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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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ou ultrapassar a muralha do Seminário do Fundão, decerto severamente guardada pela autoridade<br />

pedagógico-religiosa que ali não deixava entrar aquelas desassossegadoras vozes<br />

do mundo, por mais cultas e originais que fossem, certamente outros ruídos, outros gritos,<br />

outras vozes, outras escritas – ou mesmo apenas os seus diluídos ecos – ali também não<br />

chegaram. Talvez nas aldeias montanhesas do interior português não se tenha sabido muito<br />

bem de uma guerra que convulsionou o mundo. E, se mesmo sem consciência disso, ali se<br />

tenham sofrido as conseqüências materiais dessa guerra, por certo nada relativo aos bens<br />

da cultura, às coisas do espírito, ao nebuloso universo da Arte procedentes de outros mundos<br />

de além-fronteiras ali terá chegado. Até porque, esses bens do espírito exigiam, para<br />

serem compreendidos e fruídos, uma iniciação que não se podia fazer na montanha, onde<br />

tantas outras carências eram tão mais urgentes. Os caminhos da montanha ficavam muito<br />

longe desse extraordinário universo da cultura e da arte. Só muito mais tarde o adolescente<br />

Vergílio, que viria a ser professor e escritor, ouviria falar das vanguardas européias. Só<br />

muito mais tarde de um Gide, um Kafka ou um Joyce. Só muito mais tarde também de um<br />

Raul Brandão, José Régio e a Presença.<br />

Só muito mais tarde – já trocado o ensino religioso do Seminário pelo do Liceu A-<br />

fonso de Albuquerque, na Guarda, seguido depois pelo da Faculdade de Letras da Universidade<br />

de Coimbra – Vergílio Ferreira impulsionaria decisivamente a sua iniciação intelectual<br />

em direção à literatura, à filosofia, à criação e ao conhecimento da Arte. Desse passado<br />

vivido, que para ele até o final dos anos de 1930 era ainda um passado recente, a memória<br />

guardaria registros que um imaginário intensamente emotivo e carregado de elementos<br />

simbólicos mitificaria num rico e complexo processo de criação, ou representação, ou recriação,<br />

ou transfiguração artística. Nada da experiência de vida de Vergílio Ferreira foi<br />

desprezado por ele na laboriosa construção do seu universo literário. Sem resvalar para um<br />

autobiografismo fácil e que poderia resultar desinteressante, o escritor viria a ser exemplo<br />

de como é possível presentificar toda uma existência física, espiritual, cultural, emocional<br />

numa obra literária que se dividiria ou subdividiria pelo romance, pelo conto, pelo ensaio e<br />

pelo diário, colocando a si mesmo no centro de tudo isso mas ao mesmo tempo transcendendo-se.<br />

Presentificando-se – em intensa emoção e aguda sensibilidade, sobretudo nos<br />

romances – mas ao mesmo tempo ocultando-se por trás de uma cortina – ora espessa ora<br />

diáfana – ou de uma densa tapeçaria que vai tecendo como quem constrói um imaginário<br />

universo. De símbolos, de recorrências metafísicas, de espaços e representações alegóricas,<br />

de um intenso e obsessivo pensar as grandes questões do ser humano, os grandes proble-

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