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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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226<br />

[...] o ascensor pára no patamar, ouço o correr das grades, o bater da porta. A chave<br />

no ferrolho, Helena enfim. Vem ao longo do corredor para o escritório, dá-me o beijo<br />

breve do regresso. (RS, p. 269).<br />

Portanto Helena não se fora embora. Júlio Neves não fora abandonado pela mulher.<br />

– Demoraste-te – disse eu.<br />

– Tens isto cheio de fumo [...].<br />

– Que é que te aconteceu? Vamos jantar a boas horas. (Ibid.).<br />

Mas não acontecera nada de especial. Simplesmente ela “fora a compras”. E pergunta<br />

ao marido: “– Tens um papel em que escreva? Desconfio que fui roubada.” (ibid.). E<br />

ele, que tem um papel na mão, “– serve este? Escrever um livro ainda – que é que tens ainda<br />

a dizer? A velhice, o desencanto de tudo. A noite que cresce.” (p. 269-270). Tudo se vai<br />

então tornando claro, desde o início deste derradeiro capítulo do romance, espécie de chave<br />

para a compreensão do livro todo, em que o narrador se diz abandonado pela mulher, que,<br />

afinal, regressa a casa pela noite, tendo ido simplesmente “a compras”. Júlio Neves não se<br />

surpreende com a chegada da mulher, que vê com naturalidade, havendo mesmo, pouco<br />

antes, manifestado preocupação por sua demora, olhando o relógio com inquietação (“horas<br />

já de ter vindo”). Não se refere ao bilhete que ela deixara e dispõe-se a começar a escrever,<br />

naquela mesma noite, um novo romance que se chamará Anoitecer e que contará<br />

uma história toda imaginada pelo narrador “e que no fim se verá que é imaginada” (p.<br />

273). E é então que se vem a saber que o que se passara ao longo de todo o livro de Vergílio<br />

Ferreira era a mentalização do romance que será escrito por Júlio Neves e cujo primeiro<br />

capítulo terá o início exatamente igual ao de Rápida, a sombra. A folha de papel que Júlio<br />

tem na mão e que dá à mulher para a verificação das contas, seria, porventura, a folha onde<br />

principiaria a escrita do romance.<br />

Escrever ao menos o começo, sei do resto apenas que anoitece à minha volta. E rápido,<br />

antes que o impulso se desvaneça. [...] sento-me à secretária, tomo uma das folhas<br />

largas em que me dá jeito escrever. O título. É a primeira coisa que se escreve e a última<br />

que se adota. Vou chamar-lhe ANOITECER, é o que de momento me lembra [...]. A<br />

primeira frase toda na cabeça – não sou depois capaz de emendar as folhas no papel. E o<br />

ritmo dela, o ondeado do meu balanço interior. Um livro. Respirar ainda o que em mim<br />

me coube ser humano. Mas não posso hesitar toda a noite. Deixarei depois o impulso a

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