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Era um quadro todo preto como as ardósias de instrução primária. Preto retinto, sem<br />
mais nada. Tudo tinta da China. Ao lado, numa banquinha rasa havia um tipo sentado.<br />
Era um tipo curioso. Tinha os ombros quadrados, a cabeça toda branca pendia-lhe para<br />
o peito. Todo o grupo se deslocou então para o quadro seguinte e quando lá chegou já<br />
lá estava sentado num banco raso e sem encosto um homem baixo, entroncado, a cabeça<br />
toda branca. Caía-lhe para o peito. O quadro mais pequeno, representava uma mulher<br />
nova deitada, de nádegas poderosas atiradas contra a cara dos espectadores. Houve um<br />
arrastar de pés no ajeitamento final dos espíritos. Então, no silêncio absoluto, o guia<br />
começou o seu tricot. (RS, p. 198).<br />
Repete-se, então, todo o desarrasoado discurso do guia. Sempre o mesmo para<br />
qualquer quadro, como, para qualquer quadro, sempre a mesma imagem e postura de pintor.<br />
Na verdade, o “Palácio da Cultura” – espaço alegórico do episódio – é sugerido como<br />
uma espécie de shopping center cultural, mega store aberto às (in)diversificadas propensões<br />
da massificada cultura do povo. E assim se podem percorrer várias salas e corredores<br />
que levam o transeunte cultural desde a pintura ao teatro, passando pela literatura e pela<br />
música, até às mais diferentes formas de manifestações estéticas. O episódio limita-se a<br />
três: a pintura, o teatro e a música. E nem mesmo esta escapa, aqui, por completo, a uma<br />
intensa visão irônica, mesmo a um certo grotesco ou traços de rejeição, porque, quando<br />
Júlio Neves entra no salão onde havia um concerto, o que ele vê, “no palco entrelaçado de<br />
clarões, [é] toda a orquestra rebrilhante de nitidez, o piano, as estantes metálicas, os trajes<br />
de cerimônia” (p. 199), e, “quando o pianista arrancou horríssono, um grito estrídulo frigiu[-lhe]<br />
os ouvidos.”<br />
Depois parou, as mãos imóveis no teclado, imóvel um rictus ferino nos dentes carnívoros<br />
à mostra. Estava assim quando os violinos disseram. Vítreos riscaram o ar, como<br />
uma unha num vidro vibram ácidos raspando-se nas cordas nítidas uns dos outros, um<br />
grito lívido prolongado, vários gritos lívidos. Foi quando os violoncelos, tinham-nos<br />
grossos intercalados às pernas as damas e eu tenho de fechar os olhos para os lá não ver.<br />
Horríveis, inteiriçam-se-me os cabelos, ríspidos em arcadas chiam. [...] um rabecão roncou.<br />
Ficou mesmo sozinho, grosseirão, longo tempo enchia o palco espaçado de roncos.<br />
Depois armou-se um arraial generalizado aos guinchos, sapatadas no piano e o rabecão<br />
bronco, sempre. (RS, p. 199-200).<br />
Mas finalmente, o encantamento de maravilha, o instrumento de privilégio, etéreo,<br />
transcendente, na sua suavidade evocadora,