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falta para morrer” (p. 47) e era isso que faltava que ele queria ainda viver. Júlio gostava de<br />
Hélia porque ela “era jovem e isso é belo por si, porque ser jovem é estar na vida e o amor<br />
é o máximo dela.”<br />
Mas Hélia será sempre, para Júlio, apenas um anseio de vida e de futuro, porque a<br />
junção ou a posse, na realização amorosa, nunca se vai concretizar. Sem conseguir fundir a<br />
velhice à juventude, vai-lhe restar a alternativa do regresso à aldeia para reencontrar o passado<br />
e as origens. E o desejo de regresso se impõe cada vez mais forte, ao longo de um<br />
serão com os literatos freqüentadores da sua casa, ao longo da conversa que ele já não ouve,<br />
porque ouve já então apenas a sua dúvida, a sua questão que era a de ir “até à aldeia<br />
tomar banho” ou “visitar Hélia”: “E se eu fosse até à aldeia? agora que a discussão está a<br />
aquecer. Tenho mesmo de decidir. Ou ir visitar Hélia – mas como podes iludir-te? Regressar<br />
à juventude e à invenção do futuro – regressar à origem como o bicho à sua toca. Fechar<br />
o círculo.” (p. 143).<br />
O tema do regresso à aldeia é recorrente como um leitmotiv ou uma frase musical<br />
que se insinua na narração desde o seu início. Por isso, também Rápida, a sombra tem alguma<br />
coisa de estruturação musical na sua concepção. Não se trata simplesmente de fazer<br />
referências temáticas à música, de que a audição de “Amanhecer” é a mais explícita e o<br />
encantamento produzido pelo solo de flauta, ouvido ou imaginado por Júlio Neves, a mais<br />
amada e comovente: é mesmo de uma questão “composicional” que se trata, e de um aspecto<br />
técnico de que a narrativa, muito discretamente, quase imperceptivelmente, lança<br />
mão e que se realiza, de modo muito sutil, como um dos traços de maior refinamento da<br />
arte romanesca vergiliana.<br />
O desejo de regressar à aldeia é exatamente sugerido pela música que se levanta do<br />
gira-discos:<br />
Regressar à origem. E neste instante o disco ainda. Ouço-o. Há um trecho no terceiro<br />
andamento, é um trecho breve – como me dói. Uma flauta passa entre a floresta de cordas.<br />
Ressoa solitária, onde? pelos montes, pelos vales, [...]. Voz da noite no claro amanhecer.<br />
[...]. Regressar às origens – regressa à tua origem. Afastado dos humanos, entre<br />
o silêncio dos mortos, fundido à germinação escura da terra, no revolver interno da seiva<br />
e do estrume. Uma flauta ressoa aos confins da vida. Intensa, profunda. Excessiva.<br />
(RS, p. 24).