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que só o decurso do tempo, a distância, a saudade, a imaginação, a reminiscência, a sensibilidade<br />
e a poesia permitem inventar.<br />
A personagem romanesca de Vergílio Ferreira, nos moldes daquela a que Helder<br />
Godinho chamou de “arquipersonagem”, vive passo a passo esse processo de complexificação<br />
da sua sensibilidade e da sua consciência. No artigo “Os parentescos simbólicos em<br />
Vergílio Ferreira”, Helder Godinho define o que entende por arquipersonagem: “a personagem<br />
ideal que, por sobreposição e abstração das personagens que conduzem a ação ou<br />
que a narram percorre idealmente a obra de V. F., dos primeiros aos últimos romances,<br />
sofrendo a maturação e a evolução desse percurso.” 8 . O “herói” vergiliano, protagonista de<br />
todos os seus romances, pode ser imaginado como “ser” ou personagem único que vivencia<br />
as experiências narradas em cada um dos romances do autor e evolui (complexificando-se),<br />
ao longo da extensa trajetória que a totalidade desses romances representa, desde a concepção<br />
mais simplista, mais despojada, mais rudimentar de homem ou de representação humana<br />
até à mais complexa, mais problemática, mais refinada, mais avançada e também<br />
mais angustiada representação possível do humano. O homem vergiliano, vai, desde o que<br />
apenas sabe que tem um corpo para alimentar e para vestir, muita fome e nenhumas letras<br />
(o Gorra, de Vagão “J”), até ao que tem fome de conhecimento de si próprio, de absoluto,<br />
de saber (Alberto, de Aparição), de conhecimento do outro (Adalberto, de Estrela polar),<br />
de arte (Mário, Elsa, Guida, Paula, de Cântico final; Júlio Neves, de Rápida, a sombra), de<br />
consciência política (Adriano, de Apelo da noite, ou o protagonista de Signo sinal), da busca<br />
da palavra essencial, de transcendência amorosa e de recuperação da vida num ápice,<br />
antes da morte (Paulo, de Para sempre), de perenização da juventude e da beleza (João<br />
Vieira, de Em nome da terra)... O homem vergiliano evolui do cavador de terra ao intelectual,<br />
ao artista, ao pensador, ao político, ao jornalista, ao escritor, ao bibliotecário... Evolui<br />
da inconsciência de uma condição humilhada e ultrajada em que só contam o peso físico<br />
do corpo e da sua fome milenar, até à consciência do absurdo, da alegria breve que a vida<br />
é, sem nada antes e depois dela, do desejo (sempre frustrado) de absoluto, de transcendência,<br />
da realização (ou da tentativa de realização) disso, na Arte – sobretudo a da escrita – e<br />
na Vida – sobretudo a que decorre ou se relaciona com a sensibilidade cósmica –. Por isso<br />
há tanta emoção em Vergílio Ferreira quando trata da montanha ou do mar, da planície<br />
alentejana ou das encostas da serra beirã, dos nevões de invernos brancos e fantasmáticos<br />
8<br />
GODINHO, Helder. Os parentescos simbólicos em Vergílio Ferreira. In: MOURÃO-FERREIRA, David<br />
(Org.). Afeto às letras. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, p. 230.