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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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41<br />

Chovera. Pela tarde, nesse fim de setembro, uma tempestade velha caíra sobre<br />

a aldeia com uma carga de dilúvio. Mas em breve como chegara, sumira-se. Ficara apenas,<br />

nos córregos da montanha, um férvido rumor dos restos da enxurrada. Era um<br />

murmúrio longo, resfolegado, vasto como de um mar. Uma cólera surda rugia ainda nas<br />

águas da ribeira, e para a terra inundada descia ainda do céu uma ameaça de cinza...<br />

À noite, porém tudo acabou. As nuvens dispersaram-se, abrindo o brilho às estrelas,<br />

a ribeira adormeceu. O silêncio alastrou pela montanha, envolveu todo o mundo,<br />

selou-o E a lua veio por fim, quente de augúrio e de sangue, erguendo-se sobre a terra<br />

como os anjos das ruínas... (M, p. 5).<br />

Diante do espetáculo grandioso da natureza, o homem deixa escapar o seu espanto,<br />

o seu receio e um prenúncio de angústia: “– Caramba! É belo!” (p. 5). Mas tal espetáculo<br />

alarma, oprime, angustia homens e animais. O homem verbaliza o seu espanto: “ – Assombra,<br />

Berta! Esmaga!” (p. 6), os animais exprimem, como podem, o seu terror: “À opressão<br />

da angústia, cães latiam desvairados para o alto. De longínquas herdades, dos casais, os<br />

uivos partiam contra o céu, pairavam, coagulados, no ar.” (p. 5).<br />

Só ao término da leitura do romance se poderá plenamente perceber que na sua a-<br />

bertura estão contidos alguns dos elementos essenciais e alguns dos essenciais símbolos da<br />

poética romanesca do seu autor. A chuva, a aldeia, a montanha, a ribeira, a noite, as estrelas,<br />

a lua, a misteriosa beleza cósmica de tudo isso, o silêncio, os ruídos da natureza, a angústia,<br />

os cães uivando “contra o céu” de onde desce uma “ameaça de cinza”. Tudo isso<br />

prenuncia um mundo em desamparo e um desamparado homem que não pode esperar<br />

qualquer auxílio, seja dos seus semelhantes, da sociedade, da natureza ou do céu, que se<br />

lhe apresenta vazio e de onde só vêm ameaças de tempestade e de cólera, e onde os anjos<br />

possíveis são os “anjos das ruínas”.<br />

O permanente clima de tensão do romance estabelece-se simbolicamente desde a<br />

sua cena inicial em que a natureza antecipa o vasto sentido da “crise” que se vai instalar<br />

sobre tudo e sobre todos. Trata-se, portanto, de uma “abertura trágica” (para insistir na<br />

metáfora musical) cuja função é prenunciar os vários passos ou elementos da tragédia que<br />

a seguir se vão desenrolar, lançando as personagens num turbilhão de mudanças. Profundas,<br />

radicais mudanças que lhes vão alterar para sempre os rumos das vidas.<br />

A leitura de Mudança evidencia que o romance traz, diferentemente do romance<br />

português do seu tempo, uma problemática de natureza essencialmente filosófica. De que<br />

problema se trata ou qual a “chave” temático-filosófica do romance, o próprio Vergílio

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