Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
214<br />
por sobre toda a gritaria, uma flauta branca, pura [...]. De horizonte a horizonte, voz do<br />
meu apaziguamento, ó voz terna como uma face. Ergue-se à altura do meu sofrimento,<br />
ondeia ao espaço da minha solidão. Pelos mortos que alinhados na minha memória aflita,<br />
me fitam imóveis, me fitam, pelo que sonhei e mentiu, pelo que sonhei e aconteceu e<br />
mentiu ainda por ter acontecido, pelos pecados da memória do que só é belo para depois<br />
[...] – uma flauta ecoa na vertigem de mim / ecoa solitária na sala. (RS, p. 200).<br />
Para continuar a análise do que em Rápida, a sombra há de mais visivelmente alegórico,<br />
importa lembrar o terceiro dos episódios desta natureza, que envolve, na sua composição,<br />
algumas das dominantes da ficção vergiliana, como, por exemplo, o choque de<br />
gerações entre pais e filhos, o desprezo dos jovens pela velhice, a sua recusa dos valores<br />
consagrados pela tradição, a inocência da criança vitimada pelo absurdo da existência, o<br />
espelho e a fotografia como forma de representação e de conhecimento. De tudo isto veio<br />
tratando o romance de Vergílio Ferreira ao longo da sua evolução e estes são alguns dos<br />
pontos que se constituíram em elementos temáticos recorrentes a que alguns críticos chamam<br />
ora constantes (Georg Rudolf Lind), ora dominantes (Maria Alzira Seixo) 43 .<br />
Júlio Neves tem uma filha, Milinha (Emília), que não se cansa de demonstrar o seu<br />
descaso ou o seu desprezo pelo pai: “Sempre foste um banana” (p. 18), “os teus livros cheiram<br />
a naftalina” (p. 94), “um dia o suicídio há-de ser obrigatório como os impostos” (p.<br />
213). É uma filha que já não é do pai, mas de si mesma (“que um filho morre-nos tão cedo<br />
– quando pela primeira vez diz ‘eu’ na vertical.” – p. 217). E que tem um filho, neto de<br />
Júlio, que se chama Pedro (Pedrinho). Vez por outra Júlio visita a filha – decerto mais pelo<br />
neto do que por ela –, mas não gosta de ir a sua casa, que acha “estranha, arrepiante” (p.<br />
220) e de que se sente excluído – e não só pelo genro (“como foi difícil pensar ‘o meu genro’!<br />
Um ser estranho enxertado no corpo inteiro da minha família” – ibid.), mas também<br />
pela filha, que já não era sua, e mesmo o neto, “o Pedrinho, tão giro e tão mal-criado” e<br />
sobre cuja educação – que o avô recriminara – a mãe dizia que o estava preparando “para o<br />
futuro, não para o passado”, recusando-se a adotar as normas de educação do pai, porque<br />
eram “uma violência” – “Toda a educação é uma violência” (ibid.). A casa de Milinha<br />
43 V.: LIND, Georg Rudolf. Constantes na obra narrativa de Vergílio Ferreira. Colóquio/Letras. Lisboa, n.<br />
90, p. 35-46, março de 1986, e SEIXO, Maria Alzira. Vergílio Ferreira, os modernos, os pós-modernos e a<br />
questão das dominantes: a propósito de Na tua face. In: _____ . Outros erros: ensaios de literatura. Porto:<br />
Asa, 2001, p. 213-221.