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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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[...]. Na frescura de um início, na fértil vitalidade, na radiação infinita da alegria. Imponderável<br />

na água, as pernas ondeando lentas e os braços. Flutuo na suspensão de mim<br />

e tudo é fácil e leve como numa transfiguração. (SS, p. 128).<br />

No sentido inverso ao da animalização do ser humano – Carolina, a Muda, o Coxo,<br />

a Palaia, o Chiquinho... – o cão é de certo modo humanizado pelo tratamento que Luís Cunha<br />

lhe dá. Considerando-o a sua “última companhia” (p. 189), o protagonista, no espaçotempo<br />

da praia – embora sem esperar resposta –, a ele se dirige como quem conversa num<br />

fluxo contínuo. Leva-o para almoçar num restaurante no alto de uma arriba, de onde se vê<br />

a paisagem marítima, e logo o cão se instala numa cadeira equipada com um banquinho de<br />

criança e “pousou a cabeça na toalha” (p. 145). Luís Cunha pediu um bife para si e meio<br />

para o Teseu. Mas quando saíram do restaurante, já ao fim da tarde, Teseu encontrou na<br />

praia um outro cão, que acompanhava um pescador e entreteve-se com ele. Deixou então<br />

de atender aos chamados do homem que o “adotara”. Finalmente segue-o até ao local onde<br />

se achava o carro, mas “partiu imediatamente em sentido oposto” (p. 237). Luís chamou-o<br />

com um berro e ele “olhou atrás, muito grave e ressentido e continuou “o tricoteio das suas<br />

quatro patinhas” (ibid.). O homem correu em sua perseguição e o animal acelerou a fuga,<br />

desaparecendo na colina “atrás de uns arbustos”. Luís Cunha estava só. “A toda a extensão<br />

do mar a noite cresce desde a profundeza das águas, a claridade apagou-se no círculo do<br />

horizonte.” (SS, p. 238). O homem perdera a sua “última companhia” e estava outra vez<br />

sozinho no labirinto. Teseu era “a vitória sobre o labirinto” (Luís Mourão 89 ), mas fugiu,<br />

deixando lá o homem que deveria guiar. O nome escolhido para o cão é significativo. As<br />

outras hipóteses eram Argos e Ícaro.<br />

Luís Cunha continuará “à deriva pelo labirinto das ruas, pela rede dos muros que se<br />

erguem do chão.” (ibid., p. 239). Entretanto anoiteceu, “e a lua aponta no horizonte a sua<br />

interrogação final, ergue-se vagarosa como um anjo das ruínas” 90 (ibid.). Está ali, “no chão<br />

que [lhe] pertence, o passado e o futuro de todo o [seu] percurso, terra da [sua] origem, da<br />

[sua] condição.”<br />

[...] terra do meu desastre e da minha glória humana. Vou por ruas e becos – que vida se<br />

entretecerá aqui? que ódio, sonhos, vozes de alegria de amargura? Aqui, neste labirinto<br />

89 MOURÃO, Luís. Um romance de impoder: a paragem da História na ficção portuguesa contemporânea,<br />

p. 359.<br />

90 É retomada de Mudança, esta bela imagem da lua que se ergue “como um anjo das ruínas”. Cf. Mudança,<br />

ed. cit. p. 5.

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