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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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lado, a meio da mesa, puro. Sem nada além dele, fechado no seu prestígio, o bolo estreme<br />

na bandeja. E a toalhinha bordada alvíssima posta ao lado, num folhado leve de<br />

goma. Exposto aos nossos olhos como um deus nascido. [...]. Uma força rígida defendia-o<br />

de nós, do nosso contato, como a um objeto de museu numa redoma inquebrável.<br />

Acumulara-se nele a dádiva das gerações, requintada apurava-se a essencialidade dos<br />

séculos. [...]. Há silêncio na sala, a luz colorida ao alto das janelas. Então a criada verteu-nos<br />

vinho nos cálices, D. Clotilde tomou uma faca para encetar o bolo. Tinha um<br />

sorriso metálico nos dentes. Vejo-a erguer a faca, encostá-la à crosta do bolo, os dentes<br />

entreluzidos de metal. Mas não se move mais. Está hirta, fixa, no instantâneo da memória.<br />

Curva-se um pouco para o bolo, mas tem a faca soerguida e está de lado para nós.<br />

Está assim imóvel, num rebrilhar de dentes. A faca oblíqua ao bolo, parada. Um sorriso<br />

estrídulo de metal. Estaca-me a sua imagem na lembrança. A faca. A face. O trilo vivo<br />

dos dentes. A sala um pouco obscura na tarde. Estamos todos imóveis. A criada tem um<br />

braço no ar, imobilizada no seu gesto. O tempo fixo. (SS, p. 132-135).<br />

Só a extrema beleza poética deste texto e a densidade do seu simbolismo justificam<br />

transcrição tão longa. No seu decorrer estão os sinais visíveis de uma ordem invisível, uma<br />

ordem ancestral e sígnica, que não se questionava porque simplesmente estava certa como<br />

um absoluto ou como um dogma e que envolvia no mesmo manto o Homem, o mundo do<br />

Homem e a própria ordenação cósmica. Os meninos sabem o que vai na bandeja mas fazem<br />

de conta que não, para que a descoberta, ao final, seja coberta de espanto, como a o-<br />

corrência de um milagre. À ressurreição pascal, ao alimento e à própria alegria disso que o<br />

bolo representa corresponde o ressurgir da vitalidade natural, nos brotos novos que “estalam”<br />

nas árvores e nas suas promessas de flores e de frutos. A pureza da oferenda está de<br />

acordo com a inocência da infância, e o sagrado que está no seu signo essencial justifica o<br />

rito da condução e entrega em procissão. O ritual, que envolve um processo de transferência<br />

dos atos entre as pessoas que dele participam, exige a concentração, o silêncio e o respeito,<br />

porque está carregado de mistério e de verdade. E exige também os elementos concretos<br />

transformados em símbolos – sinais visíveis – que passam a ser os objetos utilizados<br />

ou “participantes” nesse rito quase litúrgico: a bandeja, um pano alvíssimo e bordado, a<br />

mesa posta, cálices novos nítidos, vinho fino, bolos, a faca e o Bolo da Páscoa, “como um<br />

deus nascido”. “Havia um mistério de sagração, antiqüíssimo, o sinal visível dele – o bolo<br />

intacto perfeito. [...]. Acumulara-se nele a dádiva das gerações, requintada apurava-se a<br />

essencialidade dos séculos. O bolo. Íntegro, selado na sua nudez. Nítido preciso. Único.”<br />

(SS, p. 134).

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