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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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tantes elos de ligação entre romances anteriores – particularmente Mudança – e romances<br />

posteriores, particularmente Cântico final, Aparição e o muito posterior Para sempre que<br />

quer ser, e é, o romance-súmula a sintetizar toda a carga simbólica e existencial da obra<br />

romanesca que Vergílio Ferreira produziu até o momento de sua publicação.<br />

Sendo a representação de uma escrita memorialística, Manhã submersa é texto que<br />

se escreve de um presente (o presente da escrita, em que o autor A. Lopes, em certo dezembro,<br />

“batido a inverno e solidão” e em crise existencial, resolve contar a sua história,<br />

sem saber exatamente que era aquilo “que tinha para contar”) para registrar, recuperar ou<br />

reinventar um passado. Assim, entre o presente que está na introdução (destacada do texto)<br />

e na conclusão (implícita no texto por ser o momento em que passado e presente se encontram<br />

para se continuarem em futuro) decorre a narração do passado do “autor”. “Autorpersonagem”,<br />

que vai buscar na memória de um passado de pobreza, sofrimento e humilhação<br />

os materiais que eram os seus para reconstituir até ali, até àquele momento presente,<br />

a aventura da sua presença no mundo. Mas a memória é falha (é relativa), o passado é nebuloso,<br />

a infância que poderia ter sido bela, não obstante a pobreza, fora violentada pela<br />

imposição de um destino não escolhido nem desejado, pelo medo, vitimada pelo autoritarismo,<br />

sacrificada em solidão e dor até ao angustiado ou tresloucado gesto da automutilação,<br />

forma encontrada por Antônio Santos Lopes – ao mesmo tempo como fuga e vingança<br />

– para escapar ao Seminário e ao seu imposto destino de sacerdote. O episódio dá-se<br />

durante uma festa em casa de D. Estefânia. No momento em que se deveria soltar um balão<br />

e queimar bombas e fogos de artifício, Antônio, para provar à “bruxa que a desprezava,<br />

que desprezava a morte e o suplicio da [sua] carne”, sentiu estalar-lhe, “de alto a baixo, um<br />

raio de loucura”: segurou na mão direita uma bomba, acendeu o rastilho e esperou que ela<br />

explodisse.<br />

A chama fervia pelo rastilho dentro, aproximava-se vertiginosamente da bolsa de pólvora.<br />

Uma placa de aço incandescente colava-se-me por dentro, ao osso da fronte, queimava-me<br />

os olhos de uma ácida lucidez. Eu estava sozinho, diante de mim e do mundo,<br />

perdido no súbito silêncio em redor. Mas no instante-limite da explosão, no ápice infinito<br />

em que tudo iria acontecer, um impulso absurdo, vindo não sei de que raízes, fez-me<br />

arremessar a bomba. Ou talvez que não houvesse impulso algum e tudo seja apenas, a-<br />

inda agora uma incrível fímbria de receio de que não cumprisse o meu propósito até ao<br />

fim. Porque a explosão deu-se e eu sangrei e perdi dois dedos da minha mão direita.<br />

Gritaram todos aos meus ouvidos, horrorizados da minha crueldade. Mas só a noite cho-

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