21.05.2014 Views

JOS RODRIGUES DE PAIVA

JOS RODRIGUES DE PAIVA

JOS RODRIGUES DE PAIVA

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

quando regressa a casa, com vento e chuva a bater nas vidraças, Helena diz-lhe, de costas,<br />

enquanto arruma as louças do serão:<br />

225<br />

– As visitas já se foram. Por onde andaste todo este tempo?<br />

Ouço a pergunta na música do disco – por onde andaste todo este tempo? Regressa<br />

à tua origem, uma flauta te chama, ressoa à infinitude do horizonte. (p. 162-163).<br />

A atividade de arrumar as louças em que Helena se ocupa, será talvez a simbolização<br />

do gesto de arrumar a vida ou os trastes dela, o que dela sobra como os restos inúteis<br />

de uma reunião em que se comeu e bebeu, sendo necessário, depois disso, limpar tudo o<br />

que se sujou e arrumar tudo o que se tirou dos lugares para que a vida prossiga. Para Júlio<br />

Neves o que importava era arrumar tudo ou tudo encerrar para regressar às origens, ao som<br />

de uma flauta que o chama incessantemente e que ressoa até “à infinitude do horizonte.”<br />

Enquanto o raio de sol percorre, na estante, as várias seções da biblioteca de Júlio<br />

Neves, começando por uma História da música e passando pelos filósofos, pelos políticos,<br />

pelos poetas, pelos romancistas... enquanto entardece, enquanto anoitece, ele rememora e<br />

imagina relembrar a sua vida passada. Recolhido a uma espécie de clausura, a do seu gabinete<br />

de trabalho, é pela fluidez e as incertezas da imaginação e da memória que em liberdade<br />

se move na reinvenção da vida. E “a tarde apaga-se devagar, o raio de sol amortece<br />

sobre a seção metafísica” (p. 246) enquanto Júlio prossegue o seu percurso, a sua busca.<br />

Hélia, a aldeia... “Uma muralha de livros na sombra. A noite que desce” (p. 255).<br />

O mar embate pelo silêncio da praia, desce-me como um capuz a noite pela face,<br />

alastra à minha volta, pela muralha de livros, ofegante estremece o tráfego na avenida.<br />

[...] porque se demora tanto minha mulher? Começo a estar inquieto, olho o relógio,<br />

horas já de ter vindo. Tomo o copo de uísque, acendo ainda um cigarro. Os livros<br />

mudos na sombra. Apago o gira-discos que já há muito não ouço. Pedrinho dá um grito,<br />

estilhaça os vidros do espelho. Os livros mortos nos túmulos. (RS, p. 266-267).<br />

E é então – logo ao início do capítulo XXVI, o último – que tudo se esclarece: o logro<br />

em que a narrativa mantém o leitor desde o início, uma certa ironia da narração utilizada<br />

como estratégia de “meditação” sobre o processo de criação romanesca:

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!