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da condição humana. Interessa-lhe pensar o Homem e o mundo em que lhe foi dado viver.<br />
Pensá-lo na intensidade emocionada da sua tragédia ou na plenitude da sua alegria. Mesmo<br />
que breve, fugazmente breve, essa alegria. Um romance em que isso fosse possível, não<br />
seria, decerto, a crônica das misérias materiais do homem, das imediatas necessidades da<br />
sua sobrevivência. Também não seria o romance do nivelamento coletivo horizontal, em<br />
que tudo (e todos) se torna igual ou semelhante pela igualdade ou semelhança dos que<br />
compõem a classe social posta em destaque. O romance que a Vergílio Ferreira interessa<br />
criar teria forçosamente que “pinçar” o Homem do meio dessa coletividade humana, pô-lo<br />
em destaque, isolando-o, “construí-lo” como personagem, acompanhar a complexificação<br />
desse processo até ao mais absoluto conhecimento dessa solidão, dessa emoção, dessa relação<br />
intensa do Homem colocado frente a frente consigo mesmo e com os outros, com o<br />
Cosmos ou com o Nada. Escrever um romance assim, em Portugal, nas décadas de 40 ou<br />
50 seria claramente remar contra a corrente. Mas Vergílio Ferreira o começou a escrever<br />
desde Mudança (1949), livro extremamente significativo a partir do título. Mudança e Manhã<br />
submersa (1953) – o romance que imediatamente se lhe seguiu – são narrativas ainda<br />
sobrecarregadas de elementos neo-realistas, mas já não podem ser classificadas como romances<br />
característicos desse movimento. Estão lá, ainda, não só os cenários e as representações<br />
humanas da aldeia com as suas dificuldades sociais e materiais, mas também uma<br />
espécie de “sensibilidade” aldeã, algo como uma carga genética ou atavismo trazido dali,<br />
da aldeia, da serra, de uma pobreza de origens que se vai transformar em riqueza de emoção,<br />
de sensibilidade e de simbolização no construir de um vasto universo estético. Mas<br />
está, também, nesses romances, um intenso e angustiado questionar dos grandes problemas<br />
do Homem e das suas relações com a transcendência. E isso já não tem guarida no neorealismo.<br />
A sensibilidade aldeã seria uma das constantes na obra de Vergílio. A aldeia serrana<br />
é uma presença perene ao longo da sua obra. Nos romances futuros estará ainda com<br />
muita força em Aparição (1959), Cântico final (1960), Alegria breve (1965), Para sempre<br />
(1983) e em Cartas a Sandra (1996). Estará presente, também, com alguma freqüência nas<br />
duas longas séries de volumes do diário (Conta-Corrente 1-5, 1980-1987, e Conta-<br />
Corrente – nova série I-IV, 1993-1994). Mesmo em alguns ensaios (como em Invocação<br />
ao meu corpo – 1969) a aldeia está presente como um enquadramento de importância. Mas<br />
sobretudo a que se encontra nos romances, já não se sabe bem se é realmente a aldeia ou se<br />
a sua mitificação transfigurada. O próprio Vergílio Ferreira o diz no seu diário: