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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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216<br />

A citação é demasiado longa, mas necessária para preservar, na própria linguagem<br />

do romance, a violência, o absurdo, a carga simbólica, a dimensão existencial e a poesia<br />

cruel desta alegoria. O instante de pavor em que Pedrinho repentinamente vê a sua imagem<br />

refletida no espelho. Esse alarme, esse fulgor, essa vertigem, de imediato sugere a cena de<br />

Aparição em que Alberto Soares, criança, vislumbra no grande espelho do seu quarto mergulhado<br />

na penumbra da noite, uma imagem fugidia que julgara ser a de um ladrão e que<br />

só depois do alarme e do terror, acalmado pelos pais e conscientemente colocando-se frente<br />

ao espelho, descobre e certifica-se de que o que vira fugazmente fora a imagem de si<br />

mesmo 44 . Passado o momento de pavor, Alberto continuará convivendo com a sua imagem<br />

– que afinal já conhecia –, mas o impacto daquele instante fará acordar nele indagações<br />

que ainda não tivera (“Eu, porém, relembrava o meu susto à súbita presença de alguém que<br />

agora sabia ser eu” – Ap, p. 74):<br />

[...] no outro dia, assim que me levantei, coloquei-me no sítio donde me vira ao espelho<br />

e olhei. Diante de mim estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade<br />

que vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi<br />

os olhos, a face desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara. Pela<br />

primeira vez eu tinha o alarme dessa viva realidade que era eu, desse ser vivo que até<br />

então vivera comigo na absoluta indiferença de apenas ser e em que agora descobria<br />

qualquer coisa mais que me excedia e me metia medo. Quantas vezes mais tarde eu repetiria<br />

a experiência no desejo de fixar essa aparição fulminante de mim a mim próprio,<br />

essa entidade misteriosa que eu era e agora absolutamente se me anunciava. (Ap, p. 75,<br />

itálicos da citação).<br />

Alberto Soares começará ali a aprendizagem da aparição de si a si mesmo. Vai interiorizar<br />

essa experiência, torná-la cada vez mais subjetiva, mais abstrata, conduzi-la para o<br />

plano metafísico do ser, em busca do conhecimento profundo do ser, daquilo que está para<br />

além do corpo, para além da mera “psicologia”, para além de tudo... E quererá depois ensinar<br />

aos outros a sua própria experiência, para que também os outros possam ver, possam<br />

conhecer.<br />

O mesmo não acontecerá com Pedrinho, que não suporta a visão da imagem de si<br />

mesmo. Não suporta o alarme, o espanto, o terror que lhe arranca o pavoroso grito e que<br />

lhe move a mão e a leva a partir o espelho que se estilhaça em múltiplos pedaços. Assim se<br />

estilhaça também a imagem, o duplo do ser refletido no espelho, e, estilhaçado, destruído e<br />

44 Cf. Aparição, p. 73-75.

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