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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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249<br />

O bolo pascal é um outro “cordeiro do sacrifício”. De uma pureza e de uma suavidade<br />

que contrastam frontalmente com o realismo brutal do sacrifício do porco. Mas ainda<br />

assim um sacrifício, embora transportado para a ordem do simbólico, com o vinho fino (e<br />

decerto rubro como sangue) vertido para os cálices nítidos e o bolo – íntegro, nu, nítido,<br />

preciso e único – como um corpo à espera de conhecer a faca. Faca que D. Clotilde ergue<br />

“para encetar o bolo” mas que se imobiliza no gesto paralisado no “instantâneo da memória”<br />

de Luís Cunha, que congela a imagem da mulher curvada “um pouco para o bolo”,<br />

com “a faca soerguida” e “de lado para nós”, fazendo-a permanecer “assim imóvel”, “a<br />

faca oblíqua ao bolo, parada. [...]. A faca. A face.” Imagem para sempre cristalizada na<br />

lembrança, como numa fotografia: “A sala um pouco obscura na tarde. Estamos todos i-<br />

móveis. A criada tem um braço no ar, imobilizada no seu gesto. O tempo fixo.” (p. 135) 83 .<br />

Luís Mourão faz deste episódio uma leitura das relações de poder na comunidade e<br />

afirma que ele<br />

concretiza, ao nível das relações sociais efetivas, os mecanismos de poder e domínio<br />

implícitos no ritual da matança do porco. A dimensão religiosa, embora tão sacrificial<br />

como é a da Páscoa, é apenas pano de fundo. Por certo, revela a unidade dos mecanismos<br />

de poder, mas isso não é o que aqui mais interessa. O importante é mesmo a secularização<br />

do processo. Em vez da oferenda aos deuses familiares, oferenda simbólica porque<br />

retorna por inteiro à comunidade, a oferenda real ao Sr. Ximenes, supostamente o<br />

homem rico da aldeia ou, pelo menos, alguém mais rico que o pai do narrador e a quem<br />

este deve parte da sua ascensão social. Toda a cerimônia é interpretada por mediadores:<br />

em vez do pai, são os três filhos quem leva o bolo; em vez do Sr. Ximenes, é a sua mulher,<br />

D. Clotilde, e a criada, quem o recebe. Ao nível destes atores – crianças e mulheres,<br />

os seres mais frágeis da comunidade –, toda a violência tem uma desmesura mítica.<br />

Por isso o bolo, simbolizando a submissão a uma ordem social e o acatar de uma violência<br />

de domínio que se exerce em nome da possibilidade efetiva de uma violência de<br />

extermínio, é investido dessa desmesura. Mas é ela que diz a verdade da cena: o bolo<br />

não é uma dádiva, um suplemento que decorra de uma conversão pascal ou um sinal de<br />

amor entre iguais, mas a contenção da violência pelo consentimento na lei da desigual-<br />

83 Não é casual – até pelo uso da expressão “instantâneo da memória” – a semelhança desta imagem do final<br />

do episódio do bolo da Páscoa com uma imagem fotográfica, um “instantâneo”. Já se viu que V. F. recorre<br />

com freqüência à fotografia (tal como a recursos de narrativa cinematográfica), quer para obter efeitos ou<br />

realizar “estudos” espaciais, quer como forma de simbolização do tempo, da memória, dos registros de vidas<br />

que passaram ou vão passar e que, por muito que perdurem na memória humana ou nos velhos e amarelecidos<br />

álbuns fotográficos (como o da tia Dulce, de Aparição) vão morrer um dia no conhecimento dos<br />

pósteros que já não identificam o que foi fotografado ou na própria morte física dos materiais que deram<br />

suporte às imagens retidas. No caso, a memória infantil de Luís Cunha parece ter impedido o sacrifício do<br />

bolo para que o mistério permanecesse, na imobilização do tempo, na sua suspensão, que suspende também<br />

a mão que empunha a faca, “oblíqua ao bolo, parada” num tempo “fixo” onde todos estão imóveis.

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