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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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toda uma cacofonia onomatopaica simbolizadora de uma linguagem perdida ou interdita e<br />

toda uma legião de milhões e milhões de mortos – “fantasmas da antiga ordem” 86 – que<br />

passeiam pela aldeia arrasada e que assombram de terror a memória do protagonista.<br />

Das cenas de violência destaca-se a da luta na taberna do Coxo, não só pela extrema<br />

agressividade da cena em si como também pela técnica narrativa utilizada na sua montagem,<br />

claramente devedora à técnica de narração cinematográfica em que as imagens em<br />

movimento são intensamente valorizadas pela lentidão da câmera (é uma cena em “câmera<br />

lenta”), aqui substituída pela extrema acuidade e precisão do olhar do narrador que a presencia<br />

e dela oferece o testemunho daquilo que vê, num instante que se desdobra, milimetricamente<br />

vê, em “infinitos instantes” pelo que vê na sua “atenção milimétrica” (p. 74-75).<br />

É uma cena longa, lenta, detalhadíssima, de que a câmera do olhar atento, profundo, milimétrico<br />

do observador nada perde:<br />

Um punho cerrado ergue-se, vai subindo, chega ao alto, começa a descer, a ir à frente, à<br />

máscara do homem em ódio sangrento, até que, na face do outro, um estoiro, a cara dele<br />

recua, os cabelos pelo ar, o punho cerra-se, os homens em círculo recuam vagarosos, a<br />

face, um esgar fixo de raiva alegre, o punho avança devagar, o outro homem, fluido em<br />

equilíbrio difícil, imagem lenta, etérea, uma perna no ar, o punho vem avançando para a<br />

cara dele quase o atinge, mas o outro começa a desviá-la, o punho cerrado vai passando<br />

a rasar, lenta fluida imagem de uma dança, o busto do homem vai atrás do punho, toda a<br />

massa no ar, uma perna ergue-se, vem à frente, [...] a mão começa a erguer-se, um brilho<br />

metálico de navalha, sobe alto, o busto inteiro vem vindo para a frente, a mão ao alto,<br />

a faca rebrilha à luz da taberna, um ódio cruento na face, nos dentes, pregado, fixo o<br />

ódio a raiva, os olhos semicerrados, a mão vem baixando, o outro devagar tenta desviarse,<br />

a ponta da faca no peito da camisa, vai-se enterrando, traça um rasgão, enterra-se<br />

mais, uma mancha de sangue lenta como uma nódoa, o braço levanta-se, a navalha retinta<br />

de vermelho, o braço começa de novo a descer, a navalha entra de novo lenta, a<br />

mancha vai alastrando por toda a camisa, as mãos do homem de um lado e do outro vêm<br />

lentas à procura do coração, a navalha do homem vem já descendo para novo golpe, a<br />

ponta começa a enterrar-se numa das mãos, um fio de sangue vai engrossando, as mãos<br />

ficam ensopadas na massa sangrenta e em volta, sempre o círculo dos homens, a face<br />

hirta de raiva e espanto, os dois corpos dos homens em lenta oscilação, as pernas e braços<br />

no ar, o homem esfaqueado começa a tombar para a frente, cai, ressalta devagar<br />

86 PEREIRA, Luci Ruas. Húmus e Signo sinal ou o diálogo possível entre romances de um tempo de crise.<br />

In: Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, 6, 1999, Rio de Janeiro. Disponível em:<br />

. Acesso em: 14 de maio de 2004.

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