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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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pela obediência, respeito e solidariedade – que ele devota à mãe, de quem está fora do alcance<br />

porque a madrinha o arrebatara para o manter sob o jugo do seu poder. O sofrimento<br />

que decorre do seu afastamento do ambiente familiar, na aldeia que é obrigado a deixar e<br />

aonde só regressa nas férias, é o ponto de partida para a “construção” do seu pensar. O<br />

convívio difícil com outros seminaristas, a descoberta da ausência de vocação nele e em<br />

outros, o autoritarismo e violência da instituição, a descoberta alarmada do corpo, da sexualidade,<br />

os atos de rebeldia ou de covardia de outros alunos, o pânico-espanto decorrente<br />

da morte de um deles, o Gaudêncio, o pavor que lhe provocou a insidiosa dúvida sobre a<br />

existência de Deus – são alguns elementos que se amalgamaram na formação do pensamento,<br />

da vontade, e da decisão que Antônio Santos Lopes levará para a vida. São também<br />

formadores da sua sensibilidade, que se manifestará sobretudo quando A. Lopes se faz<br />

“autor” do texto que é Manhã submersa. A aprendizagem do binômio vida/cultura, na qual<br />

a experiência do Seminário é um momento de intersecção, foi fundamental no surgimento<br />

do ser complexo, sensível, culto, erudito que, à distância do tempo e dos espaços da sua<br />

infância/adolescência, narra com emoção a sua experiência existencial até ao momento de<br />

uma possível descoberta amorosa e de um intenso desejo de comunhão com a destinatária<br />

desse amor, uma desconhecida subitamente reconhecida na pessoa de uma mulher “desde<br />

sempre” amada.<br />

Manhã submersa é um texto narrativo ou a escrita de uma memória colocada entre<br />

uma breve e destacada proposição introdutória e uma conclusão implícita na própria narração.<br />

Entre um momento e outro decorre a narrativa, em primeira pessoa, como convém a<br />

uma escrita memorialística. No primeiríssimo momento da introdução (assinada por A.<br />

Lopes e destacada do corpo do livro por diagramação diferente e composição textual em<br />

itálico) vem referido o nome de Vergílio Ferreira de modo a implicar afastamento da autoria<br />

do romance, assumindo, senão a condição de personagem, a de autor de outros livros,<br />

que não somente este: “Para o fim de um certo livro seu diz Vergílio Ferreira que talvez<br />

eu, António Borralho (A. Santos Lopes, de lei) viesse um dia a escrever a nossa história.<br />

Nossa – da minha gente.” 10 . Este recurso (quase se poderia dizer este artifício) não teria<br />

maior interesse se não fosse a primeira incursão de Vergílio Ferreira numa prática ficcional,<br />

mais tarde retomada em outros livros, como em Nítido nulo e em Até ao fim, por e-<br />

xemplo, prática ficcional algo irônica, e, sobretudo nestes últimos romances, indicativa de<br />

uma quebra de convenções que permite conjecturar em torno de uma possível pós-<br />

10 FERREIRA, Vergílio. Manhã submersa. 3. ed. Lisboa: Portugália, 1968, p. 9 (itálicos da citação).

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