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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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rou comigo a minha dor, com um amor longínquo de estrelas e de silêncio. (MS, p. 204-<br />

205).<br />

O episódio – que é originário de Vagão “J”, romance da fase neo-realista de Vergílio<br />

Ferreira –, adquire aqui evidente significado simbólico-metafísico. É pela dor, pelo sacrifício<br />

da própria carne que Antônio decide conquistar a liberdade, dizer não à opressão,<br />

ao autoritarismo e traçar, dali em diante, o seu próprio caminho. No plano da simbolização<br />

é significativo que ele tenha ocorrido à noite de um dia primaveril (“Era uma tarde feliz de<br />

Primavera, com um sol convicto de esperança, um ar brilhante de juventude” – MS, p. 202)<br />

e na aldeia, portanto à sombra tutelar da montanha. Lugar de primitivas origens, de sacrifício<br />

aos deuses ou às forças da natureza, lugar de purificação, ele mesmo puro de uma pureza<br />

originária e de sempre... O instante da mutilação de Santos Lopes é um momento altamente<br />

simbólico. É então que ele se faz homem, deixando nesse exato instante, para trás, a<br />

infância/adolescência do seu sofrimento. Foi um rito de passagem, um rito sangrento pelo<br />

qual se elevou de um estágio da vida para outro. O momento em que encontrou forças para<br />

ser. Dali para a frente só poderia contar consigo mesmo, e tinha plena consciência disso.<br />

Só aparentemente morta, a infância sobreviverá na sua memória, para que um dia, contando-a,<br />

complete a purgação e a ascese iniciadas com o ritual sangrento em que sacrificou a<br />

própria carne, numa noite que chorou com ele a dor do sacrifício e em que teve a acalentálo<br />

“um amor longínquo de estrelas e de silêncio...”. Quando no presente da sua escrita, em<br />

que rememora ou reinventa o passado da sua vida desde a longínqua manhã submersa da<br />

infância, o passado e o presente se encontram, Antônio Santos Lopes, transformado no<br />

memorialista A. Lopes, terá concluído então esse percurso de sacrifício, de aperfeiçoamento,<br />

de elevação, de formação de um homem novo. A sua escrita representa um componente<br />

fundamental nesse processo. E é do surgimento desse homem novo, que renova as suas<br />

forças na esperança do encontro com a mulher amada “desde sempre”, que o final dessa<br />

escrita, ou o final do romance, dá testemunho:<br />

[...] reconheço, no meu sangue em alvoroço, que um sinal de triunfo vem avançando<br />

com ela para mim, abrindo caminho desde o fundo do meu terror, atravessando o meu<br />

ódio, o meu cansaço, o meu desespero triste.<br />

Por isso, nesta hora nua em que escrevo, perdido no rumor distante da cidade,<br />

conforta-me pensar não sei em que apelo invencível da vida e de harmonia que não<br />

morreu desde as raízes da noite que me cobriu. (MS, p. 209).

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