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pela obediência, respeito e solidariedade – que ele devota à mãe, de quem está fora do alcance<br />
porque a madrinha o arrebatara para o manter sob o jugo do seu poder. O sofrimento<br />
que decorre do seu afastamento do ambiente familiar, na aldeia que é obrigado a deixar e<br />
aonde só regressa nas férias, é o ponto de partida para a “construção” do seu pensar. O<br />
convívio difícil com outros seminaristas, a descoberta da ausência de vocação nele e em<br />
outros, o autoritarismo e violência da instituição, a descoberta alarmada do corpo, da sexualidade,<br />
os atos de rebeldia ou de covardia de outros alunos, o pânico-espanto decorrente<br />
da morte de um deles, o Gaudêncio, o pavor que lhe provocou a insidiosa dúvida sobre a<br />
existência de Deus – são alguns elementos que se amalgamaram na formação do pensamento,<br />
da vontade, e da decisão que Antônio Santos Lopes levará para a vida. São também<br />
formadores da sua sensibilidade, que se manifestará sobretudo quando A. Lopes se faz<br />
“autor” do texto que é Manhã submersa. A aprendizagem do binômio vida/cultura, na qual<br />
a experiência do Seminário é um momento de intersecção, foi fundamental no surgimento<br />
do ser complexo, sensível, culto, erudito que, à distância do tempo e dos espaços da sua<br />
infância/adolescência, narra com emoção a sua experiência existencial até ao momento de<br />
uma possível descoberta amorosa e de um intenso desejo de comunhão com a destinatária<br />
desse amor, uma desconhecida subitamente reconhecida na pessoa de uma mulher “desde<br />
sempre” amada.<br />
Manhã submersa é um texto narrativo ou a escrita de uma memória colocada entre<br />
uma breve e destacada proposição introdutória e uma conclusão implícita na própria narração.<br />
Entre um momento e outro decorre a narrativa, em primeira pessoa, como convém a<br />
uma escrita memorialística. No primeiríssimo momento da introdução (assinada por A.<br />
Lopes e destacada do corpo do livro por diagramação diferente e composição textual em<br />
itálico) vem referido o nome de Vergílio Ferreira de modo a implicar afastamento da autoria<br />
do romance, assumindo, senão a condição de personagem, a de autor de outros livros,<br />
que não somente este: “Para o fim de um certo livro seu diz Vergílio Ferreira que talvez<br />
eu, António Borralho (A. Santos Lopes, de lei) viesse um dia a escrever a nossa história.<br />
Nossa – da minha gente.” 10 . Este recurso (quase se poderia dizer este artifício) não teria<br />
maior interesse se não fosse a primeira incursão de Vergílio Ferreira numa prática ficcional,<br />
mais tarde retomada em outros livros, como em Nítido nulo e em Até ao fim, por e-<br />
xemplo, prática ficcional algo irônica, e, sobretudo nestes últimos romances, indicativa de<br />
uma quebra de convenções que permite conjecturar em torno de uma possível pós-<br />
10 FERREIRA, Vergílio. Manhã submersa. 3. ed. Lisboa: Portugália, 1968, p. 9 (itálicos da citação).