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rá a pena discorrer longamente sobre esse tema já tão visto embora seja necessário considerá-lo,<br />
uma vez que é um ponto de partida. Livro de título significativo a todos os níveis,<br />
“profético como todos os que convêm à hora que designam”, como disse Eduardo Lourenço<br />
4 , Mudança é o romance de uma “crise”, mas de uma crise muito mais ampla e mais profunda<br />
do que aquela – a econômica – que desde a longínqua América, onde se formou o<br />
epicentro do furacão que se espalhou pelo mundo como um vento ruim ou uma peste ceifando<br />
fortunas e homens e cujos efeitos trágicos se espalharam por toda parte do planeta e<br />
chegaram até mesmo aos mais remotos confins da terra, como chegaram às ignoradas aldeias<br />
da Serra da Estrela. Tempo de desastre econômico mundial, os anos 30. Tempo de<br />
crise. Mas a crise que motiva a escritura de Mudança e que no romance se encontra como<br />
tema que subjaz a todos os outros, não é só a do ter ou não-ter, a do ganhar ou perder; é<br />
uma crise profunda, mas invisível, como a da impossibilidade de comunicação entre um<br />
ser humano e outro, a do desgaste das relações humanas, da corrosão do sentimento amoroso,<br />
da raiva ou do bloqueio erótico pela ausência ou pelo embotamento do sentir, da<br />
permanente desconfiança, da falência das ideologias, da inexistência de valores seguros...<br />
É a crise de um mundo em guerra, em que a violência e a desumanidade se disfarçavam na<br />
falsa promessa de uma “nova ordem”. É uma crise de espírito, de ética, de futuro... É uma<br />
ausência de horizontes, é uma náusea de tudo e de todos, do próprio ser-em-si que no romance<br />
busca no cosmos uma paz impossível e se recolhe ao mundo primitivo da natureza e<br />
reduz o seu convívio com os vivos à companhia de um animal.<br />
Como numa abertura sinfônica clássica, metáfora utilizada também por Eduardo<br />
Lourenço, Mudança inicia com o espanto do homem diante da grandeza bela e esmagadora<br />
do cosmos, e, de algum modo, a cena introdutória “expõe simbolicamente e antecipa o<br />
conflito romanesco” 5 :<br />
manesca para outra (social/existencial) possível de perceber em determinadas personagens, sobretudo em<br />
Carlos Bruno, protagonista de Mudança, que simboliza o Homem num processo de amadurecimento pelo<br />
sofrimento, pela solidão – purgação e ascese, em busca da ascensão a um patamar de superior conhecimento<br />
e sensibilidade pelo caminho da reflexão. Carlos Bruno viria a significar o ponto de partida do próprio<br />
V. F. à procura do seu romance, um romance que presentificasse o Homem a si mesmo, que o pusesse em<br />
confronto com os seus problemas essenciais, que possibilitasse a aparição de si a si próprio e o conhecimento<br />
do outro.<br />
4 LOURENÇO, Eduardo. Acerca de Mudança. In: FERREIRA, Vergílio. Mudança. 3. ed. Lisboa: Portugália,<br />
p. IX. Todas as transcrições de trechos do romance serão feitas a partir desta edição indicando-se as respectivas<br />
páginas, no próprio texto, entre parênteses e a seguir à abreviatura identificadora. O procedimento valerá<br />
para todas as outras obras de V. F. de que se façam transcrições no trabalho.<br />
5 Idem, ibidem, p. xx.