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dade da troca. O mistério tremendo do bolo, “Íntegro, selado na sua nudez. Nítido preciso.<br />
Único” (pag. 134) é afinal o equilíbrio miraculoso da tremenda violência em que se<br />
funda e que permeia toda a ordem social. 84<br />
Como qualquer outro episódio simbólico, este também se permite diversificadas<br />
leituras, e, o que de fato importa, da perspectiva essencialmente estética e para além dos<br />
diferentes significados ideológicos, é a extrema poesia que repassa toda a cena. Essa verdade<br />
nenhum intérprete negará ao texto, aqui representativo da pureza original de um tempo<br />
e de um espaço, o espaço-tempo evocativo do passado remoto do protagonista. Passado<br />
que ele tenta fixar no “instantâneo da memória”, mas que se baralha com outros tempos –<br />
os da perda da inocência – contaminados de impureza e de violência. Como quer que seja,<br />
são estas as narrativas possíveis, “legitimadoras” ou não. As dos fundamentos de uma ordem<br />
ancestral, quebrada pelo terremoto e pela revolução. É aí, nessa memória recente, sobre<br />
os escombros de um mundo arrasado, que se inscrevem as cenas de violência de toda a<br />
ordem: a das facadas entre contendores brutais na taberna do Coxo; as das discrepâncias de<br />
“princípios” e de “métodos” entre o professor novo e o ensino velho, o padre novo e o catolicismo<br />
velho, o médico novo e a medicina velha, entre a ciência e a religião (com o linguajar<br />
próprio ou impróprio dessas discrepâncias); as cenas de sexo cada vez mais cruas,<br />
entre Luís Cunha e a puta Carolina (também com a propriedade ou impropriedades do linguajar<br />
respectivo); o sequioso e caótico proliferar dos partidos políticos e a correspondente<br />
arenga vazia dos oradores nos comícios; a música revolucionária dos “baladeiros” de barba<br />
por fazer, cabelo desgrenhado e roupa suja – incluindo os padres (também “baladeiros”) do<br />
“novo evangelho” de um Cristo inscrito no Partido –... É daí que ressuma toda uma “sarrabulhada<br />
de feira”, todo um grotesco expressionista de figuras deformadas e animalescas 85 ,<br />
84 MOURÃO, Luís. Um romance de impoder: a paragem da História na ficção portuguesa contemporânea.<br />
Braga-Coimbra: Angelus Novus, 1996, p. 340-341.<br />
85 A presença de um expressionismo claramente de origem pictórica manifesta-se em Signo sinal logo à segunda<br />
página, na cena inicial da descrição do terremoto, materializada na criança que devia vir atrasada<br />
para a escola e que “corre espavorida, as mãos erguidas à cabeça, desaparece entre os escombros. Vejo-a<br />
de boca aberta, num grito mudo e imenso.” (SS, p. 12). Não há como não ver aqui a evocação descritiva do<br />
famoso quadro de Munch. Comentando a cena, diz Luís Mourão que “mais do que a alusão direta ao expressionismo,<br />
chave de composição e de leitura desta cena inicial, interessará o desvario ontológico que o<br />
quadro significa na memória culta do Ocidente.” (op. cit., p. 308). Também relacionáveis com o expressionismo<br />
(ainda que se deva dizer lato sensu), são, entre outras, as figuras da Muda, do Coxo, da Carolina,<br />
às quais são atribuídos traços de animalidade: uma “tromba inchada” para a Muda, que “bate as patas nos<br />
degraus” (p. 73 e 88), um “riso eqüídeo” para o Coxo (p. 69), um “focinho suíno” para a Carolina (p. 109).<br />
Estes traços deformadores e desumanizadores da figura humana têm antecedentes em romances anteriores<br />
de V. F. – como se pode ver, por exemplo, nas análises feitas de Aparição, Estrela polar, Alegria breve,<br />
Nítido nulo – e não só constituem uma das constantes do seu texto romanesco, como também apontam para<br />
um encaminhamento cada vez mais intenso na valorização do grotesco.