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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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A escrita de A. Lopes, ainda que arrebatada para a “verdade” do mito mais do que<br />

orientada para a da realidade, claramente revela uma sensibilidade forjada na natureza e<br />

comprometida ou desejosa de liberdade. A infância dolorida e distante foi decerto mitificada<br />

pela memória que naturalmente acentuou, em demasia, enquanto elaborou essa mitificação,<br />

tudo quanto nela foi belo ou foi sofrido. Distante, evanescente, só feita de memória e<br />

transformada em mito, é pela escrita que a infância ou todo o passado de Santos Lopes<br />

passará, da abstração que era, à concretude que passou a ter. É com a escrita que o passado<br />

veio a ter existência real, embora nem tudo tenha acontecido exatamente assim, como passou<br />

a estar escrito ou se imaginou haver sucedido. Porque na reconstrução do passado entra,<br />

no presente que o reconstrói, toda a sensibilidade até ali acumulada, toda uma mitificação<br />

abstratamente elaborada, todo um desejo de que assim tenha sido. É neste espaço vazio<br />

da incerteza ou da inverdade que se faz a poesia da reconstrução e é com ela que são preenchidos<br />

esses espaços vazios.<br />

Assim, no texto do presente de A. Lopes nem sempre é fácil ou nem mesmo possível<br />

distinguir o que no passado de Antônio Santos Lopes é realidade ou é mito. E isto vale,<br />

é claro, para todos os aspectos do seu texto, inclusive para de algum modo “explicar” o<br />

jogo dicotômico dos espaços. A. Lopes escreve em Lisboa, rememorando a infância que se<br />

passa entre a aldeia (casa da família, casa de D. Estefânia, rua, montanha, natureza) e o<br />

Seminário. A escrita (enquanto romance) segue o ritmo ou a seqüência do tempo cronológico:<br />

as estações do ano, o ano letivo, a alternância entre os períodos de estudo e os de férias.<br />

Esta alternância temporal transporta-se para uma alternância espacial, criando uma<br />

espécie de intersecção entre aldeia e Seminário. Claramente se percebe que a aldeia, à exceção<br />

da casa de D. Estefânia, é o espaço da plenitude, da alegria, da liberdade, que são<br />

sufocadas pelo autoritarismo da madrinha rica que se sobrepõe à subserviência interessada<br />

da mãe de Antônio e à sucumbência deste face aos interesses da mãe. A montanha representa<br />

a independência que o jovem não tem, a plenitude que ele deseja alcançar.<br />

Por fim o dia de férias chegou. E há quanto tempo eu o vinha esperando! No<br />

tampo da carteira, um pouco de lado para que nada o tapasse, colei um calendário de<br />

Dezembro; e todas as noites, ao último estudo, eu esporeava o tempo, cortando o número<br />

do dia seguinte. Mas inflexivelmente, apesar dos meus esforços, cada dia tinha sempre<br />

vinte e quatro horas de espera. [...]. E atormentado de angústia, punha-me atento à<br />

duração de cada segundo, cada minuto, esperando longamente que passassem, e desco-

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