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A escrita de A. Lopes, ainda que arrebatada para a “verdade” do mito mais do que<br />
orientada para a da realidade, claramente revela uma sensibilidade forjada na natureza e<br />
comprometida ou desejosa de liberdade. A infância dolorida e distante foi decerto mitificada<br />
pela memória que naturalmente acentuou, em demasia, enquanto elaborou essa mitificação,<br />
tudo quanto nela foi belo ou foi sofrido. Distante, evanescente, só feita de memória e<br />
transformada em mito, é pela escrita que a infância ou todo o passado de Santos Lopes<br />
passará, da abstração que era, à concretude que passou a ter. É com a escrita que o passado<br />
veio a ter existência real, embora nem tudo tenha acontecido exatamente assim, como passou<br />
a estar escrito ou se imaginou haver sucedido. Porque na reconstrução do passado entra,<br />
no presente que o reconstrói, toda a sensibilidade até ali acumulada, toda uma mitificação<br />
abstratamente elaborada, todo um desejo de que assim tenha sido. É neste espaço vazio<br />
da incerteza ou da inverdade que se faz a poesia da reconstrução e é com ela que são preenchidos<br />
esses espaços vazios.<br />
Assim, no texto do presente de A. Lopes nem sempre é fácil ou nem mesmo possível<br />
distinguir o que no passado de Antônio Santos Lopes é realidade ou é mito. E isto vale,<br />
é claro, para todos os aspectos do seu texto, inclusive para de algum modo “explicar” o<br />
jogo dicotômico dos espaços. A. Lopes escreve em Lisboa, rememorando a infância que se<br />
passa entre a aldeia (casa da família, casa de D. Estefânia, rua, montanha, natureza) e o<br />
Seminário. A escrita (enquanto romance) segue o ritmo ou a seqüência do tempo cronológico:<br />
as estações do ano, o ano letivo, a alternância entre os períodos de estudo e os de férias.<br />
Esta alternância temporal transporta-se para uma alternância espacial, criando uma<br />
espécie de intersecção entre aldeia e Seminário. Claramente se percebe que a aldeia, à exceção<br />
da casa de D. Estefânia, é o espaço da plenitude, da alegria, da liberdade, que são<br />
sufocadas pelo autoritarismo da madrinha rica que se sobrepõe à subserviência interessada<br />
da mãe de Antônio e à sucumbência deste face aos interesses da mãe. A montanha representa<br />
a independência que o jovem não tem, a plenitude que ele deseja alcançar.<br />
Por fim o dia de férias chegou. E há quanto tempo eu o vinha esperando! No<br />
tampo da carteira, um pouco de lado para que nada o tapasse, colei um calendário de<br />
Dezembro; e todas as noites, ao último estudo, eu esporeava o tempo, cortando o número<br />
do dia seguinte. Mas inflexivelmente, apesar dos meus esforços, cada dia tinha sempre<br />
vinte e quatro horas de espera. [...]. E atormentado de angústia, punha-me atento à<br />
duração de cada segundo, cada minuto, esperando longamente que passassem, e desco-