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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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246<br />

num passado recente 80 . Na aldeia/passado-remoto estão a infância do narrador e os ancestrais<br />

e invisíveis (mas por todos compreendidos e aceitos) fundamentos de uma ordem de<br />

sempre, uma “harmonia invisível” organizadora do universo. Os signos e os sinais da autoridade,<br />

do poder, do sagrado, do humano, do cósmico, da vida, da morte, da animalidade<br />

no homem... Na aldeia/passado-recente estão o questionamento desses signos e a sua derrocada,<br />

transformação ou, radicalmente, a sua anulação: o grotesco do envelhecimento<br />

caquético do pai, a sua morte, a indefinida destinação do patrimônio paterno (a fábrica), o<br />

terremoto, a revolução, a destruição da aldeia “desde os seus fundamentos”, que eram também<br />

os fundamentos de uma ordem anterior e da sua invisível harmonia de sempre.<br />

É nessas duas instâncias – aldeia/passado-remoto e aldeia/passado-recente – que se<br />

inscrevem as micronarrativas que compõem a fragmentária ação de Signo sinal. À primeira<br />

instância pertencem episódios tão significativos quanto os da comovida evocação da infância<br />

(infância da “substância íntima” do ser, da sua “morada”, infância “de nunca” e da “legenda”<br />

– SS, p. 43) alimentada pelos frutos da terra, testemunhando a fabricação do vinho<br />

e do pão, cheia de inesquecíveis cheiros para toda a vida... assistindo, assombrada, à matança<br />

do porco, com o seu ritual de evidente paganismo mas emoldurado por sinais cristãos...<br />

81 . Ou, estarrecida, presenciando um outro ritual de morte, sem dúvida muito mais<br />

trágica e misteriosa de fascínio e espantado horror que a do porco, o da morte e funeral de<br />

uma criança – o menino Pedro, filho de Tiago 82 . Infância maravilhada por outros mistérios<br />

80 Luís Mourão chama ao tempo remoto da infância do narrador de “tempo evocativo”, opondo-se, este tempo,<br />

ao “tempo de pesquisa”, que o ensaísta situa no passado recente do protagonista, em que se dão o terremoto<br />

e a revolução, elementos destruidores dos “fundamentos” do mundo anterior e que constituem um<br />

novo tempo (de “pesquisa”) que o narrador procura entender. O estudo de Mourão considera ainda um terceiro<br />

tempo, o da “fruição”, que seria o tempo da plenitude. (Cf. MOURÃO, Luís. Op. cit., p. 328, 337,<br />

346, passim). Na diegese tudo isto se intersecciona, como se interseccionam os espaços da praia e da aldeia.<br />

81 “Desde que me lembro era todos os anos assim. Normalmente acordávamos já começara o sacrifício. Ou<br />

não bem ainda, arrastava-se a vítima para o altar. [...] era na calçada ao lado da casa, já lá estava a tábua do<br />

altar. [...]. O matador erguia contra a luz a longa faca triangular, passava-lhe a mão no fio. Estava só, a-<br />

lheio a tudo. Vejo-lhe a figura alta, enorme. Só. Sacerdote antiqüíssimo, sagrado de gravidade. [...]. O sacerdote<br />

extático, subia-lhe a cabeça até à noite. [...]. Tinha um poder oculto e imenso, concentrava-se todo<br />

na sua grandeza. [...]. Ergueu ao alto a faca como uma espada, traçou na fronte, com ela erguida, o sinal da<br />

cruz. E dobrando-se para o animal raspou-lhe ligeiro um sítio no pescoço.” (SS, p. 77-78).<br />

82 “Minha mãe exasperou-se, que tinha eu que ir ao enterro? e era um dia de neve. [...] eu queria tanto pegar<br />

às borlas do caixão. [...]. Minha mãe enfureceu-se, eu esperei que se distraísse, fui apanhar ainda o enterro<br />

à igreja. A urna aberta sobre um banco na coxia, vejo o Pedro – de que é que morreste? [...]. Esvaído de<br />

palidez, os lábios roxos, os olhos cerrados. Vejo a igreja, da minha distância de adulto, um longo túnel de<br />

sombra. Pelos altares aos recantos, os santos imóveis, as faces de espectros à luz dos círios. É uma tarde<br />

cinza, entra a claridade baça pela grande porta aberta. Olho-o agora do fundo da memória, para o espaço<br />

de neve lá fora. [...]. Nós juntamo-nos, os garotos, à roda do caixão, um terror frio no olhar, fitamos fascinados<br />

o pequeno corpo morto. Meu Deus. Que é que quer dizer a morte? A face esmaecida, os olhos pregados.<br />

Tudo tão misterioso. E é como se um estranho impulso em mim, sacudir o corpo imóvel, dar-lhe um<br />

berro – o que é que estás aí a fazer? Há neve lá fora, vamos fazer uma bola grande, trago uma tábua de ca-

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