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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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aprender ainda, para retificar a vida, o que era já impossível, porque “a escola fechou”.<br />

Regressar aos seus mortos estando ele próprio morto, na alma, tendo morrido num país que<br />

não era o seu. Porque era aquele, o da aldeia, o seu reino. Sofria assim o seu castigo, ele, o<br />

“perjuro”, o “renegado”, pela ousadia da aventura que o levara a enganar-se “na porta da<br />

vida que não era a sua”, vida que quis tornar “decifrável em letra miúda” de intelectual, de<br />

escritor, “e não em letras gordas, desenhadas à mão grossa da sua caligrafia” de homem<br />

natural e rústico e apenas basicamente letrado. A aquisição do saber também é razão de<br />

sofrimento. O “castigo” aplicado ao “renegado” é por aquilo que ele “quis ser em complicados<br />

modos de ser e não no modo único de ser que é apenas ser.” (RS, p. 79).<br />

Regressar aos mortos e sentindo-se morto ele mesmo, o regressado. Por isso o rememorar<br />

de Júlio Neves se mescla com o seu imaginário. Nas suas lembranças de uma<br />

certa ida à aldeia, encontra a mãe agonizante, assiste à sua morte (“Está serena, inteira,<br />

com a vida esgotada até ao fim” – p. 80), mas não fica para o funeral (“Não fui. Hoje não<br />

fui. Talvez cá volte para assistir” – p. 83). Depois, quando se julga abandonado pela mulher<br />

que lhe deixou o lacônico bilhete (“Vou-me embora”) e imaginando-a ir viver com o<br />

poetastro Máximo Valente, é que decide regressar à aldeia, para sempre. Para morrer e verse<br />

morto, na casa morta e vazia, por cuja porta entrara com ele um “halo de claridade” esboçando<br />

“as coisas na sombra. E é como se aberta a porta do [seu] jazigo, [ele] estendido<br />

ao meio da sala e à [sua] volta as coisas mortas [com ele]” (p. 230).<br />

Um sino vibra ao longe, tece em ecos pelo espaço a notícia da minha morte. Estou morto,<br />

bem sei. No meio da sala, estendido ao comprido, eu sozinho a velar-me de costas,<br />

não quero olhar-me. É para isso que aqui estou, para velar o meu cadáver, a ver se cumpro<br />

em decência a minha obrigação. (RS, p. 232).<br />

Mas este regresso definitivo de Júlio Neves à casa da aldeia, é numa espécie de<br />

“transe” que se dá, durante um dos serões, na sua casa, com os artistas medíocres que a<br />

freqüentam. Não suportando a conversa nem os conversadores Júlio Neves escapa pelo<br />

caminho da imaginação: “se eu fosse até à aldeia tomar um banho? Ou visitar Hélia? [...].<br />

E se eu fosse até à aldeia? agora que a discussão está a aquecer.Tenho mesmo de decidir.”<br />

(p. 143). E decide ir para a aldeia. Por lá andou longo tempo, conduzido pela memória,<br />

pela imaginação e por uma intensa emoção que sente pelo regresso às origens, pelo reencontro<br />

com os seus mortos – a mãe, o pai, as tias velhas –, com a casa da ancestralidade e<br />

com a que fizera para si no alto de um monte. Mas haverá de retornar à sua realidade, e

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