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meio para amanhã o continuar, ser apanhado pelo seu arranque. Tomo a caneta. A folha<br />
em branco – a aridez do deserto a percorrer. E trêmulo, escorrido de medo, de uma oculta<br />
alegria em que se não acredita. Tomo a caneta. Como quem fecha os olhos, se abandona<br />
ao destino – Capítulo I. Não leio. Mal escrevo. [...]. Um livro. E travado, reteso de<br />
expectativa:<br />
“Meto a chave à porta de casa, rodo-a duas vezes antes de puxar o trinco” – vou<br />
escrevendo. “Logo Irene não está. Às vezes fecha-se por dentro, mesmo de dia. [...]. A<br />
casa sufoca de calor”.<br />
[...]. Não sei exatamente o que vou contar, a história invento-a ao contá-la, sei só<br />
que toda ela há-de ser imaginada pelo narrador. E que no fim se verá que é imaginada –<br />
Irene regressa tarde a casa, o narrador pergunta-lhe<br />
– Porque te demoraste?<br />
E ela explica [...]. Sento-me no sofá, penso todo o capítulo para amanhã. O giradiscos,<br />
o raio de sol cruzando os livros, o retrato de Helena emergindo do mar. (RS, p.<br />
272-274).<br />
O processo é claramente o da mise-en-abyme. O romancista Vergílio Ferreira escreve<br />
um romance em que imagina a sua personagem, Júlio Neves, romancista, elaborando<br />
mentalmente o próximo romance que vai escrever. Motivam-no a casa vazia pela ausência<br />
da mulher, por quem (para o romance a escrever), se vai imaginar abandonado, o calor<br />
sufocante da tarde, a música da flauta que se ergue do disco reproduzido no aparelho de<br />
som, as sucessivas doses de whisky que vai tomando enquanto pensa e ouve música, as<br />
lembranças da aldeia e dos familiares mortos, uma Helena (sua mulher) jovem, que, quando<br />
envelhecida, ele deseja substituir por Hélia. A fusão Helena-Hélia, com toda a carga de<br />
contradições, indefinições e angústias dela decorrentes para o narrador, deverá ser resolvida,<br />
provavelmente, no universo do romance a escrever por Júlio Neves com a criação da<br />
personagem Irene, mulher do narrador, que então já não será Júlio Neves mas o protagonista<br />
do seu romance 48 .<br />
48 Em certo ponto da mentalização do romance que vai escrever, Júlio Neves diz que Helena “é um enigma”<br />
que ele “não sabe resolver. De um lado, o esgotamento de todas as possibilidades de te reinventar, [...] do<br />
outro a necessidade da tua presença. Como um suporte.” (RS, p. 68). Portanto, Helena é “suporte” para<br />
que, através de Hélia, o narrador a reinvente em plena juventude. Mas Helena e Hélia, para além da diferença<br />
de idades terão ainda outras diferenças, porventura mais profundas, a da essencialidade, por exemplo.<br />
Quando a “reinvenção” de Helena se transfere da realidade de Júlio Neves para a ficção do seu romance,<br />
transfere-se, também, para a personagem Irene, que poderá ser (e só Júlio Neves o poderia afirmar,<br />
se pudesse...) uma espécie de síntese, entre os elementos contraditórios que são Helena-Hélia. Sobre o assunto,<br />
vale a pena transcrever uma passagem de Helder Godinho: “em quase todos os livros de V. F., aparecem<br />
personagens ou entidades gêmeas [...] ou equivalendo-se em termos de Princípio e de Fim – e aí encontramos<br />
Hélia que recupera a Mulher, quando Helena está velha, para a fascinação do início. É o reco-