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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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213<br />

Era um quadro todo preto como as ardósias de instrução primária. Preto retinto, sem<br />

mais nada. Tudo tinta da China. Ao lado, numa banquinha rasa havia um tipo sentado.<br />

Era um tipo curioso. Tinha os ombros quadrados, a cabeça toda branca pendia-lhe para<br />

o peito. Todo o grupo se deslocou então para o quadro seguinte e quando lá chegou já<br />

lá estava sentado num banco raso e sem encosto um homem baixo, entroncado, a cabeça<br />

toda branca. Caía-lhe para o peito. O quadro mais pequeno, representava uma mulher<br />

nova deitada, de nádegas poderosas atiradas contra a cara dos espectadores. Houve um<br />

arrastar de pés no ajeitamento final dos espíritos. Então, no silêncio absoluto, o guia<br />

começou o seu tricot. (RS, p. 198).<br />

Repete-se, então, todo o desarrasoado discurso do guia. Sempre o mesmo para<br />

qualquer quadro, como, para qualquer quadro, sempre a mesma imagem e postura de pintor.<br />

Na verdade, o “Palácio da Cultura” – espaço alegórico do episódio – é sugerido como<br />

uma espécie de shopping center cultural, mega store aberto às (in)diversificadas propensões<br />

da massificada cultura do povo. E assim se podem percorrer várias salas e corredores<br />

que levam o transeunte cultural desde a pintura ao teatro, passando pela literatura e pela<br />

música, até às mais diferentes formas de manifestações estéticas. O episódio limita-se a<br />

três: a pintura, o teatro e a música. E nem mesmo esta escapa, aqui, por completo, a uma<br />

intensa visão irônica, mesmo a um certo grotesco ou traços de rejeição, porque, quando<br />

Júlio Neves entra no salão onde havia um concerto, o que ele vê, “no palco entrelaçado de<br />

clarões, [é] toda a orquestra rebrilhante de nitidez, o piano, as estantes metálicas, os trajes<br />

de cerimônia” (p. 199), e, “quando o pianista arrancou horríssono, um grito estrídulo frigiu[-lhe]<br />

os ouvidos.”<br />

Depois parou, as mãos imóveis no teclado, imóvel um rictus ferino nos dentes carnívoros<br />

à mostra. Estava assim quando os violinos disseram. Vítreos riscaram o ar, como<br />

uma unha num vidro vibram ácidos raspando-se nas cordas nítidas uns dos outros, um<br />

grito lívido prolongado, vários gritos lívidos. Foi quando os violoncelos, tinham-nos<br />

grossos intercalados às pernas as damas e eu tenho de fechar os olhos para os lá não ver.<br />

Horríveis, inteiriçam-se-me os cabelos, ríspidos em arcadas chiam. [...] um rabecão roncou.<br />

Ficou mesmo sozinho, grosseirão, longo tempo enchia o palco espaçado de roncos.<br />

Depois armou-se um arraial generalizado aos guinchos, sapatadas no piano e o rabecão<br />

bronco, sempre. (RS, p. 199-200).<br />

Mas finalmente, o encantamento de maravilha, o instrumento de privilégio, etéreo,<br />

transcendente, na sua suavidade evocadora,

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