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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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228<br />

A intenção ensaística de Rápida, a sombra, é evidente. Embora só ao final isso venha<br />

a ser claramente perceptível, o romance guarda uma reflexão sobre o processo de criação<br />

romanesca. Será mesmo isso o que nele mais importa: o processo criador – atribuído<br />

no romance ao protagonista Júlio Neves, mas que, como se poderá ver, tem toda uma intensa<br />

semelhança com o do próprio Vergílio Ferreira 49 – e a dimensão humana da arte. Mas<br />

meço do ciclo, forma excelente do percurso aprisionado no mesmo.” (GODINHO: O universo imaginário<br />

de Vergílio Ferreira, p. 56).<br />

49 O processo de “gestação” mental de um romance novo que o romancista se prepara para começar a escrever,<br />

aqui representado pela atitude de Júlio Neves, que durante toda a tarde imagina a trama do seu próximo<br />

livro, é em tudo semelhante ao processo de criação do próprio Vergílio Ferreira, a acreditar nos vários<br />

registros do diário em que ele a isso se refere com emoção. Uma “visita” à Conta-Corrente pode revelar<br />

passagens como estas:<br />

“De vez em quando, inesperadamente, ilumina-se-me o romance que pretendo escrever. E um prazer,<br />

um encantamento, envolve-me todo. Penso então que vou, enfim, realizar o livro. Pode chamarse<br />

A Casa do Homem – não gosto do título dele. Mas amanhã sei que voltará a secura, o desinteresse.<br />

Que a excitação larvar continue a sustentar-me. O que me falta para o livro: uma estrutura narrativa<br />

que não repita as já usadas. E não caia no tradicional.” (CC1, p. 274). “Quando retomarei o romance?<br />

Pela primeira vez sonho um título que deve ficar. Para sempre – já o disse e repeti. [...].<br />

Tanta coisa, porém se me atropela na imaginação. Queria no entanto um romance fechado, totalizado,<br />

com uma convergência de todos os elementos em direção ao seu centro.. Como fiz noutros livros.<br />

Mas o centro convergente foge-me. [...]. Mas queria uma ‘história’ que tornasse necessários<br />

todos os pormenores do livro, todas as suas personagens. E assim passo horas e horas preso dessa<br />

procura e do encantamento do livro. Porque aí mesmo também o encantamento me basta, e imaginar<br />

o livro é um prazer tão grande, que é como se o escrevê-lo o estragasse. Mas as boas obras imaginadas,<br />

como tudo o imaginado, e que inundariam o universo, simplesmente não existem. E eu queria<br />

que a minha existisse, não apenas para mim mas para os que através dela recuperassem o que senti e<br />

tivessem a fração de encantamento que eu pudesse transmitir-lhes.” (CC2, p. 261). “Revolve-me por<br />

dentro o projeto do novo romance. Horas e horas à espera que o poço encha. Hoje ressumou bastante<br />

água. Se tenho mais uns dias assim hídricos, dentro em breve começo a despejar.” (CC4, p. 78). “Feliz.<br />

Porque não dizê-lo? Comecei um novo romance. E é tudo como se começasse o primeiro romance<br />

da minha vida. De nada mais preciso do que de escrever um romance. Estar dentro da sua possível<br />

fascinação. Estar com o melhor de mim. Viver no encantamento por alguns meses. [...]. Vou ser<br />

feliz durante muitos meses. Vou ser vivo da única maneira por que entendo a vida. Que o mais dela<br />

colabore para que eu realize o que é nela o mais. Feliz. Banhado de beatitude. É o que queria dizer e<br />

não sei, deste sentir-me em abundância e pacificação e quase êxtase, apenas porque longo tempo me<br />

entretive a imaginar o meu romance. O tom. É o filtro por onde tudo passa e é o que o livro definitivamente<br />

é.” (ibid., p. 362). “De vez em quando o poço donde tiro os romances dá-me sinal de que a<br />

água está a subir. E naturalmente fico excitado como se fosse o primeiro ou o definitivo. Não é. [...].<br />

Um projeto que se me esboça com uma certa obstinação seria a convocação de tudo o que marcou o<br />

narrador (amores, pessoas, livro, etc.) para saber o que lhe resta disso e o que lhe é. Seria assim um<br />

embrechado de histórias que na sua desconexão dessem o saldo de uma vida finda. Mas é projeto<br />

que me não entusiasma muito, apesar da sua insistência. [...]. Mas eu não quero mais glória, quero só<br />

continuar vivo da forma única de o estar.” (CCnsII, p. 321). “Ah, se eu me apanho com o poço que<br />

dá romances já cheio. [...]. Um romance, um romance. Visitar uma vez ainda a alegria, o encantamento<br />

e o êxtase O êxtase. Aí está o que eu queria habitar. Um romance ‘místico’. Coisa de saltar<br />

por sobre as nuvens chuveiras que me ensombram o céu e dar de caras com o sol. E ficar aí dissolvido<br />

na sua claridade. E esquecer a miséria, a degradação e a morte. E a ruína. [...]. Um romance. Que<br />

importa que eu morra antes de ele morrer? Estarei na plenitude de mim. No fulgor e deslumbramento.<br />

E morrerei comigo mesmo. Um romance ainda. É a terra do meu ser sensível.” (ibid., p. 334).<br />

Não é difícil reconhecer no tom destes registros do diário – particularmente deste último –, a semelhança<br />

com o tom de Júlio Neves, no último capítulo de Rápida, a sombra. A outra e fundamental semelhança en-

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