiga e de tristeza. Assim<br />
é quase com remorso que eu sinto o apelo fundo das vozes nas naves da igreja e relembro<br />
o frio áspero das geadas, no conforto imaginado de um fogão. Um canto límpido<br />
nasce-me de novo numa brancura distante e sobe pela curva larga do céu como um sol<br />
que se abre em leque sobre o silêncio da terra. [...].<br />
Estranho poder este da lembrança: tudo o que me ofendeu me ofende, tudo o que<br />
me sorriu sorri: mas a um apelo de abandono, a um esquecimento real, a bruma da distância<br />
levanta-se-me sobre tudo, acena-me à comoção que não é alegre nem triste mas<br />
apenas comovente... Dói-me o que sofri e recordo, não o que sofri e evoco. (MS, p. 82-<br />
83 – itálicos do texto transcrito).<br />
Portanto a memória evocativa é a memória da emoção. A memória real, a da recordação,<br />
é sobretudo a memória do sofrimento. As duas, a que recorda e a que evoca, vão<br />
conjugar-se numa terceira que escreve ou que se transforma em escrita. Há um lugar em<br />
que isso se dá (“Aqui, neste quarto nu em que escrevo”).<br />
No conjunto da obra de Vergílio Ferreira este “lugar” onde uma memória se faz escrita<br />
é um elemento comum, reiterativo, recorrente, por exemplo, em Aparição (uma “sala<br />
vazia”), Estrela polar (uma cadeia), Nítido nulo (outra cadeia), Carta ao futuro (Évora),<br />
Invocação ao meu corpo (a montanha)... À memória evocativa pertencem os aspectos poéticos<br />
e simbólicos, não só dos romances como também dos ensaios atrás referidos e de i-<br />
númeras passagens da Conta-Corrente. A evocação emocionada da montanha, a harmoniosa<br />
comunhão com o cosmos, as reminiscências de uma memória musical evocativa da infância,<br />
ou da juventude, ou dos grandes corais natalinos, ou da vastidão da planície alentejana...<br />
(Música, fotografias, estão entre os elementos poético-simbólicos evocativos de<br />
tempos, lugares, pessoas, também de grande recorrência na obra de Vergílio). À memória