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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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de rituais sagrados de poesia e de grata comunhão, como o da entrega do bolo da Páscoa,<br />

levado em procissão pelas crianças (como um símbolo religioso dado em ofertório) a um<br />

destinatário em quem se ocultava o signo da autoridade benfeitora à qual era preciso homenagear<br />

e agradecer em dia de festa. Tão grande e de tamanho significado, esse dia festivo,<br />

que era o do próprio ressurgir da vida presente em todos os sinais sensíveis à emoção, à<br />

memória e a todos os sentidos que a eles se abriam:<br />

Gertrudes veio da cozinha com uma bandeja tapada com um pano alvíssimo e bordado,<br />

põe-na nas mãos da minha irmã. [...]. Sei o que vai na bandeja, aroma quente na minha<br />

memória, fechado intenso interno, ergue-se da bandeja à minha lembrança, à minha e-<br />

vocação, centrado morno, é o calor do lar. Estala de alegria a vitalidade da terra, os borbotos<br />

estalam nas árvores novas. Entrelaçados fios de luz no trilo dos pássaros, ó festa<br />

pura, as águas tresmalham-se pelos campos na abundância de ser, o céu é puro como<br />

uma face. E imediatamente os três em linha [...]. E a tua graça, Magda, em silêncio os<br />

três, graves [...]. Magda leva a bandeja nas mãos. Obedecemos a um mandato antiqüíssimo,<br />

silenciosos direitos, o passo certo, olhamos em frente o traçado reto da nossa missão.<br />

[...]. Ao centro, minha irmã, como se com uma oferenda aos deuses. Como se numa<br />

procissão. Inteiros de respeito, irrealiza-se à nossa volta a festa da natureza, o perfume<br />

que passa no ar, [...]. Não passa ninguém na rua, irreais fantásticos os três, ouço o ritmo<br />

concreto dos nossos passos. Magda sustém a bandeja, nós os dois de cada lado, olhando<br />

em frente. Levamos uma missão traçada na eternidade, olhamos em frente a reta do destino.<br />

[...] estacamos paralelos diante da porta da casa. Mas a porta abriu-se logo, uma<br />

criada correu o trinco, [...]. Estamos parados à porta no começo do corredor, aguardamos.<br />

Até que no outro extremo apontou D. Clotilde, [...]. Finalmente chegou até nós, ficou<br />

um instante imóvel, sorriu. [...]. Depois vergou-se um pouco sobre Magda, pôs-lhe<br />

um beijo na testa, pôs um beijo na testa a meu irmão e a mim. Delicadamente tomou a<br />

bandeja das mãos da minha irmã, sorria sempre [...]. Passou-a ritualmente à criada, a-<br />

vançamos todos ritualmente pelo corredor. A sala de visitas era a meio, a criada abriu a<br />

porta, entrou ela na frente com a bandeja no ar. [...]. Uma luz doce de igreja, a criada<br />

pousara a bandeja. Pousara-a na mesa a um dos extremos da sala, a mesa está posta. Cálices<br />

novos nítidos, a luz vibrava neles. E bolos. Havia no meio uma garrafa de vinho<br />

fino. D. Clotilde vergou-se para a bandeja, tomou em dois dedos uma ponta da toalhinha<br />

que a cobria. Ergueu-a devagar, nós expectantes no ato da revelação, sentados imóveis.<br />

E a toda a extensão da bandeja, amarelo e castanho, tenro, o bolo da Páscoa. [...]. Havia<br />

um mistério de sagração, antiqüíssimo, o sinal visível dele – o bolo intacto perfeito. Isosa,<br />

Pedro, tu puxas-me no largo da igreja, depois é a tua vez – a face cosida de sisudez. Uma interrogação<br />

sobe em mim e o insuportável do enigma. O grito em delírio da vida em face da estupidez da morte, sobe<br />

em mim, vibra-me nos olhos nublados. Que estranho tudo isto, porque é que estás aí?” (SS, p. 98-99).

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