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215<br />
É uma casa nua, as paredes lisas. Fria. Sem um quadro, alguns livros pelo chão, os meus<br />
livros com as folhas por abrir. Então Milinha leu um dia não sei onde que os espelhos<br />
eram a forma de nos descobrirmos, de nos dobrarmos sobre nós, de criarmos o duplo de<br />
nós. Uma ‘alma’. De criarmos o tempo, o antes e depois e o depois de todos os depois.<br />
E o porquê. Coitado do Pedrinho. Uma casa nua desinfetada pura, entro nela como num<br />
túmulo. Uma prisão. Desinfetada nua como um hospital. Então Milinha concebeu a i-<br />
déia espantosa de suprimir os espelhos. Do guarda-fatos toillette vestíbulo onde em a-<br />
larme à entrada ou à saída a ver se estamos em perfeição. Da casa de banho – da casa de<br />
banho não. Porque enfim [...]. E em vistas disso taparam o espelho, um dispositivo mecânico<br />
de abrir e fechar, de cobrir e descobrir. Carregava-se num botão inserido no friso<br />
da moldura, Pedrinho não tinha imagem. Era puro na extensão de si às coisas como um<br />
animal. As mãos tocavam as coisas e as coisas e os olhos viam mas não sabia que viam<br />
ou tocavam. Um dia seria perfeito e havia de estar no mundo sem saber que havia mundo<br />
e que estava. Um dia havia de estar todo onde estivesse, punctual ao instante, sem<br />
perguntar “donde” ou “para onde” ou “quando”. Um dia seria imortal. A morte não lhe<br />
existiria porque a morte só existe quando ainda não existe e nada do que ainda não existe<br />
lhe existiria. Intacto ao suceder do tempo, à doença da memória, [...] coitado do Pedrinho.<br />
E um dia começou a interrogar porque é que? Havia tanto mistério – porque é<br />
que? Milinha respondia-lhe brusca, sabia que os deuses não perguntam, toda a miséria<br />
humana começava no porquê. Sabia que desencadeadas as perguntas, nunca mais acabavam<br />
até vir um dia uma sem resposta. Não havia porquê<br />
– [...]. As coisas são como são.<br />
Então ele interrogava-se sozinho. Sentado no chão entrava pelos brinquedos dentro<br />
até às tripas mecânicas, para saber. [...]. Ou estudava à janela a confusão do mundo lá<br />
fora. Era uma casa nua esterilizada pura. [...] Até que um dia, trepado a um muro da casa<br />
de banho – estremeço todo até às raízes de mim. [...]. Como posso eu contar? Como<br />
posso eu dizer, se tudo é tão excessivo, [...] inverossímil fulgor de nada, tão arrepiante,<br />
como posso eu contar? Pedrinho trepou a um banco, havia um botão inserido ao friso da<br />
moldura. E quando o seu dedinho minúsculo, inquieto e inocente. Um disparo sutil como<br />
uma força divina. E de súbito, a sua imagem inteira no espelho. Pedrinho ficou estarrecido,<br />
hirto de sufocação. Então não pôde mais e rebentou num grito horrível, longo,<br />
imenso, toda a casa oscilou. Num estalo seco, o espelho fragmentado, os estilhaços tilintando<br />
pelo mosaico do chão. Pedrinho punha as mãos na face, toda a casa balançava a<br />
um furor subterrâneo. Milinha acorreu desvairada, era um grito como nunca ouvira ao<br />
filho, ouvia-se nos limites do mundo. [...]. Um grito. Milinha tomou-o ao colo, escondeu-lhe<br />
a face no peito, velou-lhe enfim a imagem da morte. [...]. Era uma casa lisa esterilizada<br />
limpa. (RS, p. 223-227).