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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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morto esse duplo, dá-se, por conseqüência, a morte do próprio ser que ali se refletia. Pedrinho<br />

morre vitimado pela incapacidade que tem de conviver com o outro (que é ele próprio)<br />

e consigo mesmo. Incapacidade tributada à mãe, que o isolou dos outros e de si próprio,<br />

para isso expurgando a casa de espelhos, porque lera, não se sabe onde que “os espelhos<br />

eram a forma de nos descobrirmos, de nos dobrarmos sobre nós, de criarmos o duplo de<br />

nós. Uma ‘alma’. De criarmos o tempo, o antes e depois e o depois de todos os depois. E o<br />

porquê.” Fizera viver o filho numa “casa lisa, esterilizada, limpa”, nua de quadros e de<br />

espelhos, “desinfetada como um hospital”. Não era uma casa natural, uma casa para abrigar<br />

a vida e onde se viver. Por isso Júlio Neves a considerava “estranha” e “arrepiante” e<br />

diz que entrava nela “como num túmulo. Uma prisão”. 45<br />

O episódio de Pedrinho tem tudo para ser considerado uma alegoria ou fábula cruel<br />

sobre a disjunção entre o homem e o mundo, o homem e os seus semelhantes, o homem e<br />

ele mesmo 46 . Disjunção que sinaliza a absoluta solidão humana, o desencontro do homem<br />

com tudo o que o cerca ou que é ele mesmo, e que existe também, ou que persiste, noutros<br />

aspectos do romance, nas relações, ou na impossibilidade delas, entre Júlio Neves e o<br />

mundo de que faz ou deveria, em princípio, fazer parte. Júlio Neves é escritor, e com os<br />

seus pares deveria, em tese, se relacionar e idealmente relacionar-se bem. Mas não é assim.<br />

O grupo de escritores (principalmente poetas) que circunstancialmente freqüentam a sua<br />

casa e ali se reúnem em conversa sobre a Arte são vistos pelo olho da ironia, desde os nomes,<br />

o Osório, o Sabino, o Nepomuceno, o Máximo Valente, este, um “poetastro chilro<br />

com versinhos em pílulas” (p. 22). Osório “era um literato circunstancial, fazia crítica versos<br />

teatro novela. Entrava-lhe a testa pela cabeça dentro. Depois começava a cabeleira e<br />

continuava até aos ombros.” (p. 142). São todos artistas medíocres, cuja conversa Júlio<br />

45 O espelho, com toda a sua carga de mistério e simbolismo, com tudo o que pode estimular a imaginação,<br />

sempre foi um motivo de fascínio para V. F., que, freqüentemente e em diversas circunstâncias textuais, se<br />

utilizou da sua carga sígnica. O próprio escritor o revela numa passagem do seu diário:<br />

[...] porque é que uma imagem num espelho nos fascina pelo que nela há de igual e diferente do motivo<br />

refletido? Contei em tempos já não sei onde a minha experiência de miúdo quando via na janela<br />

de um ferreiro nosso vizinho, a imagem da estrada e a confrontava com essa estrada e descobria aí,<br />

digo eu, a imaginação. Porquê? (CCnsIII, p. 69).<br />

46 Disjunção é um termo que tomo de empréstimo a Helder Godinho e que aqui utilizo em acepção correlata<br />

àquela em que o ensaísta o empregou na obra fundamental que é O universo imaginário de Vergílio Ferreira,<br />

já por várias vezes citada no decorrer deste estudo. Helder Godinho chama disjunção à “eterna flutuação<br />

de uma unidade fraturada, num Presente que o não consegue ser [...], impossibilidade sublimada na<br />

re-invenção do Passado [...]” e afirma que “a Disjunção se fundamenta na impossibilidade de purificar o<br />

Presente na presença engolidora do Passado, purificação que se projeta em esperança no Futuro.” (GODI-<br />

NHO, op. cit., p. 17 e 18).

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