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o “romance-problema”, um romance sem história, que já não precisasse “contar” nada e<br />
que devesse sobretudo representar uma sensibilidade, uma inquietação, uma visão de mundo<br />
e a tudo isso questionar, tudo isso problematizar, sem perder de vista a representação da<br />
emoção, do belo, do poético... a realização da Arte 10 .<br />
Vergílio Ferreira esteve sempre sozinho entre os seus contemporâneos. Esta literatura<br />
que desde cedo estava nos seus horizontes de escritor não merecia as atenções dos<br />
neo-realistas, sobretudo os das primeiras horas. À margem do neo-realismo, e também fazendo<br />
um caminho solitário, Agustina Bessa-Luís, nome altamente expressivo no romance<br />
contemporâneo de Vergílio (A sibila foi publicado em 1953, mesmo ano de publicação de<br />
Manhã submersa) produzia uma narrativa intimista, densa de questionamentos psicológicos,<br />
ao mesmo tempo voltada para o interior das personagens e para a paisagem física,<br />
humana e social do norte do país, observando os seus códigos, os seus mitos, os seus costumes.<br />
Na narrativa agustiniana, em que predomina o modelo herdado dos clássicos dezenovistas,<br />
é possível, desde o início, pressentirem-se traços tão díspares quanto o podem ser,<br />
se encontrados em conjunto, os proustianos, os camilianos, os dostoievskianos. Os neorealistas<br />
também nunca se entenderam bem com Agustina Bessa-Luís, mas ela não pertence<br />
à linhagem de autores em que Vergílio Ferreira haveria de se inserir. Mais tarde – mais<br />
precisamente pelos anos 60/70 – um Cardoso Pires, um Abelaira, um Namora, um Carlos<br />
de Oliveira, sensíveis ao fenômeno estético porque escritores no sentido artístico e criador<br />
dessa qualificação, procurariam uma “fenda na muralha” (para lembrar um título de Redol)<br />
da literatura social para a salvarem, ou salvarem a si mesmos e às suas obras, da asfixia do<br />
espaço sem saída em que o neo-realismo se fechara. Mas os caminhos que estes romancistas<br />
descobriram, importantes que foram na renovação e enriquecimento de linguagens e<br />
estruturas romanescas com que fugiram ao cerco do compromisso geracional e ideológico,<br />
10 Este tipo de romance está explicitado no horizonte dos interesses estéticos de V. F. pelo menos desde Estrela<br />
polar, onde se lê este trecho, sempre citado a propósito da questão:<br />
Ah, escrever um romance que se gerasse nesse ar rarefeito de nós próprios, do alarme da nossa própria<br />
pessoa, na zona incrível do sobressalto! Atingir não bem o que se é “por dentro”, a “psicologia”,<br />
o modo íntimo de se ser, mas a outra parte, a que está antes dessa, a pessoa viva, a pessoa absoluta.<br />
Um romance que ainda não há... Porque há só ainda romances de coisas – coisas vistas por fora ou<br />
coisas vistas por dentro. Um romance que se fixasse nessa iluminação viva de nós, nessa dimensão<br />
ofuscante do halo divino de nós... (EP, p. 56).<br />
Produzir um romance desta natureza tornou-se para ele verdadeira obsessão e aspecto fundamental da sua<br />
concepção do gênero. Disso dão conta os inúmeros registros que ao longo dos anos vai fazendo nos sucessivos<br />
volumes de Conta-Corrente, e essa velha aspiração manifestada em Estrela polar, evoluiu, nas anotações<br />
do diário, para o conceito de “romance abstrato”, de que chega a esboçar alguma incipiente teorização.